O Grito Silencioso de Quem Perdeu Tudo
O cenário da publicidade digital no Brasil transformou-se em um verdadeiro campo minado para consumidores que, seduzidos por promessas de lucro fácil, acabam perdendo muito mais do que dinheiro. Trata-se de uma realidade dolorosa e crescente, que ultrapassa o âmbito financeiro e atinge diretamente a saúde mental e a vida de milhares de pessoas.
O caso de Arianny Rosa Pereira ilustra com clareza a gravidade do problema1. A jovem ingressou com ação judicial contra uma plataforma de apostas e três influenciadores digitais de grande visibilidade, alegando ter sido induzida a participar de jogos de azar online após assistir às suas divulgações em redes sociais, que prometiam ganhos rápidos e fáceis. As primeiras apostas foram de baixo valor, mas as perdas sucessivas desencadearam um ciclo compulsivo de tentativas de recuperação. O resultado foi devastador: a perda de mais de R$ 320 mil, incluindo recursos de uma herança paterna destinados à compra de medicamentos1.
As consequências ultrapassaram o prejuízo financeiro. Arianny sofreu crises de ansiedade com convulsões, precisou de internação e chegou a tentar tirar a própria vida, exigindo intervenção imediata de profissionais de saúde mental1. O caso demonstra que a publicidade enganosa voltada aos jogos de azar possui causalidade direta com danos psíquicos severos, sendo o prejuízo econômico apenas a face mais visível de um problema muito mais profundo.
Esse drama não é isolado. A promoção de jogos de azar por influenciadores digitais tem provocado investigações e ações judiciais em todo o país. Figuras conhecidas, como Deolane Bezerra, Carlinhos Maia e Virgínia Fonseca, já foram mencionadas em reportagens e apurações relacionadas a esse tipo de publicidade, reacendendo o debate sobre a responsabilidade das personalidades públicas na divulgação de produtos e serviços que envolvem risco financeiro e psicológico2.
A confiança depositada pelo público nessas figuras está sendo sistematicamente explorada, enquanto os mecanismos tradicionais de proteção ao consumidor e de autorregulamentação publicitária revelam-se insuficientes diante da velocidade e da amplitude do ambiente digital3. O fenômeno evidencia um vácuo regulatório que precisa ser urgentemente enfrentado para prevenir danos e assegurar um mínimo ético na publicidade digital contemporânea.
Sedução Digital - Riscos Psicanalíticos por Trás da Tela
O sucesso das campanhas de jogos de azar no ambiente digital não se baseia apenas em uma publicidade agressiva, mas em uma compreensão profunda das vulnerabilidades psíquicas do público. A psicanálise explica que a compulsão por apostar é um sintoma, uma tentativa de lidar com a angústia, o vazio e a dor psíquica que não encontrou outra forma de expressão 4. O seguidor, ao acompanhar a rotina e a vida de um influenciador, desenvolve uma sensação de intimidade e proximidade unilateral, conhecida como “relação parasocial” 5. Essa conexão, mesmo que fictícia, cria uma confiança que é facilmente convertida em poder de influência 5.
A publicidade de jogos de azar explora essa relação de forma sutil e perigosa. O anúncio, muitas vezes, não se apresenta como um comercial tradicional, mas se mistura à rotina do influenciador, que “casual e espontaneamente” menciona seus ganhos rápidos ou utiliza a plataforma 6. A publicidade disfarçada se torna difícil de ser identificada pelo consumidor, que passa a ser influenciado não diretamente pela propaganda, mas pela suposta presença daquele produto na vida de alguém em quem confia e admira 6. Essa estratégia mina a capacidade de julgamento do seguidor, fazendo-o acreditar que, se a pessoa que ele segue utiliza e ganha, ele também pode. A publicidade ilícita pode se manifestar tanto por ação, ao transmitir informações falsas, quanto por omissão, ao deixar de informar sobre os riscos 7.
A exploração da vulnerabilidade se aprofunda com a promessa de ostentação. Perfis de “traders esportivos” ou de apostadores profissionais exibem carros de luxo, viagens internacionais e uma vida de fartura, atribuindo o suposto sucesso financeiro aos ganhos com as apostas 8. Essa abordagem atinge diretamente o desejo de ascensão social e de uma solução financeira rápida, especialmente em um contexto de dificuldades econômicas. A professora Heather Wardle, especialista em apostas esportivas, alerta que este tipo de marketing "incentiva as pessoas a jogar quando de outra forma não fariam" e agrava o problema para aqueles que já sofrem danos relacionados ao jogo, por serem os mais suscetíveis à publicidade 8.
