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A ingerência humanitária e a guerra justa

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Ingerência humanitária e Guerra Justa

O problema central revela-se conferir força executória àqueles direitos referidos na seção anterior. A ONU não possui os meios para essa tarefa. Entretanto, ela pode autorizar um ou mais países para atuar em seu nome. Essa delegação de competência não suplanta a ONU; em vez disso, o Estado a substitui por subrogação. Pela lei do "desdobramento funcional", os órgãos estatais exercem um duplo papel, simultaneamente nacional e internacional, e os Estados se tornam criadores, aplicadores e destinatários dessas normas internacionais. [73] Desta feita, se as Nações Unidas reconhecem os direitos relativos à assistência humanitária, elas podem autorizar um Estado a reforçar a eficácia desse direito.

A questão se resume às condições em que a ONU pode promover essa delegação. Como a Resolução nº 3314, que define agressão, conforme foi visto acima, é meramente exemplificativa, e o Conselho de Segurança pode incluir matérias não cobertas pela resolução e desqualificar outras expressamente previstas, cabe a este órgão a interpretação do que constituiria uma ameaça à paz e segurança internacionais. Cabe ressaltar que, conforme o art. 24, o Conselho detém responsabilidade primária na manutenção da paz e segurança. Isso significa que não é exclusiva. A Assembléia Geral pode, desde que o Conselho não esteja a examinar o problema (art. 12), fazer recomendações aos membros e ao Conselho "ou a ambos em qualquer questão ou assunto" (art. 10). Ainda assim, a competência do Conselho, definida pelo art. 39 da Carta, só encontra limites nos princípios e objetivos da própria Carta. Contudo, como a eficácia normativa dos princípios, em Direito Internacional, é relegada a um plano meramente suplementar, Kelsen chegou até mesmo a afirmar que o Conselho detém a competência para definir a sua própria competência. [74]

Durante a Guerra Fria, a atuação do Conselho de Segurança foi bastante prejudicada em razão da rivalidade entre as duas superpotências, à exceção do episódio da Guerra da Coréia, quando a URSS não ofereceu veto, porque havia se retirado. Quando a URSS se esfacelou, alguns internacionalistas [75] acreditaram que as ações relativas à paz e à segurança seriam pautadas pelo multilateralismo. "De 1946 até 1989, o Conselho de Segurança reuniu-se 2903 vezes e adotou 646 resoluções, ou seja, uma média de 15 resoluções por ano. Nos anos 90, teve 1183 reuniões e adotou 638 resoluções, isto é, uma média de 64 por ano!" [76]

O fato foi que a década de 1990 conheceu diversas manifestações do Conselho de Segurança relativas à manutenção da paz e da segurança internacionais. As principais resoluções foram as de números 661 (para o Iraque, em 1990), 713 e 757 (respectivamente, em 1991 e 1992, para os Estados sucessores da ex-Iugoslávia), 773 (para a Somália, em 1992), 748 e 883 (respectivamente, em 1992 e 1993, para a Líbia), 788 (para a Libéria, em 1992), 841 (para o Haiti, em 1993), 918 (para Ruanda, em 1994), 1054 e 1070 (ambas em 1996, para o Sudão), 1132 (em 1997, para Serra Leoa), 1160 (em 1998, para Kosovo, na Iugoslávia) e 1267 (em 1999, para o Afeganistão, diante da não extradição de Ousama Bin Laden). Trata-se de um conjunto bastante extenso de resoluções: o suficiente para a constituir uma prática reiterada – elemento material do costume internacional.

A propósito da Guerra do Golfo, a Resolução nº 688 afirma que o "fluxo maciço de refugiados até e entre as fronteiras internacionais (...) ameaçam a paz e segurança internacionais na região" [77]. Esta resolução apenas "solicita a permissão" para que organizações humanitárias possam prestar auxílio e, pois, não pode ser considerada uma ingerência de maneira estrita. [78] Contudo, é curioso observar aquilo que o Conselho definiu como ameaça à paz: o fluxo maciço de refugiados.

