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Licitação em caso de parentesco

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30/07/2008 às 00:00
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8.Parentesco e economicidade (CF, art.70, caput)

O art.70, caput, da Carta de 1988, contempla o princípio da economicidade.

Embora referido ditame não seja um vetor específico da seara das licitações, não resta dúvida de que a preocupação de se economizar recursos para a Administração Pública compactua-se com os próprios fins dos certames licitatórios.

Pelo art. 70 da Carta de 1988, foram erigidas, em quatro modalidades, as bases da fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades governamentais:

a) fiscalização da legalidade — vincula o administrador público ao império da lei, verificando a validade formal e material dos atos administrativos em face da Constituição e do ordenamento infraconstitucional;

b) fiscalização financeira — controla a aplicação das subvenções, a renúncia de receitas, as despesas e as questões contábeis;

c) fiscalização da legitimidade — as finanças públicas devem ser geridas conforme os objetivos politicamente aceitos pela nação, a qual cumpre ser informada sobre o modo de gestão da res publica; e

d) fiscalização da economicidade — às finanças públicas cumpre perseguir o princípio do custo-benefício. Logo, a despesa deve adequar-se à receita, de modo que os tributos pagos pela população tenham destino útil. Noutras palavras, deve-se diminuir o gasto e aumentar o lucro, em nome da eficiência administrativa (CF, art. 37, caput).

A fiscalização da economicidade, portanto, tem como supedâneo o vetor do custo-benefício.

É precisamente esse custo-benefício que constitui o leitmotiv dos concursos licitatórios, homenageando-se àqueles que podem vir a trazer benefícios econômicos para a Administração Pública.

Aplicando-se o cânone da economicidade na seara das licitações, a idéia de custo-benefício emerge com uma força notável, privilegiando-se os que possuem as condições materiais e financeiras para cumprirem as exigências de cunho governamental.

É precisamente nesse ponto que aparece o princípio da economicidade como diretriz impeditiva de investidas, algumas das quais levadas ao Poder Judiciário, contra os administrados que apresentaram, dentre todos os concorrentes, a oferta mais satisfatória ao interesse público.

No momento em que alegações de parentesco são levadas a cabo com o objetivo de compremeter o resultado do certame licitatório, se está, na realidade, frustrando o duplo objetivo das licitações: (i) impossibilitar que os entes governamentais obtenham as melhores propostas de negócios vantajosos para eles; e (ii) impedir que os administrados participem, isonomicamente, dos negócios governamentais, atentando, de uma só vez, contra todos aqueles princípios supra analisados.


9.Estado de direito democrático ou República de suposições?

Chegamos ao último tópico do nosso estudo.

A tese de que a simples relação de parentesco, por si só, compromete os certames licitatórios tem, em alguns casos, recebido o beneplácido do próprio Poder Judiciário.

Devido aos limites objetivos do presente trabalho, não adentraremos no mérito de quaisquer decisões.

Apenas queríamos registrar a existência de julgados que externam o problema da contextualização jurisprudencial equivocada.

Referimo-nos a certas sentenças, que, transcrevendo excertos que nada têm que ver com o tema, chegam à conclusão de que a mera ligação de parentesco já é o bastante para se fulminar certames licitatórios.

Tais decisões, entretanto, desconhecem que texto não é contexto, e, ainda quando não tenham tal propósito, acabam fomentando a febre do litígio nas licitações, onde os perdedores são estimulados a bater às portas do Poder Judiciário, enxudiando-lhe de pedidos e mais pedidos, abarrotando, mais ainda, a incomensurável carga de trabalho de juízes e Tribunais.

O resultado de tudo isso somente contribui para a existência de uma "República de suposições", onde todos são corruptos até quando se prove o contrário, transmutando-se, via mutação inconstitucional [28], o princípio da presunção de inocência (CF, art.5º, LVII).

Acontece, porém, que, ao menos pela fraseologia constitucional, a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito, escrito com letra maiúscula pela própria manifestação constituinte originária (CF, art.1º, caput).

Aliás, Estado de Direito, sem o qualificativo "Democrático", é tradução literal da palavra alemã Rechtsstaat, empregada desde o começo do século XIX.