No olhar da psicanálise, o sujeito compulsivo aposta para não pensar, para fugir de algo que o habita, mas que ele não consegue nomear 4. A cada rodada, ele encena a fantasia de ter controle sobre a sorte para tentar encontrar algum sentido em seu próprio caos interno 4. Perder, paradoxalmente, pode se tornar uma forma de autopunição ou de sustentar uma culpa inconsciente 4. Nesse contexto, o jogo não é apenas um entretenimento, mas uma defesa contra sentimentos intoleráveis de solidão, fracasso ou impotência 4.
O resultado dessa manipulação é um grave problema de saúde mental: o transtorno do jogo patológico. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) reclassificou o jogo patológico como um transtorno aditivo, o único vício comportamental formalmente reconhecido no manual, o que o aproxima de transtornos por uso de substâncias, reforçando sua seriedade 9. Contudo, a psicanálise oferece um modelo explicativo que vai além, buscando entender o que está "em jogo no jogo" 4.
O "Publi" e a Lei - Responsabilidade Legal na Balança
Para entender a responsabilidade legal neste cenário, é essencial olhar para o Código de Defesa do Consumidor (CDC), um dos diplomas jurídicos mais avançados do mundo 10. A lei proíbe expressamente a publicidade enganosa e abusiva. A publicidade é considerada enganosa quando é total ou parcialmente falsa ou omissa, capaz de induzir o consumidor ao erro sobre a natureza, qualidade ou risco do produto ou serviço 10. No caso dos jogos de azar, a propaganda se torna enganosa por omissão ao não alertar sobre o risco de vício e a real probabilidade de perda, e por ação, ao prometer ganhos fáceis e irrealistas, como no caso de Arianny 1. Já a publicidade abusiva é aquela que se aproveita da deficiência de julgamento ou da inexperiência do consumidor, ou que é capaz de induzi-lo a um comportamento prejudicial à sua saúde ou segurança 10. A publicidade de apostas para um público jovem ou financeiramente vulnerável, que explora a promessa de enriquecimento, se encaixa perfeitamente nesta definição.
Além do CDC, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR), uma organização não-governamental, também fiscaliza a ética da publicidade no Brasil 11. O CONAR considera a atividade dos influenciadores digitais como anúncio publicitário, exigindo que o conteúdo seja transparente e claramente identificado como pago, por meio de sinalizações como #publi ou #ad 6. Embora a autorregulamentação seja um passo importante para a ética, a persistência de casos de publicidade ilegal, mesmo com a fiscalização do CONAR, demonstra que a abordagem por si só não impede o dano, e a intervenção judicial se torna necessária para a reparação integral 3.
Questão de Responsabilidade - Por que o Influenciador não é “Apenas um Veículo"?
O ponto central da discussão jurídica é a diferença na responsabilidade entre um influenciador e um veículo de comunicação tradicional. No passado, um jornal ou canal de TV era visto como um "veículo de divulgação", sem responsabilidade direta pelo produto ou serviço anunciado, a menos que houvesse dolo ou culpa 12. A publicidade tradicional estabelecia a responsabilidade objetiva do fornecedor, que era o anunciante principal, direcionada ao resultado e à vítima 13.
A ascensão dos influenciadores, no entanto, rompeu esse modelo. O influenciador, ao associar sua imagem, credibilidade e rotina a um produto ou serviço e ser remunerado por isso, deixa de ser um mero canal de mídia. Ele passa a ser enquadrado como parte da "cadeia de fornecedores" 1, o que atrai a aplicação da teoria do fornecedor por equiparação, um conceito que amplia a responsabilidade nas relações de consumo 14. Segundo essa teoria, mesmo que o influenciador não se encaixe diretamente no Artigo 3º do CDC, ele está sujeito às normas consumeristas devido à natureza de sua atividade 14. O Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) já adotou esse entendimento ao condenar uma influenciadora que divulgava óculos de sol com seu nome, mas o produto nunca foi entregue 14. A decisão ressaltou que, ao associar seu nome ao produto, a influenciadora criou uma presunção de responsabilidade perante os consumidores, tornando-se solidariamente responsável pelos danos causados 14.
