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A ingerência humanitária e a guerra justa

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Modalidades de intervenção e a assistência humanitária

Nem todas as formas de ingerência são controversas e/ou proibidas. As formas pelas quais uma intervenção pode se revestir são muito variadas. Ricardo Seitenfus apresenta um quadro esquemático com 34 categorias diferentes, algumas legais e outras não. [51]

Essas classificações tão extensas acontecem porque toda intervenção tem por objetivo obrigar um Estado a fazer ou deixar de fazer algo que normalmente não faria. Com uma finalidade assim tão ampla, qualquer ato que interfira nos negócios de um país pode ser considerado uma intervenção. Desde a agressão armada até fenômenos menos sangrentos, como a pressão política ou econômica (conforme visto, em virtude da Declaração de 1970), ou mesmo a propaganda. Por vezes, a simples inserção dos interesses de um Estado nos debates das Nações Unidas corresponde a uma intervenção. [52]

As intervenções de tipo armado ainda podem subdividir-se em intervenções militares diretas e intervenção por assistência militar. [53] Esta última ainda se divide em auxílio militar a um país que esteja envolvido em um conflito com um terceiro país, em razão de um tratado de defesa coletiva, e pela oferta de auxílio armado para um governo – ou para os insurgentes – num conflito interno ou numa guerra de libertação nacional (que, por causa do status galgado no Direito Internacional com a descolonização, não pode ser equiparada a uma guerra civil).

A intervenção militar direta representa, de forma inequívoca, uma ilegalidade para o Direito Internacional. Apesar disso, é a forma mais antiga de intervenção, e a história registra numerosos exemplos: as esferas de influência da Guerra Fria, a Doutrina Monroe e o corolário de Roosevelt, a Santa Aliança, etc. Discute-se, contudo, se não haveria um elemento legitimador se a mesma ocorrer com fulcro humanitário. Os autores americanos, em geral, aceitam o argumento legitimador. A doutrina majoritária, porém, condena as intervenções humanitárias, quando realizadas por um Estado de modo unilateral, e ainda é reticente em aceitar quando se trata de ingerência declarada por um organismo multilateral. Confiar a decisão de ingerência humanitária ao Conselho de Segurança da ONU não representa uma garantia de imparcialidade. Além disso, muitas vezes os motivos humanitários se confundem com interesses outros, a ponto, inclusive, de se mostrarem simples pretextos.

Embora sem ter essa observação em mente, Ingrid Detter distingue outras modalidades de intervenção armada as quais foram tradicionalmente consideradas humanitárias: intervenção por preempção e intervenção punitiva. A primeira ocorreu quando a OTAN atacou a Iugoslávia para impedir a "limpeza étnica" dos kosovares albaneses. Seu objetivo foi o de mitigar os efeitos das políticas embrutecidas de Belgrado contra uma etnia de seu próprio país. Durante a Guerra do Golfo, houve um elemento punitivo em relação ao Iraque que se evidenciou quando a estratégia não visou tão-somente a retirada das tropas iraquianas do território do Kuweit, mas também a redução do poderio bélico do Iraque. [54]

No âmbito das intervenções humanitárias, Mario Bettati distingue quatro subdivisões. A primeira forma, que ocorreu sobretudo entre 1948-1968, chamada "ingerência imaterial", foi a pioneira para a salvaguarda dos direitos humanos. No período compreendido entre 1968-1988, seguiu-se a "ingerência caritativa", que se caracteriza pela prática das organizações humanitárias e pela ação diplomática. Depois do fim da década de 1980, outras duas formas se desenvolvem: a "ingerência forçada", que recebe o nome por causa do emprego autorizado da força militar, e a "ingerência dissuasiva", que se propõe a prevenir as catástrofes humanitárias. [55]

Seguramente, as mais importantes modalidades de intervenção são aquelas realizadas pela Cruz Vermelha, e que recentemente sofreram profundas alterações em seu regime jurídico em razão da emergência de novas organizações humanitárias. A chamada "Assistência Humanitária" é legal e tem mais de um século de existência. Em 1862, é publicada uma obra intitulada Um Souvenir de Solférino, de autoria do suíço Henry Dunant, na qual ele relata as atrocidades que presenciou durante a batalha de Solferino, na região da Lombardia, que opôs as tropas franco-sardas e as austríacas. A escaramuça deixou nove mil feridos, e chamou a atenção do autor o fato dos feridos serem abandonados à própria sorte. A obra ganhou rápida repercussão e influenciou importantes personalidades, inclusive outro suíço, o advogado Gustave Moyner. Moyner e Dunant trocam correspondências e, juntamente com mais três outros suíços – Dufour (o presidente), Appia e Maunoir –, formam uma comissão para estudar propostas para aliviar o sofrimento durante uma guerra. Nascia, em 1863, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha. [56]

