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A ingerência humanitária e a guerra justa

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A ingerência e o princípio da não-intervenção

"Guerra" é um termo em desuso no Direito Internacional. A palavra ainda se conserva para designar grandes conflitos, como foram as guerras mundiais. Entretanto, a maioria dos conflitos no século XX não pode ser qualificada de "guerra". Hoje, prefere-se o termo "conflitos armados internacionais". Não é uma simples troca de palavras. Desde o Pacto de Paris de 1928, também conhecido como o Pacto Briand-Kellog, em referência ao ministro francês do exterior Aristide Briand e o chanceler americano Frank Kellog, a guerra foi proscrita do Direito Internacional como meio válido de solução de controvérsias:

"Art. 1º. As Altas Partes Contratantes declaram, solenemente, em nome de seus respectivos povos, que condenam o recurso à guerra para a solução das controvérsias internacionais, e a isso renunciam, como instrumento de política nacional, em suas relações recíprocas."

O jus ad bellum foi, até então, um meio legítimo de assegurar uma pretensão no Direito Internacional. Constituía uma das formas válidas de aquisição de território. O estado de guerra gerava diversos efeitos tanto entre os contendores, como em relação a terceiros países. O direito à guerra foi, inclusive, um dos direitos internacionais que caracterizava o Estado. Somente os soberanos se apresentavam como autoridades legítimas para declarar guerra. Guerras privadas, após a consagração do sistema de Estados com a Paz de Vestfália de 1648, eram injustas por natureza.

Cabe observar que o conceito jurídico de "guerra" requer tanto um elemento material – o emprego efetivo da força armada –, como um elemento subjetivo – a intenção de fazer guerra, o animus belli. [30] O problema sempre foi o de aferir esse animus belli. O modo mais acertado revela-se a determinação da existência de uma prévia declaração de guerra. Contudo, um grande número de escaramuças ocorreu sem ser precedida por uma declaração. Os ataques, v.g., japoneses de Port Arthur, em 1904, e de Pearl Harbour, em 1941, não contaram com uma prévia declaração de guerra. Os Estados não desejam perder o elemento surpresa. Ademais, diversos outros conflitos, como a luta contra o colonialismo, intervenções e represálias, não se conformam ao conceito jurídico de guerra. Por isso, tem preferido-se empregar a expressão "conflito armado internacional", que seria mais abrangente, e a guerra seria somente uma de suas manifestações. O termo guerra ainda não desapareceu do Direito Internacional, mas, por motivos históricos, procura reduzir-se a sua utilização apenas para conflitos de grande vulto.

Em 1945, a Carta de São Francisco vai além de todos os documentos internacionais que proscrevem a guerra e proíbe, em seu artigo 2º, parágrafo 4º, todo e qualquer emprego da força, do qual a guerra não é senão uma forma extrema:

"Todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas."

Isso não significa que não haja exceções à proibição do uso da força. O emprego da força é permitido nos casos em que o Conselho de Segurança, para situações específicas, empreende o recurso à força por julgá-lo compatível com os propósitos da ONU (art. 39), nas lutas pela autodeterminação dos povos (Declaração anexa à Resolução nº 2625, XXV [31]) e no exercício da legítima defesa (art. 51).

Discute-se, contudo, a legalidade da intervenção armada. A não-intervenção é um dos princípios do Direito Internacional, previsto na Carta (art. 2.7), que foi ampliado com a "Declaração Relativa aos Princípios de Direito Internacional Concernentes às Relações Amigáveis e à Cooperação entre os Estados Conforme a Carta das Nações Unidas" de 1970. Os trabalhos do Comitê Especial, que preparou a declaração, à época, foram prolongados e marcados pelos desentendimentos entre os países europeus e latino-americanos. Estes, ao final, acabaram prevalecendo e conseguiram ampliar o conceito de intervenção proibida para além da mera intervenção armada. O Comitê dispôs que "a intervenção armada e todas as outras formas de interferências ou atentados contra a personalidade do Estado ou contra seus elementos políticos, econômicos e culturais, são contrários ao direito internacional" [32].