Um ano após, a Resolução nº 794 afirma que a "magnitude da tragédia causada pelo conflito na Somália, exacerbada pelos obstáculos criados à distribuição de assistência humanitária, constitui uma ameaça à paz e segurança internacionais". Após estabelecer a relação entre a paz e a violação humanitária, a resolução autoriza o uso de todos os meios necessários para criar um ambiente seguro ao auxílio humanitário. A Operação Restaurando a Esperança, todavia, foi desastrosa. No mesmo sentido, a Resolução nº 1031 e 1038, no conflito da Bósnia-Hezergovina, autorizam a utilização da força para apoiar a FORPRONU. Já em Ruanda, algumas tentativas de intervenção foram bloqueadas no Conselho, e quando França e Senegal lideraram a Operação Turquesa, tudo já estava resolvido. Ainda assim, a Resolução nº 929 vinculou a grave situação humanitária com a manutenção da paz e da segurança internacionais. [79]

Outros casos ampliaram ainda mais a definição de agressão à paz. A Resolução nº 940, no Haiti, autorizou todos os meios necessários para a saída do regime militar instaurado após o coup. A resolução afirma que "o objetivo da comunidade internacional continua o de restaurar a democracia no Haiti", e que a situação constitui "uma ameaça à paz e à segurança na região". O Conselho, no mesmo dispositivo, mas com menos ênfase, ainda afirma estar "profundamente preocupado pela significativa deterioração da situação humanitária no Haiti". Em relação aos atentados de 11 de setembro de 2001, a Resolução nº 1368 qualificou as medidas que os Estados Unidos poderiam tomar como "legítima defesa", embora não tenha constatado expressamente a agressão. O problema foi que não definiu contra quem deveria se efetuar a legítima defesa. E a Resolução Antiterrorismo do Conselho de Segurança das Nações Unidas, nº 1373 de 28 de setembro de 2001, alargou ainda mais os poderes do Conselho de Segurança. Até então, o órgão poderia pronunciar-se em matéria de segurança internacional em face de uma situação concreta, mas para esta resolução "quaisquer atos de terrorismo internacional" constituem uma ameaça à paz, o que facultaria ao Conselho agir de forma preventiva.

A partir da década de 1990, portanto, o Conselho de Segurança, de fato, ampliou a definição de ameaça à paz e segurança internacionais. O problema foi a perda de parâmetros. Como as resoluções indicam, um desrespeito massivo a direitos humanos constitui uma ameaça à paz. Todavia, o mesmo parece poder aplicar-se para a "ruptura da ordem democrática" e para "quaisquer atentados terroristas". Além disso, é de se indagar em que medida um desrespeito a direitos humanos consegue ameaçar a paz e segurança internacionais; há inobservâncias que podem e devem ser solucionadas pelo Direito Penal do próprio país. Hoje, contudo, o céu (e a imaginação dos membros do Conselho de Segurança) é o limite. A liberalidade sempre ocorre quando se rompe com muitos anos de um modelo fechado, enquanto os novos critérios ainda não se tornaram claros. Mas, confiar, de forma total, a decisão sobre ingerência humanitária ao Conselho não representa uma garantia de imparcialidade.

Existem critérios que podem pautar a conduta do Conselho de Segurança? Para responder, faz-se necessário tecer algumas prévias considerações. A teoria da guerra justa foi tão bem-sucedida que não precisa mais ser invocada para um conflito armado internacional. Todos os seus preceitos de jus ad bellum e de jus in bello tornaram-se normas do direito da guerra. Porém, a ingerência humanitária acontece, normalmente, em conflitos armados internos, e, ainda que o Direito Humanitário (e outros preceitos do jus in bello) se aplique a esse tipo de conflito, não há regulamentação clara sobre o direito de declarar uma ingerência. Por essa razão, a tradição da guerra justa – ao menos em relação ao jus ad bellum – pode servir de parâmetro para julgar uma ingerência humanitária.