Com o tempo, a terminologia incorporou-se ao vocabulário jurídico e político, significando o oposto de Polizeistaat – Estado de Polícia – avesso à parêmia "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (CF, art.5º, II).

No Brasil, o constituinte, inspirado na Carta Portuguesa de 1976 (art.2º), reforçou a idéia segundo a qual Estado de Direito e democracia, bem como democracia e Estado de Direito, são noções complementares.

Vêm juntas e não separadas, pois visam reforçar a concepção de que o Estado de Direito surge em oposição ao Estado de Polícia — aquele de tipo autoritário, que apregoava o repúdio às liberdades públicas, no sentido mais vasto e completo da expressão.

As conseqüências concretas de vivermos num Estado de Direito são fundas no plano das licitações.

Suponhamos que o Brasil fosse um Estado de Polícia (Polizeistaat).

Seria possível, ainda que inaceitável, o Poder Judiciário, deconsiderar os princípios e normas constitucionais, atenuando exigências de ordem formal, acatando considerações de cunho axiológico, para satisfazer toda sorte de pleitos.

Com base em juízos de valor, não no império da lei, seriam facilmente supressas as demais formas legais, inclusive aquelas previstas na Lei Maior – a Constituição do Estado.

Poderiam ser flexibilizados, por exemplo, todos os critérios para se realizar certames licitatórios. Então, pessoas físicas e jurídicas ficariam à mercê de toda sorte de pressões, diretas ou oblíquas. A exceção tornar-se-ia a regra, "institucionalizando-se", de vez, o arbítrio. E o argumento de fundo para a tomada de decisões seria a invocação de certos princípios, como a moralidade, a impessoalidade, a eficiência, a isonomia, pouco importando se os mesmos teríam, ou não, pertinência com os respectivos casos concretos em que estariam sendo invocados.

Porém, não estamos num Estado de Polícia (Polizeistaat), existindo o Poder Judiciário, cujos membros gozam de garantias constitucionais (CF,art.95), para decidir à luz do bom senso, da razoabilidade, da proporção.

É aí que entram os princípios constitucionais acima descritos.

Eles funcionam como elixir para o Poder Judiciário controlar e balizar, nos casos de sua competência constitucional, a produção de juízes e Tribunais (CF, arts.101 a 103).

Deveras, os magistrados podem cometer erros, equívocos, adotando procedimentos equivocados, oriundos de exegeses deturpadas, motivadas por argumentos ininteligíveis, não raro desarazoados.

Face a todos esses despautérios, e tantos outros, é que entram em cena os princípios constitucionais. Eles atuam como elemento balizador do emprego das formas processuais.

Quando elas – as formas processuais – são corrompidas, direta ou indiretamente, os princípios constitucionais devem ser invocados, não apenas para fins pedagógicos, mas, sobretudo, como standarts para se aquilatar a validade, ou a invalidade, dos atos do Poder Judiciário.

É que todos, sem exceção, do simples lavrador ao Presidente da República, submetem-se, inexoravelmente, à supremacia da Constituição, ipso facto, ao império dos princípios constitucionais.

Tanto os atos legislativos, administrativos e judiciais, como os atos praticados por particulares, irrogam-se à supremacia da Constituição brasileira, que esparge sua força normativa em todos os segmentos da ordem jurídica.

O pórtico da supremacia encontra-se implícito na ordem constitucional brasileira. Exige raciocínio indutivo para percebê-lo. Não está escrito em nenhum lugar, diferentemente das Constituições de Portugal de 1976 (art. 3° , 2 e 3) e da Espanha de 1978 (art. 9, 1 e 3), que o consagraram de modo expresso.

Mas isso pouco importa, afinal ele transcende os escaninhos da linguagem prescritiva do Texto de 1988, impregnando todo o articulado constitucional. Extrai-se do contexto da Constituição, da lógica geral das normas que a compõem (v. g., arts. 23, I, 25, 29, 32, 60, 78, 85, 102, 103, 121, §§ 3° e 4° , 125 etc.).