No entanto, os autores não são unânimes em afastar a ilegalidade da intervenção. Mesmo os autores latino-americanos só vão passar a condenar a intervenção a partir do século XX, com a Doutrina Drago. [33] Um autor clássico como Emerich de Vattel, após estabelecer que as nações são livres e independentes entre si e, portanto, não podem sofrer coação ainda que seja para cumprir seu dever de cooperarem para o seu aperfeiçoamento [34], mesmo após derivar dessa independência o dever de não interferir no governo alheio [35], aceita a intervenção de potências estrangeiras para libertar uma nação da tirania, a pedido do povo oprimido. [36]

Já Kant, no quinto artigo preliminar à paz perpétua, consagra o princípio da não ingerência: "nenhum Estado deve imiscuir-se pela força na constituição e no governo de outro Estado" [37]. Só se pode conceber que o princípio da não ingerência nos assuntos internos conste como requisito num projeto de paz, como é a obra de Kant, se for admitido que o contrário (a ingerência) pode causar escândalo e lesionar a entidade capaz de impedir essa paz e provocar a guerra: o Estado. De fato, a não-ingerência constitui pressuposto de um sistema de Estados soberanos e, mesmo em caso de guerra, figura como uma espécie de "honra entre ladrões", pois poderia ser elevada a uma máxima universal. Kant abre uma exceção se o próprio Estado pede ajuda a um terceiro Estado para controlar uma dissensão interna. Ainda assim, o escopo dessa exceção é menor do que se pode presumir: se essa dissensão se tornar uma revolta muito grande, como uma revolução, em que não se pode determinar qual das duas partes controla o país, então prevalece o dever de não intervir:

Sem dúvida, não se aplicaria (o princípio da não ingerência) ao caso em que um Estado se dividiu em duas partes devido a discórdias internas e cada uma representa para si um Estado particular com a pretensão de ser o todo; se um terceiro Estado presta, então, ajuda a uma das partes não poderia considerar-se como ingerência na Constituição de outro Estado (pois só existe anarquia). Mas enquanto essa luta interna não está ainda decidida, a ingerência de potências estrangeiras seria uma violação / do direito de um povo independente que combate a sua enfermidade interna; seria, portanto, um escândalo, e poria em perigo a autonomia de todos os Estados. [38] (grifo nosso).

De fato, o princípio da não-intervenção é corolário direto da soberania dos Estados e constitui uma necessidade num sistema internacional. No momento em que não houver mais a observância ao referido princípio, a ordem deixa de ser internacional, e o direito regulador passa a ser o direito interno de um Estado universal. Isso é tão necessário que a soberania estatal se encontra positivada em numerosos textos legais internacionais. Merece destaque a Carta das Nações Unidas que, no seu art. 2º, § 1º, dispõe: "A Organização é baseada no princípio da igualdade soberana de todos os seus membros."

Soberania representa, com toda a certeza, um dos conceitos mais revistos na história do direito público. Não é objeto deste trabalho abordar esse debate. Basta afirmar que parece ser consenso a não aceitação de uma formulação absoluta como summa potestas superior non recognoscens. Semelhante amplitude poderia levar à própria negação do Direito Internacional.

Soberania é um conceito político, para alguns até mesmo teológico [39], que perpassa diversas áreas, como a jurídica. A tradução deste conceito político para o Direito, em especial para o Direito Internacional, ocorreu em 4 de abril de 1928, numa sentença proferida pelo árbitro Max Huber, no caso Palmas, no Tribunal Permanente de Arbitragem. A decisão equipara soberania a independência. Isso significa independência de uma ordem normativa nacional em face de normas oriundas de outra ordem normativa nacional. Em hipótese alguma, refere-se a independência frente ao Direito Internacional.