Conforme foi asseverado, a teoria da guerra justa prescreve, em relação ao jus ad bellum, que a guerra deve ser o último recurso, que ela deve ser proporcional à injúria (o dano causado deve ser inferior à calamidade), que deve ser pública e precedida de uma declaração formal e que deve ser sempre a resposta a uma agressão injusta, com probabilidade de êxito. Deve analisar-se como cada uma dessas prescrições se ajusta à ingerência humanitária. Alguns autores ainda, com base nos proponentes clássicos da guerra justa, como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, lembram de outro requisito: a reta intenção. Argumentam que, de maneira surpreendente, esse critério é válido para julgar a legitimidade de uma intervenção. "Considere [o leitor] a difundida infelicidade e a correta condenação da intervenção francesa em Ruanda, em 1994, porque ela foi tida por todos como motivada não por preocupações humanitárias, mas pelo desejo de continuar no papel de grande potência na África Central." [80]

Não obstante as credenciais, a razão parece assistir a autores como Michael Walzer que dispensam a exigência da intenção altruísta. "De fato, eu só encontrei casos em que o motivo humanitário é um entre diversos outros. Os Estados não mandam seus soldados, parece, para outros Estados somente com o fito de salvar vidas. (...) Então, devemos considerar o significado moral da motivação plural e confusa." [81] O critério da reta intenção – com a exclusão de outros interesses egoístas – não é aplicável às relações internacionais. Ele permite invalidar a justiça de algumas guerras/intervenções, mas não possibilita o inverso, a legitimação. Em livro mais recente, Walzer introduz uma outra categoria que parece substituir a contento a exigência da reta intenção: o jus post bellum, a construção da paz subseqüente [82] (e, em alguns casos, a reconstrução da nação). O Estado interventor se tornaria responsável pelo ato, e o seu comportamento após a intervenção revelaria a justiça de suas pretensões anteriores.

A exigência de que a guerra deve ser o último recurso, quando transposta para o caso das ingerências humanitárias, produz duas conseqüências. A primeira diz respeito ao esgotamento das soluções pacíficas e diplomáticas de composição. A segunda está intimamente relacionada ao princípio da subsidiariedade da persecução criminal internacional: a comunidade internacional só poderá agir quando o primeiro legitimado, o Estado intervenido, não o faz. A inação do Estado acontece em dois casos: quando, ao poder público nacional, puder ser imputada uma ação ou omissão criminosa, e quando a situação de calamidade é tão grave – e/ou quando a fragilidade das instituições internas é tamanha – que se faz necessária uma assistência externa. Cumpre salientar que a obrigatoriedade da decretação de ingerência ser o último recurso somente se impõe uma vez ponderada a urgência da situação e a recalcitrância do Estado.

Os critérios da proporcionalidade e da probabilidade de êxito devem ser analisados em conjunto. A intervenção, é claro, não pode agravar a situação que ela visa corrigir ou suavizar os efeitos. Para tanto, o emprego de forças deve ser tal que se possa calcular, com razoável certeza, o êxito da operação. O emprego das forças armadas precisa ainda restringir-se ao objetivo principal do auxílio humanitário, e, assim que este cessar, as tropas devem deixar o território. Portanto, decorrem desses dois critérios da tradição da guerra justa outros dois: a limitação da força ratione materiae (a ajuda humanitária) e em razão do tempo.

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O requisito da guerra pública refere-se à legitimidade da autoridade que pode exercer a titularidade do jus ad belum. Conforme visto, numa guerra, a doutrina majoritária da guerra justa prescrevia que a autoridade competente corresponderia sempre ao soberano, nunca a barões, marqueses ou duques, ainda que estes pudessem possuir um exército maior do que o do rei. Cabe asseverar que essa exigência era de suma importância no Medievo, por causa da dispersão do poder político. Embora apenas um primus inter pares, o rei se distinguia dos demais senhores feudais por ser coroado pelo papa; isto é, reconhecido pelo representante de Jesus Cristo na Terra – e o chefe da Igreja – como a autoridade legítima.

Após os pactos de proibição da guerra e de proscrição da força, cada Estado renuncia ao seu direito unilateral de declarar guerra (ressalvada a subsistência da força nas três exceções já mencionadas) em favor da coletividade dos países. Somente uma decisão multilateral, oriunda de uma conferência ou organização representativa da totalidade das nações, como as medidas tomadas no âmbito da ONU, uma organização que congrega a (quase) universalidade dos Estados, pode abordar os temas relativos à paz e segurança internacionais.

Assim, uma intervenção armada só poderia ser legítima, de acordo com a teoria da guerra justa, se declarada por um organismo multilateral e representativo, como é o caso, por excelência da ONU. Trata-se da diferença já aludida entre intervenção e ingerência. Essa conclusão é recebida com críticas por diversos autores americanos e mesmo alguns de língua portuguesa. Segundo Delgado, a intervenção unilateral seria justificada porque o regime jurídico da intervenção humanitária ainda se encontra em construção: é um costume internacional em gestação e, enquanto não se consolida de vez, pode ser alterado.