Aquelas pessoas convocam, para o mesmo ano, uma conferência internacional, na qual se fazem representar 14 países europeus, 6 delegados de organizações internacionais e 7 particulares. Foi uma conferência realizada por uma organização não-governamental que contava com a participação de alguns governos. Decidiram o símbolo a utilizar (a bandeira suíça ao contrário) e, posteriormente, para que não tivesse um caráter estritamente cristão, a pedido dos países islâmicos, optou-se também pelo símbolo do crescente vermelho: a meia lua vermelha sobre o fundo branco. No ano seguinte, com o apoio da Suíça, convoca-se outra conferência na qual figuram países não-europeus. Na ocasião, os presentes promulgam uma convenção que é a origem do atual Direito Internacional Humanitário. [57]

Trata-se, contudo, de uma organização não-governamental bastante sui generis, porque, na convenção de 1864, o Comitê adquire personalidade jurídica internacional distinta daquelas dos Estados que atenderam a conferência. [58] Em conjunto com a Santa Sé e com a Ordem dos Cavaleiros de Malta, é a única ONG com personalidade jurídica internacional. Possui, até mesmo, capacidade para celebrar tratados [59], além de assento como observador na Assembléia Geral da ONU.

Cabe ao CICV prestar assistência em conflitos armados internacionais, conflitos armados não-internacionais e catástrofes naturais. As Convenções de Genebra de 1949 e seus protocolos de 1977 não se aplicam somente aos casos de guerra. O art. 4º, c), do seu estatuto vincula o órgão diretamente às Convenções de Genebra de 1949. O Direito Humanitário prevê a existência de uma "potência protetora" para confiar a observância de suas disposições. Esta potência seria um país neutro no conflito e encarregado de proteger os interesses de uma das partes no território da outra. As Convenções de Genebra nomeiam, de forma expressa, o CICV como potência protetora:

Art. 10. As Altas Partes Contratantes podem a todo o momento e de comum acordo, confiar a um organismo que ofereça todas as garantias de imparcialidade e de eficácia, o desempenho das funções atribuídas pela presente Convenção às potências protetoras.

(...)

Se a proteção não puder ser assegurada desse modo, a Potência detentora deverá recorrer a um organismo humanitário, tal como o CICV, para que assuma as funções humanitárias conferidas pela presente Convenção às Potências protetoras ou aceitar, sob reserva das disposições do presente artigo, as ofertas de serviço feitas por aquele organismo. [60]

Cumpre salientar que a intervenção do CICV só poderá ocorrer mediante a aquiescência do Estado receptor. A potência protetora só pode atuar com o consentimento das partes.

Ademais, a própria conduta do CICV é pautada por algumas regras que limitam a tarefa de assistência da organização. "A fim de guardar a confiança de todos, ela [a Cruz Vermelha] se abstém de tomar parte nas hostilidades, e, em todos os tempos, nas controvérsias de ordem política, racial, religiosa ou filosófica." [61] Trata-se de um princípio fundamental do CICV, inspirado na política externa do Estado suíço: a neutralidade. Ela implica a proteção não-discriminatória das vítimas, mas também a não-tomada de posição frente aos agressores. "Ela põe no mesmo plano salvadores e agressores, humanitários e tiranos, vítimas e carrascos." [62] René Cassin, considerado o pai do direito de ingerência, teria, em 1940, denunciado esse tipo de postura de não-engajamento como regressão no caminho da proteção humanitária. "A neutralidade e o belicismo são duas faces da mesma realidade: a aceitação sem nuança da soberania absoluta dos Estados." [63]

