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Licitação em caso de parentesco

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30/07/2008 às 00:00
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5.Parentesco e liberdade de trabalho

O trabalho dignifica a existência terrena, e, quando livre e criativo, liga o homem a Deus. Daí a Constituição enfatizá-lo em diversas passagens (arts. 5° , XIII; 6° , 7° etc.), para dizer que a sua garantia é ampla, pois engloba, além de empregados, autônomos e assalariados, os empregadores, isto é, a classe empresarial que propicia empregos e recolhe tributos.

Pois bem.

Empresas vencedoras de certames licitatórios, que apresentaram a melhor proposta para a Administração Pública, podem ter as suas atividades interrompidas, em virtude de alegações desarrazoadas, verdadeiras "cascas de banana", jogadas ao largo do Poder Judiciário do Estado.

Nesse contexto, o labor do empresariado deixa de ser livre, deixando à míngua um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CF, art.1º, IV).

E, ao prescrever os valores sociais do trabalho, a Lex Mater aduziu que a ordem econômica se funda neste primado (CF, art.170, caput).

No objeto específico do nosso estudo, podemos dizer que quaisquer alegações contra legem, sem nenhum respaldo probatório, ferem, diretamente, o princípio constitucional da liberdade de trabalho (CF, art.5º, XIII).

Façamos um parêntese para examinarmos o porquê de tudo isso.

5.1 Impedimento do art.9º, da Lei 8.666/1993

Ao longo desse estudo referimo-nos ao art.9º, da Lei 8.666/1993, preceito que contempla impedimentos à participação em certames licitatórios.

Mas, afinal, qual o alcance do art.9º, da Lei 8.666/1993?

Conforme dissemos, tal preceptivo, lista, taxativamente, as hipóteses em que pessoas físicas ou jurídicas não podem participar de licitações.

Acontece, porém, que o ato interpretativo não possui o condão de alargar as hipóteses legais enunciadas no art.9º, da Lei 8.666/1993, sob pena de o intérprete substituir o próprio Poder Legislativo do Estado brasileiro.

Dito de outro modo, compete, privativamente, a União legislar sobre normas gerais de licitação, observado o disposto no art.37, XXI, da Carta de Outubro (CF, art.22, XXVII).

Significa dizer que existe uma reserva de lei em sentido formal, pois só ao Poder Legislativo, e a mais ninguém, compete regular a matéria (CF, art.22, XXVII).

A mera vontade, desejo, intenção do intérprete não é o bastante para se dilargar as palavras escritas no art.9º, da Lei 8.666/1993, a ponto de se chegar à ilação de que o vínculo de parentesco representa um obstáculo intransponível à lisura do certame licitatório.

Dês que satisfeitos os pressupostos da licitação, não há que se cogitar quanto a uma "suposta" fraude, um "provável" favorecimento, tomando-se como arrimo a questão do parentesco.

Assim, presentes os presupostos lógico – pluralidade de objetos e de ofertantes; jurídico – atendimento ao interesse público; e fático – presença de vários interessados em disputar o certame, nada poderá invalidar, do ponto de vista jurídico, a licitude e a legitimidade do certame licitatório.

O contrário disso seria empreender o que denominamos de interpretação inconstitucional de leis constitucionais [19].

Expliquemos. O exegeta alarga o campo sintático, semântico e pragmático de disposições legais e editalícias ao arrepio do art.37, XXI, da Carta Maior.

Realmente, muitas vezes, os comportamentos dos administrados estão de acordo com a Constituição.

Mesmo assim, o intérprete confere às normas constitucionais um entendimento que cria situações de inconstitucionalidade.

Estamos diante da exegese inconstitucional de preceitos constitucionais. Ou seja, a lei ou ato normativo está em absoluta correspondência com a constituição, e, nada obstante, o exegeta confere-lhe um significado que a torna inconstitucional.

No Brasil, é corriqueira a praxe de interpretar de modo inconstitucional as leis e atos normativos.

Embora muitas leis estejam em absoluta consonância com o Texto Magno, recebem uma exegese distorcida, equivocada, ensejando uma interpretação que lhes acaba subvertendo o sentido originário.

Essas leis passam a ser atacadas pelos operadores do Direito mediante suposições de todo gênero, que parecem ser verdadeiras, quando, na realidade, não o são.

As exegeses inconstitucionais de preceitos constitucionais fulminam a vida das constituições.

Os efeitos provocados por essas deformações variam em grau e em profundidade e podem vulnerar a Carta Suprema, em maior ou menor extensão.