[E]nquanto o ato refratário ao comportamento anterior dos Estados que, não obstante, é aceito por grande maioria deles, não se cristaliza, os Estados que as invocam [as normas costumeiras] podem continuar pleiteando a mudança da norma através de atos concretos enquanto não há clareza sobre a existência de norma nova ou se ainda vigora a antiga. [83]

A seguir, o autor suaviza esta afirmação. O fato de o costume ainda não ter se cristalizado não confere, aos Estados, liberdade irrestrita nas intervenções unilaterais. Há alguns mecanismos que permitem discernir as intervenções humanitárias das hegemônicas: a existência de violações graves aos direitos humanos; a omissão, ou a ação dolosa, do Estado intervenido; o Conselho de Segurança "impossibilitado de tomar as medidas cabíveis em virtude de questões processuais (veto)" [84]; esgotamento da via diplomática; intervenção realizada por uma organização regional ou grupo representativo de países, e o uso da força limitado à proteção das vítimas.

A opinião deste autor, contudo, não parece acertada. Mesmo que o costume não tenha cristalizado-se de todo, a discricionariedade dos Estados não se revela tão ampla. As intervenções humanitárias constituem uma modalidade de conflito armado e, portanto, encontram-se limitadas pelas mesmas restrições que afetam os conflitos armados em geral. E a mais importante delas é a proibição unilateral da força. [85] O fato de ter sido aprovada por uma organização regional não legitima a decisão, mesmo que a matéria tenha sido submetida, sem sucesso, a exame no Conselho de Segurança. O art. 52, § 1º, da Carta da ONU reconhece a competência dos acordos regionais destinados a assegurar a paz e segurança internacionais, mas desde que não conflitem com os "Propósitos e Princípios das Nações Unidas". Ademais, a ação coercitiva decidida por organizações regionais precisa da autorização do Conselho de Segurança (art. 53, § 1º). A precedência deste órgão sobre os acordos regionais é incontestável.

A sistemática do veto no Conselho de Segurança tem sido alvo de diversas críticas por impedir a atuação deste órgão. Ainda assim, um veto não equivale a uma questão processual de somenos importância. Significa que um Estado dotado de grande capacidade militar se opõe frontalmente a uma determinada medida. Se uma matéria relativa a ingerência é submetida à apreciação do Conselho e foi vetada, isso não corresponde a uma paralisia processual burocrática; a decisão foi tomada, e a ingerência não conseguiu consenso entre os países.

Por essas razões, não há que se falar em intervenções humanitárias unilaterais, mas em ingerência humanitária. Desta feita, o requisito da declaração prévia também está preenchido, pois a publicidade e a anterioridade das decisões são conseqüências imediatas da chamada "diplomacia parlamentar" (aquela celebrada em organizações internacionais). "No contexto medieval cristão, a declaração pública era requisito que sinalizava a transição de uma zona moral (na qual a matança [desnecessária] seria proibida) para outra (na qual seria permitida). Hoje, é requisito de transparência e de registro para o processo decisório internacional." [86]

Por último, a justa causa de uma ingerência humanitária é, sem sombra de dúvidas, a proteção dos direitos humanos. Cabe ingerência humanitária em face de "limpezas étnicas", genocídios, desastres humanitários decorrentes de calamidades naturais, etc. No entanto, não há uma medida quantitativa para determinar o que consiste uma "violação grave". Cabe lembrar que a ingerência humanitária se insere dentro das medidas aplicáveis para assegurar a paz e a segurança internacionais; portanto, a violação deve ser de razoável monta. Constitui um critério adequado a omissão ou a ação criminosa do poder público nacional diante do desrespeito maciço aos direitos humanos.