A submissão ao Direito Internacional produz outra conseqüência. Não existem matérias próprias de um "domínio reservado natural". Domínio reservado é um conceito jurídico que assim foi definido pelo Instituto de Direito Internacional: "O domínio reservado é o das atividades estatais em que a competência do Estado não está vinculada pelo direito internacional." [40] Até 1919, com o estabelecimento da Liga das Nações, os doutrinadores procuravam um critério material de determinação do que constituiria o domínio reservado dos Estados. Assim, temas relacionados, v.g., ao regime político ou à nacionalidade seriam de competência exclusiva dos Estados. A razão de ser disto era a de impedir a ingerência dos demais Estados nesses assuntos. Entretanto, não se mostrou viável determinar, de forma segura, o conteúdo do domínio reservado, porque não se revela possível dissociar as atividades internas e externas do Estado de maneira objetiva. Ademais, o Direito Internacional espraiou-se por diversos campos bastante "sensíveis", como desarmamento, soberania territorial e também, para os interesses deste trabalho, direitos humanos. Dessa forma, as matérias que constam de um domínio reservado são aquelas que ainda não se tornaram objeto de um compromisso internacional. [41]

Celso D. de Albuquerque Mello procede a uma distinção interessante entre intervenção e ingerência humanitária. A primeira seria exercida por Estados, e a última por organizações internacionais e organismos humanitários não-governamentais. Enquanto a intervenção seria condenada pelo Direito Internacional, a ingerência seria legal. [42]

Essa legalidade se deve, segundo Delgado, por causa da "discricionariedade do Conselho [de Segurança] em determinar o que consiste ameaça à paz, quebra da paz ou ato de agressão, conforme dispõe o art. 39 da Carta" [43]. É certo que esta discricionariedade encontra limites: aquele órgão deve observar os princípios da Carta (art. 24.2) nessa função de "guardião da paz e segurança internacionais". O princípio da não-intervenção (art. 2.7 e a interpretação mais estendida que obteve com a Declaração de 1970), na qualidade de um dos princípios da Carta, deve, portanto, ser observado. O problema é que este mesmo dispositivo estabelece como ressalva as medidas coercitivas do Capítulo VII, no qual se insere a referida função do Conselho de Segurança. Em outras palavras, a competência do Conselho, para definir uma ameaça à paz e segurança, encontra limitação no princípio da não-intervenção, e este princípio é limitado pela competência do Conselho em definir uma ameaça à paz e segurança internacionais. Trata-se de um círculo vicioso.

Mesmo a Resolução nº 3314, que define a agressão, deixa margem a dúvidas. A enumeração das ações que configuram agressão, listadas no art. 3º, não é taxativa:

O âmbito da definição retida é limitado. Como o objetiva esta resolução [3314], tratando-se de uma simples recomendação da Assembléia ao Conselho de Segurança, este último pode proceder à sua interpretação num sentido tanto restritivo como extensivo: "tendo em conta as outras circunstâncias pertinentes", ele pode desqualificar um ato que à primeira vista parecia um ato de agressão (art. 2º); pelo contrário, pode "qualificar outros atos de agressão em conformidade com as disposições da Carta" (art. 4º). [44]

Desse modo, a questão se resume à interpretação que o próprio Conselho confere à sua competência para a manutenção da paz. Em outros tempos, a ótica "estatocêntrica" era tão arraigada que nenhum desrespeito aos direitos humanos, por mais flagrante e amplo que fosse, poderia "arranhar" a superfície da soberania estatal. Em 1922, foi celebrada uma convenção germano-polonesa que deveria proteger as minorias naqueles países. Contudo, essa convenção foi desrespeitada. Em 1933, a Assembléia Geral da Liga das Nações reúne-se, e Bernheim pede a palavra e denuncia as "práticas odiosas e bárbaras dos hitleristas às expensas de seus próprios compatriotas refratários ao regime". Ele explica como os nazistas incendeiam as lojas e as casas, violentam as mulheres, assassinam os homens e molestam as crianças, saqueiam as sinagogas, profanam tumbas e lugares sagrados e expulsam famílias inteiras de seus lares. O presidente da sessão concede a palavra ao representante da Alemanha, um certo Joseph Goebbels. A sua resposta está registrada nos anais do princípio da não-intervenção: "Senhores, representantes e presidente. Nós somos um Estado soberano; tudo o que este indivíduo afirmou não vos concerne. Nós fazemos aquilo que queremos dos nossos socialistas, pacifistas e judeus, e não estamos sujeitos ao controle nem da humanidade, nem da SDN." [45] Não procurou negar os fatos, nem alegou inocência do seu governo.