Vários são os exemplos de exegeses inconstitucionais de preceitos constitucionais.

Impossível seria enumerá-los exaustivamente, pois é incomensurável a pletora de casos que chegam, todos os anos, ao Supremo Tribunal Federal.

Tais violações, mais ou menos intencionais, derivadas de uma interpretação maliciosa ou sub-reptícia, podem provocar mudanças eventuais ou, até, permanentes, suspendendo, por algum tempo, a produção de efeitos da norma constitucional, a exemplo do art.37, XXI, de nossa Lex Mater, cuja finalidade não é o de admitir exegeses forçadas de disposições editalícias e legais.

Mas as interpretações contra legem também podem atentar contra o princípio da livre iniciativa, até mesmo na díade licitação-parentesco.


6.Parentesco e livre iniciativa

Quando se invoca o elo de parentesco, mediante exegese dilargada de preceitos editalícios e legais, comete-se uma afronta à livre iniciativa, pelo cerceamento da liberdade de comércio, levando à insolvência empresas, geradoras de empregos e receitas.

Ora bem.

A livre iniciativa constitui-se num dos princípios fundamentais de nossa República (CF, art.1° , IV).

Princípios fundamentais são diretrizes imprescindíveis à configuração do Estado, porque determinam-lhe o modo e a forma de ser.

Refletem os valores abrigados pelo ordenamento jurídico, espelhando a ideologia do constituinte, os postulados básicos e os fins da sociedade [20].

São qualificados de fundamentais, porquanto constituem o alicerce, a base, o suporte, a pedra de toque do suntuoso edifício constitucional.

Tais princípios possuem força expansiva, agregando, em torno de si, direitos inalienáveis, básicos e imprescritíveis, como a dignidade humana, a cidadania, o pluralismo político etc.

Dessa forma, buscam:

• garantir a unidade da Constituição brasileira;

• orientar a ação do intérprete, balizando a tomada de decisões, tanto dos particulares como dos órgãos legislativo, executivo e judiciário; e

• preservar o Estado de Direito.

Como proclamou a jurisprudência, "A livre iniciativa está consagrada na ordem econômica constitucional e como fundamento da própria República Federativa do Brasil, podendo atuar o particular com total liberdade, ressalvadas apenas as proibições legais. Não se tolera restrição a tal liberdade, sem o devido respaldo legal" [21].


7.Parentesco e

Nessa mesma ordem de idéias, esflora o princípio constitucional da função social da empresa, vetor de inestimável importância para estrutura capitalista do Estado de Direito.

Ao menos em tese, quando alguém se candidata a um certame licitatório tem a ciência e a consciência de que deverá se submeter a um procedimento preliminar rigorosamente preestabelecido conforme a lei.

Esse procedimento preliminar se chama licitação, cujo objetivo é propiciar aos entes governamentais o direito subjetivo público de abrirem disputa entre interessados, os quais, por sua vez, aceitam travar determinadas relações de natureza patrimonial.

Vê-se, portanto, que a Administração propicia o ensejo de se competir, de se disputar a participação nos negócios que os entes governamentais colimem realizar com os particulares.

Entrementes, quando alguém sai vitorioso de um certame licitatório há uma presunção óbvia de que atendeu os reclamos da ordem jurídica, de que não feriu preceitos e princípios jurídico-fundamentais.

A boa-fé nas relações travadas entre administrados e Administração Pública é a regra, enquanto a má-fé tem de ser provada, de modo líquido e incontestável, de sorte a não frustrar o verdadeiro telos da licitação: assegurar às pessoas governamentais as melhores possibilidades para realizarem negócios mais vantajosos, ao mesmo tempo em que garante aos administrados a prerrogativa de participarem dos negócios estatais.

Destarte, a busca pela oferta mais satisfatória, com a respectiva escolha da melhor proposta apresentada, não é algo sujeito a interpretações subversivas e traumatizantes, sob pena de se violar o pórtico constitucional da função social da empresa, corolário da própria função social da propriedade (CF, art.5º, XXIII).

Contemporaneamente, as empresas exercem uma função social.

A evolução paulatina dos bens de consumo e de produção fizeram com que os núcleos empresariais expandissem a sua área de ação, espargindo influências sobre toda a comunidade organizada.

