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O porte de entorpecentes deixou de ser uma infração de menor potencial ofensivo

01/08/2008 às 00:00
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Ao excluir a possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade e cominar sanções como "advertência sobre os efeitos das drogas", "medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo" e prestação de serviços à comunidade àquele que adquirir guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, a Lei nº 11.343/06, ao invés de avançar na diferenciação no tratamento legal conferido a usuários e traficantes, acabou retrocedendo nos progressos até então alcançados no enfrentamento do problema. 

Por não se tratar de contravenção penal nem de crime a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, atrelada ou não a uma multa, a conduta prevista no artigo 28 da nova Lei Antitóxicos — análoga àquela descrita no artigo 16 da revogada Lei nº 6.368/76 — deixou de ser considerada uma infração de menor potencial ofensivo. 

A nova formatação do crime de porte de entorpecentes, por incrível que pareça, impede até mesmo a proposta e a aplicação de institutos despenalizadores, como a transação penal e a suspensão condicional do processo, na contramão de todos os princípios que parecem ter norteado a elaboração da nova lei. 

Essa incoerência ocorre porque nem a "advertência sobre os efeitos das drogas", tampouco a "medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo", sanções atribuídas para os infratores do artigo 28 da Lei nº 11.343/06, encontram-se previstas em nosso sistema punitivo como espécies de pena. E a prestação de serviços à comunidade, por sua vez, de acordo com o Código Penal, só pode ser utilizada para substituir penas privativas de liberdade — que o legislador fez questão de eliminar quando da elaboração do novo diploma — e, como se não bastasse, apenas nas hipóteses estabelecidas no artigo 44 daquele estatuto.

Nem mesmo a adoção do procedimento sumaríssimo previsto na Lei nº 9.099/95 para o processamento e julgamento dos crimes de porte de entorpecentes, fixada no § 1º do artigo 48 da nova Lei Antitóxicos, permite a formulação de proposta de transação penal pelo Ministério Público nesses casos. Em nosso prisma, esse benefício só seria aplicável se a infração não ultrapassasse o limite legal de dois anos de pena máxima cominada em abstrato. As sanções atribuídas ao artigo 28 da Lei nº 11.343/06, entretanto, sequer dispõem de balizas que determinem o cumprimento de seu prazo mínimo de duração. 

Ademais, o objetivo da transação penal é justamente o de se evitar a imposição da pena prevista para o tipo penal. Não faria sentido, portanto, permitir que o autor do fato transacionasse para que, ao final, lhe fosse aplicada a mesma sanção que poderia lhe ter sido imposta caso recusasse a aceitação do benefício. Por essas razões, a disposição contida no § 5º do artigo 48 da nova Lei Antitóxicos, além de inócua, causa perplexidade, e é, de toda forma, inconstitucional. 

Careceria de sustentação também a afirmação de que o crime de porte de entorpecentes é uma infração de menor potencial ofensivo porque o § 6º do mesmo dispositivo prevê a aplicação de multa para "garantia do cumprimento" das sanções referidas no tipo secundário do artigo 28 — o que deslocaria a competência para o processo e julgamento do crime de porte de entorpecentes para os Juizados Especiais Criminais. 

A multa prevista no § 6º do artigo 48 da Lei nº 11.343/06 não tem natureza jurídica de sanção penal. É, ao revés, uma medida de caráter civil, um mecanismo de coerção patrimonial imposto ao executado, no sentido de induzi-lo ao cumprimento de uma ordem judicial, que visa, em última instância, preservar a dignidade da Justiça. 

O direito processual penal brasileiro, além do mais, não admite que o descumprimento de uma sentença penal seja "garantido" pela cominação de uma medida à semelhança da astreinte francesa, da Zwangsgeld alemã ou do contempt of court, previsto no direito americano, em função da ausência de previsão legal para tanto. 

Depreende-se de todo o exposto, por conseguinte, que a natureza jurídica das sanções atribuídas ao crime de porte de entorpecentes não prestigia a opção de enquadrar a conduta descrita no artigo 28 da Lei nº 11.343/06 como sendo de menor potencial ofensivo, conforme inicialmente pretendido pelo legislador, razão pela qual o seu processo e julgamento seguramente serão de atribuição da Justiça comum. 

Isso é claro, se a flagrante inconstitucionalidade do dispositivo não for declarada antes por nossos tribunais.

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Sobre o autor
Aldo de Campos Costa

Advogado criminalista em Brasília. Foi professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e pesquisador visitante no "Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Strafrecht" em Freiburg im Breisgau (Alemanha)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Aldo Campos. O porte de entorpecentes deixou de ser uma infração de menor potencial ofensivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1857, 1 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11549. Acesso em: 2 mai. 2024.

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