10 Conclusões

Eis o sumo das conclusões a que chegamos:

I – A problemática da licitação em caso de parentesco não foi, até o momento, regulamentada, especificamente, pelo Poder Legislativo, nada obstante algumas tentativas, de lege ferenda, formuladas a esse respeito. O resultado de tudo isso é o predomínio de exegeses absurdas, ensejando entendimentos estapafúrdios, e, até mesmo, decisões judiciais descontextualizadas, sem qualquer preocupação de se proceder um exame mais demorado da matéria. Não basta, por exemplo, mencionar princípios nodulares da Administração Pública, nem, tampouco, transcrever sentenças, proferidas num caso específico, para se chegar à presunção de que o parentesco, sponte propria, invalida o certame licitatório.

II – O edital é o coração da licitação. Por isso, não pode ter as suas artérias comprometidas por ilações traumatizantes. O fato de alguém ser parente de outrem não serve de estribo para se invocar, em toda e qualquer situação, ofensa aos primados reitores da Administração. Apenas se pode falar em fraude à moralidade, à impessoalidade e quejandos, submetendo-se, previamente, a matéria à lente da Constituição, amiúde, dos princípios constitucionais da razoabilidade (CF, art.5º, LIV), da dignidade da pessoa humana (CF, art.1º, III), da liberdade de trabalho (CF, art.5º, XIII), da livre iniciativa (CF, art.1º, IV), da função social da empresa (CF, art.5º, XXIII) e da economicidade (CF, art.70, caput).

III – Não se afigura prudente, razoável, lógico, invalidar certames licitatórios, provocando o Poder Judiciário, com base na alegação de que o elo de parentesco, por si só, caracteriza discriminação, conluio, parcialidade. O mero parentesco, tomado de per si, não é argumento idôneo para se firmar a presunção de que a moralidade, a impessoalidade, a isonomia etc., foram, realmente, conspurcadas. Nessa seara, não devem predominar o subjetivismo, os sentimentos, as impressões, os objetivos – confessáveis ou inconfessáveis – que brotam da mente humana. Do contrário, o parentesco seria, a priori, um atestado de má conduta. Se assim fosse, pais e filhos, tios e sobrinhos, primos e irmãos, apresentariam, desde o nascimento, o cancro da fraude, do favorecimento, da corrupção – uma grande estultice.

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IV – Imputar fatos inverídicos a alguém, inclusive na seara das licitações, sem qualquer comprovação insuscetível de dúvidas, com suporte no evasivo argumento de que o parentesco, por si só, é motivo ensejador de fraudes e favorecimentos, é um seriíssimo atentado contra o princípio constitucional da dignidade humana (CF, art.1º, III). Em tema de licitação, o vetor da dignidade humana funciona como um freio impeditivo de absurdos inaceitáveis, vedando que disposições editalícias, e da própria Lei 8.633/1993, sofram deturpações, com base em conjecturas desprovidas de qualquer supedâneo probatório.

V – Empresas vencedoras de certames licitatórios, que apresentaram a melhor proposta para a Administração, não podem ter as suas atividades interrompidas, em virtude de alegações desarrazoadas, verdadeiras "cascas de banana", jogadas ao largo do Poder Judiciário. Do contrário, o labor empresarial deixaria de ser livre, maculando-se um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CF, art.1º, IV).

VI – O art.9º, da Lei 8.666/1993 lista, taxativamente, o rol de hipóteses, com base numa ordem numerus clausus, pelas quais pessoas físicas ou jurídicas encontram-se impedidas de participarem, direta ou indiretamente, de licitações, nos termos ali previstos. Neste particular, só o Poder Legislativo, e mais ninguém, poderá regular a matéria, sob pena de ofensa direta ao disposto no art.22, XXVII, do Texto Magno. Assim, presentes os presupostos lógico – pluralidade de objetos e de ofertantes; jurídico – atendimento ao interesse público; e fático – presença de vários interessados em disputar o certame, nada poderá invalidar, do ponto de vista jurídico, a licitude e a legitimidade do certame licitatório. O contrário disso seria empreender interpretação inconstitucional de leis constitucionais.

VII – Quando se invoca o elo de parentesco, mediante exegese dilargada de preceitos editalícios e legais, comete-se uma afronta à livre iniciativa, abrindo-se ensanchas para a insolvência de empresas, geradoras de empregos e receitas.