Nesse ínterim, deflui a função social da empresa, aqui entendida como a tarefa básica que a mesma deve cumprir para a satisfação dos segmentos a ela ligados – empregados, acionistas, fornecedores, financiadores, distribuidores, consumidores diretos ou indiretos dos seus serviços e produtos.

Interessante observar que a função social da empresa é de índole externa corporis, porque não se limita à mera operacionalização dos seus interesses internos. Agrega em torno de si uma multiplicidade de fatores circundantes, de nítido colorido social, econômico, tecnológico e humanitário.

Por isso, a empresa desempenha uma iniludível função social, que vai desde a formação do seu quadro de empregados, chegando ao próprio Estado, por intermédio do recolhimento de tributos.

Resultado: ou se preserva o funcionamento regular da função social da empresa, num esforço conjunto de todos os segmentos organizados, ou se atropelam direitos sacrossantos.

Referimo-nos à garantia dos direitos sociais básicos – a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância – nos termos do art.6º, da Carta Maior, com redação dada pela Emenda Constitucional n. 26/2000.

Óbvio que a enumeração descrita é meramente exemplificativa, não esgotando o rol dos direitos sociais, que vêm espraiados em várias passagens da Constituição.

Tanto é assim que a educação, a saúde, a segurança, a previdência (ou seguridade social), a proteção à maternidade, à infância e a assistência aos desamparados são assuntos que receberam tratamento constitucional destacado, ex vi dos arts. 196 a 203, caput, I e II; 205 a 214; 227 a 229.

Agora, façamos uma pausa.

Suponhamos que as empresas deixem de funcionar pela não satisfação das condições mínimas de faturamento.

Perguntamos: como fica a sua função social diante do art.6º, da Constituição da República?

E mais: a função social da propriedade, também prevista na Lex Legum (art.5º, XXIII), que guarda conexão com a matéria, restará violada?

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Por certo, a manifestação constituinte originária sofrerá investidas, porque, tanto o art.6º, como o art.5º, inciso XXIII, não consignam meras simbologias.

Convém, em separado, evidenciar o motivo da constitucionalização de cada um desses preceptivos.

O Capítulo II, da Carta de 1988, inaugura-se trazendo a locução direitos sociais. Certamente, a terminologia é difícil de ser determinada, porque é plurissignificativa.

Logo, o seu sentido irá variar a depender do contexto em que for empregada. Disso emerge a enorme dificuldade de se delimitar uma linha conceitual para o que sejam direitos sociais.

Existe até algo de pleonástico se a tomarmos no sentido geral, pois todo direito é, em si mesmo, produto da vida em sociedade — ubi societas, ibi jus [22].

O modo mais consentâneo para obtermos o sentido, o alcance e a compreensão dos direitos sociais, na sistemática adotada pelo constituinte de 1988, parte do raciocínio de que o conflito entre o indivíduo e a sociedade leva a uma idéia mais estreita de direito social. A qualificação deste decorre da tutela do interesse do grupo contra o interesse particular do homem.

A adjetivação social, portanto, que qualifica o direito, opõe-se, pois, ao ser individual, para dar predominância ao interesse maior da comunidade, ainda que se esteja tratando de interesse nitidamente do indivíduo, tomado em si mesmo.

É que inúmeras prescrições da Carta de 1988 foram consagradas para a tutela de interesses individuais, o que pode parecer até um paradoxo.

No entanto, o que se busca é a satisfação do interesse particular, através de prestações positivas por parte do Estado, sem que isso leve ao sacrifício de toda a sociedade.

Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho sintetizaram bem essa idéia:

"Quando surja em frente duma manifestação do direito, no seu aspecto individual, um interesse concernente à coletividade, deixa aquela de ser atendida, subordinando-se à exigência do direito social" [23].

Direitos sociais, portanto, são aqueles que sobrelevam a esfera particular, para alcançar o todo, numa visão de generalidade e conjunto.

A sua compreensão deflui — com pujança e intensidade — sempre que for confrontado um interesse individual com um metaindividual, e vice-versa.

Por isso, funcionam como lídimas liberdades ou prestações positivas, vertidas em normas de cunho constitucional.

Desse modo, os Poderes Públicos devem agir para melhorar a vida humana, evitando tiranias, arbítrios, injustiças e abusos de poder.

E a função social da propriedade? Será que ela, por guardar coerência com a função social da empresa, repercute, de algum modo, no objeto do nosso estudo?

Acreditamos que sim.

No momento em que os vencedores de certames licitatórios são surpreendidos com alegações, no mínimo desproporcionais, é gerado um estado deficitário nas empresas, com prejuízos que se acumulam mensalmente, ao arrepio da legalidade (CF, art.5º, II).