Assim, as prescrições de jus ad bellum da teoria da guerra justa aplicadas à ingerência humanitária impõem que: a) a medida coercitiva constitua um último recurso, após o malogro das tentativas feitas pelo próprio Estado (se estas existirem) para resolver a situação, e após o esgotamento das vias pacíficas e diplomáticas; b) o êxito da intervenção seja calculado a priori, em se considerando seu caráter provisório e sua vinculação ao objetivo de auxílio humanitário; c) a responsabilidade da decisão deve caber somente à ONU, conforme o Direito Internacional vigente; d) a medida seja o produto de deliberação em sessões públicas daquela organização, e e) a intervenção venha em resposta a uma violação grave de direitos humanos, caracterizada pela inação ou ação criminosa do Estado intervenido.

Esses critérios correspondem à adaptação, para os dias correntes, de uma tradição mais antiga do que o próprio Direito Internacional que sempre buscou julgar a justiça da violência no cenário externo. Eles pretendem reduzir a margem de discricionariedade nos temas relativos à ingerência humanitária. Ainda que não tenham eliminado de todo o subjetivismo do intérprete, não podem ser menosprezados. Se comparados a uma situação ideal, na qual reine a paz e os direitos humanos, mais do que imperfeitos, esses critérios são desnecessários; a justiça não tem sentido num mundo perfeito. Mas, se comparados ao regime jurídico atual de intervenção, essas diretrizes revelam-se um padrão de referência bastante adequado.

Este trabalho não pretende analisar a aplicabilidade das exigências de jus in bello da guerra justa, a exemplo do que foi feito em relação aos preceitos de jus ad bellum, pois as Convenções de Genebra de 1949 e seus protocolos são válidos até mesmo em conflitos armados não-internacionais. Esta afirmação, todavia, merece destaque, em virtude da recente violação perpetrada pelos Estados Unidos aos prisioneiros da guerra contra o Afeganistão, em Guantânamo. É proibido o interrogatório coercitivo de presos, mas os detentos eram espancados e humilhados, submetidos à privação de sono e dos sentidos, waterboarding e outras formas de tortura. A argumentação norte-americana era a de que os presos de Guantânamo seriam unlawful combatants, uma categoria não prevista nas Convenções de Genebra, o que poderia justificar a excepcionalidade do tratamento.

Em 28 de junho de 2004, a Suprema Corte americana finalmente rejeitou a tese de que o Presidente teria autoridade para prender pessoas acusadas de terrorismo, sem acesso a advogados (ou ao mundo fora do cárcere) e sem a possibilidade de revisão judicial da decisão. [87] No entanto, segundo Dworkin, as decisões não foram, de todo, satisfatórias. Apesar de favoráveis, contêm afirmações bastante preocupantes. No caso Hamdi v. Rumsfeld, a juíza Sandra Day O’Connor argüi que o tribunal imparcial a que o detento tem direito não precisa ser uma corte judicial, mas uma comissão militar apropriadamente constituída. Além disso, as regras probatórias podem ser "suavizadas" a ponto de sofrer uma reversão do ônus da prova. Não é necessário provar a culpa; cabe ao detento – de dentro do cárcere – produzir provas para a sua inocência. Ainda, na qualidade de preso de guerra, a juíza decidiu não libertar o prisioneiro, porque, embora a guerra no Afeganistão tenha terminado, ele poderia engrossar as fileiras da "guerra contra o terror" que ainda continua. [88]

A categoria de unlawful combatants corresponde a um tertius genus, no mínimo, bastante estranho. Entre os combatentes, incluem-se os regulares e soldados que não portam nenhuma insígnia identificadora, além de civis independentes. Se capturados, estes dois últimos não teriam direito ao status de prisioneiro de guerra, mas, conforme o art. 44, § 4º, do Protocolo I de 1977, devem receber proteção equivalente em todos os sentidos. Mesmo mercenários e espiões devem ser tratados com humanidade. Essas duas classes de indivíduos são as mais desprezadas pelo direito humanitário, mas se beneficiam das "garantias fundamentais" do art. 75 do Protocolo I (proibição de assassinato, de tortura, de penas corporais, etc). Isto significa que o direito humanitário prefere proteger as forças regulares, mas estende o seu abrigo às irregulares e não deixa de conferir uma proteção mínima às classes que visa reprimir. Desta feita, não faz sentido existir uma categoria desprovida de qualquer proteção.

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Sobre o autor
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

Professor Adjunto de Direito Internacional Público (UERJ e UFRJ).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges. A ingerência humanitária e a guerra justa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1858, 2 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11543. Acesso em: 8 mai. 2024.

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