Essa abordagem é crucial para o consumidor, pois estabelece a responsabilidade solidária, um conceito jurídico no qual todos os autores do dano respondem em conjunto por sua reparação 1. Em muitos casos de jogos de azar, a empresa principal tem sede no exterior, o que torna a cobrança judicial extremamente difícil. Ao responsabilizar solidariamente o influenciador, que está no Brasil e se beneficiou economicamente da prática, a justiça brasileira garante que a vítima tenha a quem recorrer para buscar a reparação dos danos 1. A aplicação da teoria do fornecedor por equiparação e a responsabilização objetiva (sem a necessidade de provar culpa) para o influenciador demonstram que, mesmo sem uma legislação específica, o Judiciário brasileiro está na vanguarda da proteção ao consumidor, adaptando o direito à nova realidade digital 14.
Além do Prejuízo Financeiro - A Jornada de Recuperação e Seus Custos
O vício em jogos de azar não é um problema que desaparece com o tempo. A jornada de recuperação é longa, complexa e, muitas vezes, cara. As vítimas que sofrem com o transtorno do jogo patológico precisam de um tratamento sério e multidisciplinar, que abrange tanto a mente quanto o corpo 15.
O primeiro passo para a recuperação é o tratamento de saúde mental. A psicanálise é fundamental para que o indivíduo consiga identificar os gatilhos para o comportamento compulsivo, compreender as motivações por trás do vício e criar estratégias para evitá-lo 4. Em muitos casos, o tratamento também envolve o uso de medicamentos, especialmente para tratar comorbidades como ansiedade, depressão e outros transtornos de humor que frequentemente acompanham o vício em jogos 16. Grupos de apoio, como os Jogadores Anônimos, também são uma ferramenta crucial, oferecendo um espaço seguro para o compartilhamento de experiências e o apoio mútuo, ajudando o paciente a se sentir menos isolado 15. A intervenção familiar, por meio do controle financeiro, também se mostra importante nos estágios iniciais 16.
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Tipo de Ajuda |
O que é/Como Funciona |
Para que Serve |
Onde Buscar Ajuda |
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Psicanálise |
Sessões para explorar as raízes inconscientes do comportamento viciante e entender o que está "em jogo" no ato de jogar, abrindo espaço para o sujeito encontrar outras formas de lidar com sua dor 4. |
Compreender os gatilhos, trabalhar a compulsão e fortalecer a resiliência emocional, focando no significado subjetivo do jogo. |
Clínicas de psicanálise, consultórios particulares, centros de saúde mental. |
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Apoio Psiquiátrico |
Consulta com um médico psiquiatra para avaliação e, se necessário, prescrição de medicamentos. |
Tratar comorbidades como ansiedade, depressão e outros transtornos de humor associados ao vício. |
Consultórios psiquiátricos, hospitais, clínicas especializadas. |
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Grupos de Apoio |
Reuniões de pessoas com o mesmo problema, onde há compartilhamento de experiências e apoio mútuo. |
Sentir-se parte de uma comunidade, reduzir o sentimento de culpa e encontrar forças na jornada de outros. |
Grupos como Jogadores Anônimos (G.A.) ou comunidades online. |
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Controle Financeiro |
Ação em que um familiar ou amigo de confiança ajuda a gerenciar as finanças do indivíduo. |
Evitar o acesso fácil a dinheiro para apostar, especialmente nas fases iniciais da recuperação. |
Pessoas de confiança (familiares, amigos) com apoio profissional (terapia familiar). |
Obrigação de Custear o Tratamento - Análise Jurídica e Humana
A pergunta que ecoa na mente de quem já sofreu com este problema é: as empresas e influenciadores devem ser responsabilizados pelos custos do tratamento? A resposta, sob a ótica da proteção do consumidor, é um firme e inequívoco "sim". O dano causado pela publicidade enganosa vai além do valor perdido nas apostas, e o direito brasileiro prevê a reparação integral do prejuízo.
Os custos com psicanálise, medicamentos e, em casos mais graves, internações e terapias intensivas podem ser enquadrados como dano material 17, pois são despesas diretas e previsíveis, decorrentes do vício causado pela prática ilícita 1. A indenização, portanto, não se restringe aos valores perdidos nas apostas, mas a todas as despesas necessárias para a recuperação da vítima.
Além do dano material, o sofrimento psicológico, a angústia, a tentativa de suicídio e os prejuízos à vida pessoal e profissional, como visto no caso de Arianny, configuram dano moral 1. O objetivo da indenização por dano moral é tanto compensar o sofrimento da vítima quanto servir como uma punição educativa para o ofensor, desestimulando a prática ilegal no futuro 18. Adicionalmente, quando a publicidade enganosa atinge um número indeterminado de indivíduos, violando direitos de toda a comunidade de consumidores, pode ser configurado o dano moral coletivo, reforçando a responsabilidade dos envolvidos 18. A publicidade de jogos de azar, ao explorar a vulnerabilidade do público em larga escala, tem o potencial de causar danos transindividuais.