Conseqüentemente, a função social da propriedade torna-se um enunciado oco, vazio, destituído de conteúdo palpável, nada obstante o fato de consignar uma vetusta garantia constitucional.

Realmente, o vetor da função social da propriedade veio prescrito na Constituição de 1988, seguindo a tradição constitucional brasileira de disciplinar a matéria.

Com exceção da Carta de 1937, as constituições brasileiras destacaram o temário.

Simples passar d’olhos nos textos de 1824 e 1891, arts. 179, 22 e 72, § 17, respectivamente, e veremos garantido, plenamente, o direito de propriedade.

O constituinte de 1934 foi pioneiro, relacionando os signos: propriedade e função social (art. 113, 17), enquanto o de 1937 nada evoluiu, porém retrocedeu, nada dizendo a respeito. A Lei Maior de 1946 retomou o progresso, condicionando o seu uso ao bem-estar social (art. 141, § 16), além de tornar possível a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos (art. 147).

Os Diplomas Constitucionais de 1967 e 1969 proclamaram, in verbis, ser finalidade da ordem social realizar a função social da propriedade (art. 157, III, da CF de 1967; art. 160, III, da CF de 1969).

E o legislador constituinte de 1988 mencionou quatro vezes a locução "função social da propriedade", nos arts. 5º, XXIII, 170, III, 182, § 2º, e 186, caput.

Sendo a Constituição o berço primário e originário da função social da propriedade, surgem algumas considerações.

A propriedade, na Carta de 1988, consiste num direito, destinado a cumprir uma função social. Não se trata, simplesmente, de uma função social, mas de um direito apto a exercer uma função social.

Se o protegido fosse a propriedade — "função social", então as propriedades que não estivessem cumprindo uma função social não seriam indenizadas. Ficariam, pois, perdidas sem qualquer proteção jurídica.

Em verdade, o que ocorre é a proteção constitucional da propriedade que não esteja desempenhando uma função social.

De outro lado, propriedade e direito de propriedade jamais se confundiram. A propriedade sempre existiu.

Em todas as épocas e fases da humanidade, ela fez parte da vida do homem. Como fato da vida econômica, a propriedade atravessou o tempo, brotando suas raízes desde os primeiros agrupamentos humanos.

Entre os povos de vida rudimentar, por mais rústicos que fossem, estava presente a idéia, ainda na sua forma embrionária, de ter, querer, usar, gozar, dispor de algo.

A índole materialista, ínsita à condição terrena, onde os seres humanos desejam aumentar quantitativa e valorativamente aquilo que possuem, ou almejam possuir, faz aparecer a concepção, mais ou menos clara, do que seja propriedade.

Presente na história das civilizações, foi evoluindo, paulatinamente, e demonstrando o individualismo da espécie humana. Por isso, identificaram-na como o mais amplo dos poderes, assegurados aos seres pensantes, com o escopo de confirmar a superioridade do querer, do desejo, da vontade de se realizar interesses [24].

O direito de propriedade, a sua vez, é a expressão positivada da propriedade, ou seja, corresponde à juridicização do fenômeno propriedade.

Nos ordenamentos que adotam o jus scriptum, o direito de propriedade é a inserção da propriedade na letra da lei, decorrendo daí o perfil que o legislador lhe confere. Pois é na Constituição, e na legislação compatível às suas normas, que reside o traçado, os contornos e as nuanças daquilo que chamamos de direito de propriedade, com todas as implicações e problemas daí suscitados.

Enfim, o direito de propriedade é a expressão jurídica da propriedade, comportando a adjetivação "função social".

Mas o que é "função social", locução que qualifica a palavra propriedade?

Trata-se de expressão imprecisa.

Stefano Rodotà, por exemplo, pela análise separada e sucessiva dos termos função e social, propôs o seu significado [25]. Dilucidou que o termo função opõe-se a estrutura, servindo para mostrar a maneira de operacionalizarmos um instituto, demonstrando seus caracteres particulares e notórios. No momento em que a ordem jurídica reconhece que o exercício dos poderes do proprietário não deveria ser protegido apenas para a satisfação de seu interesse, a função da propriedade passa a ser social.

Nesse ínterim, seriam três os aspectos da função social da propriedade:

• privação de certas faculdades;

• criação de condições para o proprietário exercer seus poderes; e

• obrigação de exercer certos direitos elementares do domínio.