São afirmações um pouco severas e menosprezam os relevantes serviços prestados pela organização, desde a sua existência, para o alívio dos sofrimentos das vítimas dos conflitos armados. Ainda assim, Bernard Kouchner e o jurista Mario Bettati insurgem-se contra o princípio da neutralidade e reivindicam uma nova forma de promover a assistência humanitária. O primeiro passa a fundar organizações humanitárias, como "Médicos do Mundo" e "Médicos sem Fronteiras", que não observam a necessidade da prévia aquiescência. E o segundo influencia a política externa francesa, em especial personalidades como Mitterrand, para aprovar resoluções na ONU de assistência humanitária que rompessem com a necessidade do consentimento do Estado receptor. Em janeiro de 1987, ambos realizam a Primeira Conferência Internacional de Direito e Moral Humanitária. A conferência adota, ao final, uma resolução que reconhece o dever de assistência humanitária e o direito a esta. Trata-se do sans-frontiérisme. Os french doctors acrescentaram um novo corolário ao juramento de Hipócrates: "Eu me comprometo a prestar assistência a todo indivíduo em estado de sofrimento físico ou psíquico, qualquer que seja o local onde ele se encontre sobre a Terra. Se necessário, não respeitarei fronteira de Estado, nem barreira institucional para assistir aos doentes." [64] Ainda se compromete a testemunhar o horror provocado pelo desrespeito aos direitos humanos. Trata-se de uma organização bastante "ruidosa" para os padrões mais silenciosos do CICV.

O primeiro problema que o sans-frontiérisme enfrentou foi o da ilegitimidade de suas primeiras ações. "Esta missão médica foi clandestina e ilegal (...). Durante longos meses, nós éramos obrigados a guardar segredo, em especial para poder infiltrar uma segunda equipe, sem colocar seus membros em perigo." [65] Esta citação são as 3 primeiras linhas da tese de doutorado em medicina de Michel Bonnot e refere-se à sua aventura nas selvas do Laos, em 1980. Mario Bettati consegue, no entanto, influenciar a política externa francesa, que é bem sucedida em aprovar duas resoluções importantes na Assembléia Geral da ONU: a de nº 43/131 de 8 de dezembro de 1988 e a de nº 45/100 de 14 de dezembro de 1990.

Ambas as resoluções são obrigadas a fazer "concessões" ao princípio da não-intervenção ao fazerem referência expressa à soberania dos Estados e também ao caráter excepcional da decisão tomada em função de uma "situação de urgência". A Resolução nº 43/131 dispõe sobre a assistência humanitária em caso de catástrofes naturais e situações de urgência da mesma ordem. Mario Bettati desejava que o texto da resolução pudesse abarcar também as "catástrofes políticas", mas precisou recuar em face da oposição certa de alguns países. [66] No direito interno, as situações de calamidade geram um dever de socorro para a pessoa mais próxima. No Direito Internacional, até então, não era sequer reconhecido um direito da vítima de ser assistida por parte da comunidade internacional. As convenções de direitos humanos e humanitários vinculam os Estados e, se o Estado nacional da vítima por algum motivo não a socorresse, não cabia à comunidade internacional agir de forma suplementar. Esta resolução estabelece uma maneira de realizar o direito à assistência. Ela consagra o princípio do livre acesso às vítimas: nem o Estado receptor, nem os Estados vizinhos podem impedir que a ajuda chegue até as vítimas. Esta medida é de suma importância porque, não raro, o Estado receptor desvia as provisões e as vende, ou as utiliza contra o próprio grupo necessitado. Trata-se de um dever de cooperação internacional para organizar o socorro aos necessitados.

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Essa resolução firmou precedente, e o princípio do livre acesso foi invocado em diversas resoluções do Conselho de Segurança. Quando da repressão aos curdos, o Conselho ordenou ao Iraque que permitisse o acesso das organizações humanitárias. Na Somália, a ONU procurou garantir as condições do auxílio. Na crise da Bósnia, o Conselho determinou a distribuição de alimentos e remédios em Sarajevo. Em 1993, na Libéria, conclamou-se às partes de não impedir a assistência humanitária. Dessa forma, o princípio do livre acesso às vítimas adquiriu o caráter de norma costumeira. [67]

Todavia, o princípio do livre acesso tornar-se-ia um instituto inútil sem a inovação produzida pela Resolução nº 45/100: os corredores humanitários. No art. 6º desta resolução, as Nações Unidas, preocupadas com os meios para facilitar as operações de assistência humanitária, decidem criar,

a título temporário, lá [no local afetado] ou onde for necessário, e de modo concertado entre os governos envolvidos e os governos e organizações intergovernamentais, governamentais e não-governamentais interessadas, corredores de urgência para a distribuição da ajuda medicinal e alimentar de urgência. (grifo nosso).

