Introdução
Adaptações audiovisuais por vezes simplificam biografias complexas. A série "Raul Seixas: Eu Sou" pode ser um exemplo disso: em mais da metade dos 8 episódios, a narrativa se concentra na decadência do artista, sua dependência química e sua adesão a experiências místico-religiosas.
Não negamos a existência de dificuldades pessoais enfrentadas pelo artista, cuja morte completou 36 anos em agosto de 2025, mas entendemos que estas se deram em contextos de sua vida e obra que vão além de tais dificuldades e mereceriam ser melhor explorados, a partir de reflexões realizadas pelo próprio.
A ausência de uma certa contextualização psicológica do artista, que se poderia construir com base em trechos de seus diários pessoais (trechos publicados em livros como "O Baú do Raul" e "O Baú Revirado do Raul", fontes valiosas já exploradas por peças teatrais em que Raul foi interpretado por atores como Roberto Bomtempo e Bruce Gomlevsky, que transmitiram com maior fidelidade a visão pessoal do artista), por exemplo, nos leva à percepção de que a série, de modo geral, não consegue abordar toda a complexidade de Raul Seixas, como também foi avaliado por críticos de TV, como Maurício Stycer em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo em 2 de julho de 2025.
1. Sobre adaptações da série
A referida série realiza adaptações significativas ao sugerir hiatos inexistentes em sua carreira e deslocar sua cronologia. A narrativa atribui a Raul Seixas, por exemplo, um suposto período de quatro anos consecutivos sem gravações, quando, na realidade, o maior intervalo consecutivo foi de dois anos, entre 1985 e 1986. Entre 1973 e 1989, Raul manteve atividade intensa, com apresentações e novos discos anuais entre 1973 e 1981, 1983 e 1984 e de 1987 adiante. Apenas não gravou discos em 1982, 1985 e 1986.
Também não aparecem na série algumas fases importantes, desde sua relação, na adolescência, com norte-americanos filhos de funcionários do Consulado dos EUA em Salvador (com quem, de fato, aprendeu a falar inglês); sua carreira de relativo sucesso como Raulzito ao lado do grupo "Os Panteras" em Salvador (atuando como banda de apoio até mesmo de Roberto Carlos, no auge da Jovem Guarda, quando de seus shows na Bahia), gravando no Rio de Janeiro um LP pela Odeon em 1968 (e não um mero compacto como a série sugere); e sua passagem como cantor por diferentes gravadoras (Odeon em 1968, CBS em 1971 e em 1980, Philips entre 1973 e 1976, Warner entre 1977 e 1979 e em 1989, Eldorado em 1983, Som Livre em 1984 e Copacabana entre 1987 e 1988), com a gravação de mais de 15 álbuns de estúdio com cerca de 12 faixas cada, ou seja, mais de 180 fonogramas.
O jovem Raulzito, em Salvador, também não estudou Direito, o que o personagem de Ravel Andrade diz cursar no primeiro episódio da série. Raul Seixas, na verdade, dizia ter estudado Filosofia, tendo sido Paulo Coelho quem ingressara antes da carreira musical no curso de Direito, apesar, claro, do interesse de juristas por sua obra, por exemplo, havendo 3 ou 4 ensaios sobre a produção do "Maluco Beleza" no livro "Música e Direito" organizado pelo Roberto Castro Neves. E a cronologia da série desloca ainda sua ida aos Estados a 1982, quando esta ocorreu em 1984, deixando inclusive de apresentar sua retomada vigorosa com Marcelo Nova no fim dos anos 1980, em dezenas de shows pelo país.
São informações que seriam importantes para se compreender melhor a biografia do requeiro baiano.
Outrossim, as canções de Raul Seixas são atravessadas por reflexões filosóficas, sociais e até mesmo jurídicas (!), com referências às normas sociais e às leis (de "Sociedade Alternativa" à "A Lei"), à loucura (de "Maluco Beleza" à "Quando acabar o maluco sou eu") e à morte (de "Canto para minha morte" à "Cavalos Calados"), expressando tensões entre o indivíduo e a sociedade e entre a existência e a finitude. Músicas como "Ouro de Tolo", "Metamorfose Ambulante" e "Metrô Linha 743", além de todo um cancioneiro de seu "lado B" não explorado na série (como "Sapato 36", "Diamante de Mendigo" ou "De cabeça pra baixo"), abordaram críticas sociais e, sobretudo, existenciais, que articulavam observações sobre normas, sociedade, política e subjetividade. Tais dimensões, no entanto, poderiam ser melhor exploradas na série, bem como a inovação estética de sua obra.
Por fim, Raul aparece como anarquista – quando suas leituras (apresentadas nos referidos diários) indicavam ser um artista marcado pelo diálogo com diversas tradições do pensamento político, apesar de ter dito em uma determinada entrevista, ironicamente, ser anarquista, para justificar o motivo pelo qual não votaria nas eleições daquele ano. "Plunct Plact Zum" é composto sob inspiração de texto de Proudhon, mas não foi suficiente para que o soteropolitano se vinculasse definitivamente ao Anarquismo, como ocorre em uma das cenas da obra ficcional.