A função social da propriedade resolver-se-ia pela diferenciação entre tipos particulares de bens, analisados à luz do fator econômico, bem como pela mudança das normas disciplinadoras da conduta do proprietário.

Assim, a propriedade chamada a absorver a função social não seria a propriedade direito-subjetivo, e sim a propriedade instituto-jurídico, evidenciando que a funcionalização não fere o conteúdo do direito.

Mais ambíguo, ainda, seria o qualificativo social, que adjetiva função.

Rodotà criticou a tese de que social é o mesmo que não-individualístico, raciocinando que a palavra corresponde a um padrão elástico, por meio do qual se transferem para a esfera legislativa ou para a órbita do magistrado certas exigências do momento histórico, nascidas como antítese no movimento dialético na aventura da humanidade.

Mesmo diante da complexidade do termo, os textos constitucionais incorporaram-no, convertendo-o num conceito jurídico fundamental, de uso freqüente no vocabulário legislativo.

Sem embargo, a função social da propriedade, conforme a Constituição de 1988, traduz-se pela investigação do sentido, significado e alcance do conjunto de todos os dispositivos que tratam da matéria. Tais preceitos constitucionais mantêm estreito vínculo de reciprocidade.

Esse conjunto de normas sobre a propriedade comprova que ela não é mais um simples direito individual. Se viesse prevista apenas como instituição econômica já seria o bastante (CF, art. 170, III).

É o caso das Constituições da Itália (art. 42) e de Portugal (art. 62), que enquadram a propriedade no bojo das relações econômicas.

Mas o constituinte de 1988 procurou reforçá-la em várias partes do texto, no intuito de não mais vê-la como instituição específica do direito privado, e sim voltada para assegurar a todos existência digna.

É válido lembrar que a interpretação jurídica coloca-se como um ato de vontade associado a um ato de conhecimento. Por isso, não há como fixar critério único para desentranharmos o sentido, o significado e o alcance de uma norma, inclusive a constitucional.

Acreditamos que inexiste "método por excelência" para a interpretação jurídica.

Daí termos utilizado podem e não devem, para afirmar que a função social da propriedade, na Constituição de 1988, participa de um conjunto de dispositivos que mantêm estreito vínculo de reciprocidade, quais sejam, os arts. 5º, XXIII, 170, III, 182, § 2º, e 186, caput.

Todas essas considerações têm que ver com o tema em análise.

Em primeiro lugar, não podemos imaginar a função social das empresas sem estudar, de início, a própria missão social da propriedade.

Para León Duguit, quando a propriedade despe-se daquela idéia que a associa ao direito subjetivo do indivíduo, ela tende a se tornar a função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária. As empresas, portanto, desempenhariam, à semelhança dos bens imóveis, função social, porque a propriedade não é um direito "intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder" [26].

Em verdade, nada impede aceitarmos a idéia da função social da empresa jungida ao vetor da função social da propriedade, porque sua extensão deve ser encarada sob o aspecto real do poder jurídico de disposição que compete ao titular desse direito.

Barcelona, consciente dessa constatação, gizou que a função social da propriedade deve basear-se numa atribuição de competência implícita, para que o titular intervenha no objeto do direito real e na qualificação das causas que justificam a intervenção [27].

Seria um inusitado absurdo empresas, que participaram regularmente de certames licitatórios, vislumbrarem suas prerrogativas violadas, com base em critérios e argumentos injustificáveis. Aí sim, os primados da moralidade, da impessoalidade, do respeito ao edital, da isonomia, dentre tantos, seriam frustrados, fulminando-se, de um súbito, a função social que o Texto Constitucional lhes outorgou.

Demais disso, é direito de toda a coletividade ver cumpridas as normas supremas do Estado, dentre elas a que assegura a concretização de licitações. Neste aspecto, vale lembrar que a comunidade titulariza os direitos sociais, correlatos, inexoravelmente, ao atendimento dos interesses do centros econômicos geradores de riquezas, de trabalho, de renda e impostos: as empresas.

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Sobre o autor
Uadi Lammêgo Bulos

Advogado Constitucionalista. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Constitucional (SBDC), Doutor e Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Autor de "Constituição Federal Anotada", "Curso de Direito Constitucional" e "Direito Constitucional ao alcance de todos" (Editora Saraiva).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BULOS, Uadi Lammêgo. Licitação em caso de parentesco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1855, 30 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11555. Acesso em: 23 dez. 2024.

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