Caminho da Reparação - Procedimentos Jurídicos e Psicanalíticos
Para o consumidor que se sente lesado, buscar reparação é um direito garantido, mas exige um caminho estratégico, tanto no âmbito jurídico quanto na jornada de recuperação da saúde mental.
Esfera Jurídica - Como Buscar a Reparação
O primeiro passo para o consumidor lesado é a documentação. Salve todos os prints, vídeos, posts, conversas e qualquer outra evidência da publicidade feita pelo influenciador e pela plataforma. Isso é crucial, pois a lei do consumidor garante que toda informação ou publicidade que seja precisa o suficiente, veiculada por qualquer meio de comunicação, obriga o fornecedor a cumprir o que foi anunciado 19. A publicidade enganosa, seja por informações falsas ou por omissões sobre os riscos do produto, é expressamente proibida pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) 17.
Com a documentação em mãos, o consumidor pode buscar a reparação por meio de diferentes vias:
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Órgãos de defesa do consumidor: Pode-se iniciar uma reclamação em órgãos como o Procon. Embora não tenham poder para condenar os responsáveis a pagar indenizações, podem atuar como mediadores e aplicar sanções administrativas, como multas 20.
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Ação judicial: A via judicial é o caminho para buscar a reparação integral dos danos. O consumidor pode processar a empresa de apostas e, principalmente, o influenciador digital, que, ao fazer a publicidade, se torna parte da "cadeia de consumo" 21. O consumidor pode demandar qualquer um que faça parte dessa cadeia. A jurisprudência brasileira tem aplicado a responsabilidade objetiva nesse tipo de caso, o que significa que não é necessário provar que o influenciador teve culpa, apenas que sua conduta (a publicidade) causou o dano ao consumidor 21. A vítima pode solicitar indenização pelos valores perdidos (dano material) e pelo sofrimento emocional e psicológico (dano moral) 1.
O objetivo da ação judicial é não apenas recuperar o prejuízo financeiro e compensar o sofrimento, mas também fazer com que o fornecedor pague pelos custos de saúde necessários para a recuperação, como terapias e medicamentos 1.
Esfera Psicanalítica - Processo de Reparação Mental
A recuperação psicanalítica do vício em jogos de azar não se concentra apenas em parar de jogar, mas em entender por que o indivíduo precisava jogar. A psicanálise entende o jogo patológico como um sintoma, uma manifestação de um conflito inconsciente ou de uma dor psíquica que não encontrou outra saída. O tratamento busca entender "o que está em jogo no jogo" para o paciente, ou seja, o significado subjetivo do ato de apostar.
O processo terapêutico geralmente se desdobra em algumas etapas:
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Escuta analítica: O analista não julga ou moraliza o vício. O objetivo inicial é acolher a fala do paciente, permitindo que ele comece a nomear e a dar sentido aos sentimentos de angústia, solidão ou culpa que o levam a apostar. A análise pode revelar que o ato de jogar está ligado a um desejo de autopunição ou a uma repetição de padrões inconscientes 22.
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Interpretação e ressignificação: O analista trabalha com a interpretação, um recurso terapêutico que ajuda o paciente a fazer conexões entre seu comportamento atual (o jogo) e experiências passadas, como traumas ou fantasias 23. O tempo na psicanálise não é linear; a interpretação de um ato no presente pode dar um novo significado a algo que ocorreu no passado, ajudando o paciente a romper o ciclo compulsivo 23.
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O trabalho com as fases do jogo: A psicanálise pode trabalhar as três fases do comportamento do jogador – a fase da vitória, da perda e do desespero – para que o paciente entenda como esses momentos estão ligados à sua estrutura psíquica e ao ciclo vicioso 23.
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Apoio multidisciplinar: É importante que a psicanálise seja acompanhada por outras formas de tratamento, como a intervenção medicamentosa para tratar comorbidades como depressão e ansiedade, que são comuns em 75% dos casos de jogo patológico 16.
O tratamento psicanalítico busca, em última análise, abrir um espaço para que o sujeito encontre outras formas de lidar com sua dor, outros modos de existir que não passem pela destruição de si e pela compulsão do jogo.