VIII – A boa-fé nas relações travadas entre administrados e Administração Pública é a regra, enquanto a má-fé tem de ser provada, de modo líquido e incontestável, de sorte a não frustrar o verdadeiro telos da licitação: proporcionar às pessoas governamentais as melhores possibilidades para realizarem negócios mais vantajosos, ao mesmo tempo em que garante aos administrados a prerrogativa de participarem dos negócios estatais. Desse modo, a busca pela oferta mais satisfatória, com a respectiva escolha da melhor proposta apresentada, não é algo sujeito a interpretações subversivas e traumatizantes, sob pena de se burlar o pórtico constitucional da função social da empresa, corolário da própria função social da propriedade (CF, art.5º, XXIII). Seria um inusitado absurdo empresas, que participaram, de modo legal e legítimo, de licitações, vislumbrarem suas prerrogativas violadas, com base em critérios e argumentos injustificáveis. Aí sim, os primados da moralidade, da impessoalidade, do respeito ao edital, da isonomia, dentre tantos, seriam frustrados, fulminando-se, de um súbito, a função social que o Texto Constitucional lhes outorgou. Demais disso, é direito de toda a coletividade ver cumpridas as normas supremas do Estado, dentre elas a que assegura a concretização de licitações. Neste aspecto, vale lembrar que a comunidade titulariza os direitos sociais, correlatos, inexoravelmente, ao atendimento dos interesses do centros econômicos geradores de riquezas, de trabalho, de renda e impostos: as empresas.

IX – O princípio da economicidade funciona como óbice impeditivo de certas investidas, algumas das quais levadas ao Poder Judiciário, praticadas contra os administrados que apresentaram, dentre todos os concorrentes, a oferta mais satisfatória ao interesse público. Pela ótica da economicidade, no momento em que alegações de parentesco são levadas a cabo com o objetivo de compremeter o resultado do certame licitatório, se está, na realidade, frustrando o duplo objetivo das licitações: (i) impossibilitar que os entes governamentais obtenham as melhores propostas de negócios vantajosos para eles; e (ii) impedir que os administrados participem, isonomicamente, dos negócios governamentais, atentando, de uma só vez, contra todos aqueles princípios supra analisados.

X – As conseqüências concretas de vivermos num Estado de Direito são fundas no plano das licitações. Suponhamos que o Brasil fosse um Estado de Polícia (Polizeistaat). Seria possível, ainda que inaceitável, o Poder Judiciário, deconsiderar os princípios e normas constitucionais, atenuando exigências de ordem formal, acatando considerações de cunho axiológico, para satisfazer toda sorte de pleitos. Com base em juízos de valor, não no império da lei, seriam facilmente supressas as demais formas legais, inclusive aquelas previstas na Lei Maior – a Constituição do Estado. Poderiam ser flexibilizados, por exemplo, todos os critérios para se realizar certames licitatórios. Então, pessoas físicas e jurídicas ficariam à mercê de toda sorte de pressões, diretas ou oblíquas. A exceção tornar-se-ia a regra, "institucionalizando-se", de vez, o arbítrio, ainda quando o argumento de fundo para a tomada de decisões reporte-se a certos princípios, como a moralidade, a impessoalidade, a eficiência, a isonomia, que, nem sempre, guardam correspondência com o mérito dos problemas deduzidos em juízo, sendo, simplesmente, mencionados em contextos díspares, que nada têm que ver com o verdadeiro mérito do tema em discussão. Porém, não estamos num Estado de Polícia (Polizeistaat), existindo o Poder Judiciário, cujos membros gozam de garantias constitucionais (CF,art.95), para decidir à luz do bom senso, da razoabilidade, da proporção. É aí que entram os princípios constitucionais. Eles funcionam como elixir para o Poder Judiciário controlar e balizar, nos casos de sua competência constitucional, a produção de juízes e Tribunais (CF, arts.101 a 103).

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Sobre o autor
Uadi Lammêgo Bulos

Advogado Constitucionalista. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Constitucional (SBDC), Doutor e Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Autor de "Constituição Federal Anotada", "Curso de Direito Constitucional" e "Direito Constitucional ao alcance de todos" (Editora Saraiva).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BULOS, Uadi Lammêgo. Licitação em caso de parentesco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1855, 30 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11555. Acesso em: 23 dez. 2024.

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