Mario Bettati sugeriu a idéia de transpor uma regra amplamente aceita do Direito do Mar para os assuntos humanitários: o direito de passagem inocente. O art. 17 da Convenção de Montego Bay de 1982 consagra um direito de passagem rápido, contínuo e ininterrupto sobre águas territoriais de Estado distinto da nacionalidade da embarcação. Os corredores humanitários, mutatis mutandis, constituem uma obrigação de preservar determinada área livre da violência dos conflitos para facilitar o acesso do auxílio humanitário. Trata-se de um direito limitado no tempo, pois deve durar somente o necessário para o socorro; limitado no espaço, e só pode ser exercido nas áreas do trajeto; limitado pelo objeto, porque não possui outra função senão o transporte de material médico e alimentar; limitado no exercício, pois se sujeita às prescrições transpostas do art. 19 da Convenção de Montego Bay, e toda outra atividade não relacionada diretamente ao socorro é proibida, e limitado por uma deontologia, pois deve minorar a confusão e a dispersão da ajuda para que não haja a discriminação da vítima. [68]

Cumpre salientar que o direito de passagem inocente do Direito do Mar é concedido pelo Estado de forma unilateral e pode ser revogado de acordo com seus interesses. Entretanto, o mesmo não ocorre com o corredor humanitário. A sua instauração constitui uma obrigação de resultado, não de meio. Há três tipos de corredores humanitários: os de simples acesso favorecem a chegada do socorro às vítimas; os de evacuação permitem a fuga das pessoas em perigo iminente, e os de retorno possibilitam o regresso dos refugiados. [69]

Nas zonas de conflito, as primeiras áreas cujo acesso se torna impraticável são os aeroportos. Desde 1968, em Biafra, a Cruz Vermelha sentiu necessidade de estabelecer um couloir de securité para aterrissar, sem perigo, seus aviões-cargo. Em 5 de julho daquele ano, um avião da Cruz Vermelha foi abatido por um caça nigeriano. Com a legalização do corredor humanitário, a situação se alterou. Na Bósnia, em 1992, a Resolução nº 761 do Conselho de Segurança autorizou a UNPROFOR a proteger a região do aeroporto de Sarajevo e, assim, criou um "corredor aéreo". Foi a maior ponte aérea da história, e ultrapassou, inclusive a de Berlim. O corredor aéreo abrangia uma área de 10 km de largura e 120 km de comprimento. Transportou 150.000 t de auxílio e evacuou 1.100 feridos em mais de 12.000 vôos. [70]

Distingue-se a assistência humanitária da assistência de humanidade. Embora bastante antiga, a legalidade desta é duvidosa. Caracteriza-se por uma ação unilateral, sem a autorização nem do Estado receptor, nem de uma organização internacional, e limitada a um determinado conflito. Visa subtrair nacionais ou correligionários que se encontrem necessitados. É intervenção armada, momentânea e urgente. Já em 1860, os otomanos, em território submetido a seu controle, na Líbia, massacram 12 mil cristãos maronitas e queimam 150 vilas, com a cumplicidade do Pachá de Beirute, Kourchid. No ano seguinte, Napoleão III despacha tropas francesas para salvaguardar os cristãos. [71]

Mas o mais famoso exemplo de intervenção de humanidade ocorre no aeroporto de Entebe, em 1976. Terroristas palestinos seqüestram um airbus da AirFrance oriundo de Tel-Aviv e recebem o apoio do ditador Idi Amin Dada. Eles exigem a liberação de 52 palestinos detidos em França, em Israel, na Suíça, no Quênia e na Alemanha Ocidental. No dia 3, à noite, uma equipe israelense invade sorrateiramente Uganda e salva os reféns. Israel defende perante o Conselho de Segurança a legalidade da operação. Os países ocidentais discutem, mas não chegam a conclusão alguma. [72]

Não obstante a consagração do princípio do livre acesso às vítimas e dos corredores humanitários, o maior problema da assistência humanitária ocorre quando o Estado receptor decide, pela força, impedir o auxílio. Em resposta, os capacetes azuis foram chamados em alguns casos para supervisionar a entrega da ajuda e garantir a segurança dos membros das organizações humanitárias. Entretanto, em última análise, este trabalho consiste em simples policiamento, e as forças de paz da ONU não podem engajar-se em confrontos diretos com exércitos nacionais. Neste caso, a solução seria confundir as fronteiras da assistência humanitária com a ingerência humanitária propriamente dita: o Conselho de Segurança teria de legitimar as forças armadas de um ou mais Estados para efetivar a intervenção.

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Sobre o autor
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

Professor Adjunto de Direito Internacional Público (UERJ e UFRJ).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges. A ingerência humanitária e a guerra justa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1858, 2 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11543. Acesso em: 28 mar. 2024.

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