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Os diplomatas daquele encontro ficaram petrificados, mas não por Goebbels e sim por Bernheim. A resolução proveniente daquela sessão foi bastante comedida e se absteve de qualquer condenação: a Liga "confia" que todos seus membros não devem atentar contra os direitos dos homens sob sua jurisdição. A prevalência da soberania sobre os direitos do homem foi bem estabelecida. A Alemanha recebe carta branca sobre como tratar suas minorias, e o plano político descrito no Mein Kampf pôde ser cumprido. Hitler acreditava que o "respeito pela pessoa humana que todos têm presente nada mais é do que uma invenção das fábulas para se proteger dos mais fortes" [46].

René Cassin, que testemunhou aquele episódio, viu o desrespeito aos direitos humanos crescer, passar pelos campos de concentração em Dachau, Auschwitz, Birkenau, Treblinka, e tornar-se a própria guerra. Durante a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em dezembro de 1948, afirmou, perante a Assembléia Geral da ONU: "Ainda, o primeiro grande crime resta impune; o crime contra os direitos do homem alemão tornou-se o crime contra os direitos do homem de outras nações e, pouco depois, o crime supremo da guerra universal." [47] Para Cassin, os gérmenes da II Guerra já se encontravam nos atentados aos direitos humanos. Ainda que imbuída do espírito de impedir novas guerras, a Carta de 1945, conforme visto, consagra o princípio da não-intervenção, em oposição às reivindicações dos militantes dos direitos humanos.

Desde então, a opinio juris foi bastante modificada, apesar da sistemática oposição de alguns países socialistas e em desenvolvimento, em especial do Brasil. Em 1992, o então secretário-geral Boutros-Boutros Ghali foi convidado a preparar uma Agenda for Peace, Preventive Diplomacy, Peacemaking and Peace-Keeping. Neste documento, ele lança as bases para métodos mais eficazes na tarefa da ONU de manutenção e promoção da paz internacional. Afirma que

a tarefa de promoção da paz é por vezes facilitada por uma ação internacional que melhore as circunstâncias que contribuíram para a disputa ou o conflito. Se, por exemplo, a assistência a pessoas desabrigadas dentro de uma sociedade é essencial para a solução, então as Nações Unidas devem ser capazes de prover recursos para todas as agências e os programas interessados. [48] (grifo nosso).

Cumpre salientar que, na dicotomia direitos humanos e soberania, uma vitória num lado ocorre às expensas do outro. As diversas resoluções tanto do Conselho de Segurança, como da Assembléia Geral, que consagram uma ou outra forma de ingerência, sempre ressaltam o caráter excepcional da situação de emergência para procurar evitar a consolidação de um direito costumeiro. [49] Ainda assim, hoje, de modo diverso do que ocorreu em 1933, os governos ditatoriais, ao menos, procuram dissimular as práticas de desrespeito aos direitos humanos.

Aos poucos, os direitos humanos foram ganhando destaque. A Corte Internacional de Justiça, em acórdão proferido em 27 de junho de 1996, no caso Atividades Militares e Paramilitares na Nicarágua, declarou, de forma expressa, que "não pode haver dúvidas de que a estrita provisão de auxílio humanitário para pessoas ou forças em outro país, quaisquer que sejam sua afiliação política ou seus objetivos, não pode ser considerada uma intervenção ilegal ou de qualquer modo contrária ao direito internacional" [50]. Ainda que esta modalidade de ingerência tenha sido considerada legal, outras não são e, pois, faz-se necessário promover maiores distinções sobre o tema.

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Sobre o autor
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

Professor Adjunto de Direito Internacional Público (UERJ e UFRJ).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges. A ingerência humanitária e a guerra justa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1858, 2 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11543. Acesso em: 10 mai. 2024.

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