2. Sérgio Murilo: de fato, um estudante de Direito coroado Rei do Rock
Se Raul jamais cursou Direito, outra figura da música brasileira não apenas foi estudante, mas se formou como advogado. Trata-se de Sérgio Murilo (1941-1992), hoje infelizmente bastante esquecido, que foi eleito o primeiro “Rei do Rock” nos anos 1960, ao lado de Celly Campello, com hits como "Marcianita" e "Broto Legal". Sérgio Murilo estourou na década de 1950, gravou em espanhol ao longo da sua trajetória e chegou a fazer sucesso na América Latina, mas sua carreira, como nos conta Paulo César Araújo na biografia "Roberto Carlos em Detalhes", sofreu um duro golpe ao desafiar a gravadora CBS por transparência nas vendagens.
Em um gesto inacreditável para a época, no início da década de 1960, Sérgio Murilo contratou um advogado e processou a gravadora CBS, exigindo auditoria das contas, o que foi considerado insubordinação por Evandro Ribeiro (que aparece na série "Raul Seixas: Eu Sou" sem ser identificado, nas cenas em que o produtor musical Raulzito se desentende com o executivo da gravadora em que desempenhava tal função), executivo da CBS que engavetou seu contrato até 1964 e que passou a investir em Roberto Carlos (!) como novo ídolo máximo da juventude brasileira interessada em rock, papel que cabia a Sérgio Murilo até então.
Essa postura custou a carreira de Sérgio Murilo. E Roberto Carlos assumiu definitivamente a cena jovem. Posteriormente, Sérgio Murilo se graduou em Direito pela tradicional Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, e exerceu a advocacia, conciliando a profissão com gravações esporádicas, até seu último álbum, não à toa chamado "Tira Teima", de 1989, que revela certa tristeza pelos dissabores que experimentou, como vemos na faixa-título, de autoria de Leonardo Souza e Paulo Sette:
"Na trilha dos espinhos que eu vim
Vaguei feito um menino sem temor
Retrato de uma história singular
Segredos que um dia vou contar
Assim eu arrisquei meu bem querer
Vingança nada fiz por merecer
Assim eu arrisquei meu bem querer
Vingança nada fiz por merecer
Dilema a gente tem que superar
Novela é uma trama sem final
Espelho não é transparente
Minguante nunca foi crescente
Estrela da manhã que é matinal
No jogo uma perda é que é fatal
Estrela da manhã que é matinal
No jogo uma perda é que é fatal
Vou indo pelo rastro que ficou
Verdade cedo ou tarde hei de encontrar
Saudade todo mundo sente
Por dentro sou ainda adolescente
Sublime doce amor quero sonhar
O Sol desse amanhã há de brilhar
Sublime doce amor quero sonhar
O Sol desse amanhã há de brilhar"
("Tira Teima" - Leonardo Souza e Paulo Sette)
Juridicamente, portanto, a trajetória de Sérgio Murilo evidencia a tensão entre a indústria fonográfica e os direitos autorais em um momento em que os artistas tinham mais dificuldade de fazer valer seus direitos sobre a vendagem de seus discos.
Conclusão
Nossa breve análise da série "Raul Seixas: Eu Sou" discute como adaptações audiovisuais podem simplificar biografias densas e contraditórias, priorizando certas características e episódios em vez de outras dimensões da obra do artista e da vida do biografado. Ao deslocar a cronologia e não abordar aspectos da produção e do pensamento de Raul, a narrativa correu o risco de reduzir Raul Seixas a um personagem, de certa maneira, estereotipado, distante do cantor e compositor inquieto, que refletia tanto em suas canções sobre normas, leis, a loucura e a morte.
Raul Seixas foi uma figura complexa. Apesar de enfrentar fragilidades, manteve uma carreira consistente, se reinventando anualmente e até os últimos anos de vida, quando realizou imensa turnê ao lado de Marcelo Nova, com quem gravou o último álbum, em 1989. As reflexões presentes em suas letras, que atravessavam a filosofia, a política, questões sociais e subjetivas, mereciam maior espaço na série, pois constituem sua singularidade. Com especial atenção ao seu "lado B"!
Ao relacionarmos essa discussão ao caso de Sérgio Murilo, sob o pretexto de nos referirmos a um estudante de Direito (o que Raul não foi, apesar da série dizer que tenha sido, entre as adaptações feitas pelo roteiro) que, de fato, foi eleito "Rei do Rock", terminamos por abordar uma tensão entre uma gravadora (a CBS, onde Raul gravou, em 1971, seu clássico LP "Sociedade da Grã-Ordem Kavernista" ao lado de Sérgio Sampaio, Miriam Baticada e Eddy Star, onde atuou como produtor de artistas da Jovem Guarda e para onde voltou em 1980, ao gravar o LP que trazia os clássicos "Aluga-se" e "Rock das Aranhas") e a trajetória do cantor de "Tira Teima", de 1989.
Se Raul nunca estudou Direito, embora tenha dialogado com temas jurídicos em sua música, Sérgio Murilo não apenas foi advogado, mas protagonizou um episódio pioneiro ao contestar judicialmente a gravadora, em um movimento que custou sua carreira, reafirmando a importância da luta por direitos autorais. Raul Seixas e Sérgio Murilo protagonizaram duas trajetórias que desafiam simplificações. E as biografias de ambos revelam como a história do rock brasileiro foi atravessada por uma complexidade que pode ser identificada nos discos e canções e que não pode deixar de ser referida nas produções audiovisuais brasileiras a respeito de cada um deles.