8. A Aproximação ao Provimento Legítimo
O voto do Ministro Alexandre de Moraes, em nítido contraste, se aproxima desse ideal reconstrutivo. Em vez de isolar os fatos, ele os conecta em uma narrativa coerente, realizando o "jogo de dar e pedir razões" em sua própria fundamentação.
A Reconstrução do Sentido: Moraes não aplica mecanicamente a definição de "atos preparatórios". Ele reconstrói o sentido de "atos de execução" para o crime complexo de golpe de Estado, argumentando que a articulação entre os poderes, a elaboração de minutas e a mobilização de aparatos estatais já constituem o início da execução do plano (MORAES, 2025, 1h 15min 37s).
O Processo como um Filme: Sua análise trata o processo como um filme, onde cada cena (reuniões, mensagens, o 8 de janeiro) ganha sentido a partir da anterior, culminando em uma "resultante discursiva": a existência de uma organização criminosa com um plano contínuo (MORAES, 2025, 1h 7min 57s). Ele cumpre o mandato do Art. 8º do CPC, que exige do juiz uma aplicação que atenda aos "fins sociais e às exigências do bem comum" (BRASIL, 2015) — neste caso, a defesa da própria democracia.
9. O Problema "Fux versus Fux" e o "Ruído" na Justiça
O que torna o voto de Fux ainda mais problemático é a sua incoerência com seu próprio passado. Como apontado por analistas, Fux foi, em muitos casos, um juiz "ativista", que expandiu os poderes da Corte e flexibilizou garantias em nome do combate à corrupção. Sua súbita conversão a um "garantismo" purista gera o que os teóricos chamam de "ruído": a imprevisibilidade e a variabilidade indesejada nas decisões judiciais.
Se nem o mesmo juiz mantém uma linha coerente, como a sociedade pode confiar na previsibilidade da Justiça? Essa contradição pessoal, o "Fux versus Fux", transforma o Ministro em uma fonte de instabilidade, minando o ideal de integridade do direito, que, segundo o filósofo Ronald Dworkin, exige que a lei seja interpretada como um todo coerente e baseado em princípios consistentes.
10. Conclusão: A Escolha entre o Silogismo e a Democracia Processual
O confronto entre os votos de Fux e Moraes é, em última análise, uma escolha entre a segurança ilusória do silogismo e a difícil tarefa de construir uma decisão democrática, e se resume a: qual é o papel da lei diante de uma ameaça existencial?
O voto de Fux, embora tecnicamente sofisticado, representa uma regressão a um formalismo que a teoria processual moderna e o próprio CPC de 2015 buscaram superar (CARVALHO, 2024, p. 317-319). Aplicar a lógica de uma "vending machine" a uma conspiração para destruir a democracia é perigosamente ingênuo. É uma abordagem que, em nome da pureza formal, corre o risco de absolver a história e sinalizar que a preparação de um golpe não tem consequências. Sua "decisão mecânica", agravada pela contradição com sua própria biografia ("Fux versus Fux"), gera um "ruído" que corrói a previsibilidade e a confiança na Corte. É um voto que, ao se ater à forma, abdica da responsabilidade de julgar a substância.
O voto de Moraes, por sua vez, alinha-se a um paradigma mais robusto e legítimo, porque entende que a lei não é um manual de instruções estático, mas um instrumento vivo para a defesa dos valores constitucionais. Ele reconhece que a integridade do direito não está em repetir fórmulas antigas, mas em adaptá-las para dar a resposta mais coerente e justa aos desafios do presente. Ao reconstruir o direito em diálogo com os fatos, ele oferece um "provimento" que honra a "integridade do direito" não como uma fórmula estática, mas como a resposta coerente e fundamentada a uma ameaça real. Sua abordagem é superior porque reconhece que a legitimidade da justiça, em uma democracia, não emana da autoridade solitária de um juiz, mas da qualidade de um processo compartilhado e transparente (CARVALHO, 2024, p. 471), onde os cidadãos podem se ver como "co-autores da lei" (HABERMAS, 1997, v. I, p. 155).
Ambos os votos são, em certo grau, o produto de processos cognitivos não inteiramente racionais. Contudo, eles revelam duas respostas distintas a esse desafio.
O voto de Fux representa a irracionalidade da razão pura: ao tentar aplicar uma lógica formalista de maneira inflexível a uma realidade complexa e caótica, ele produz uma decisão que parece desconectada e, portanto, irracional para muitos observadores. É a falha de um método que se recusa a adaptar seus filtros à magnitude do problema.
O voto de Moraes, por outro lado, representa um esforço para construir uma racionalidade contextual. Ele parte de uma pré-compreensão clara (a defesa da Constituição) e a utiliza para reconstruir a lei de forma a responder à ameaça. Embora isso também seja um processo cognitivo sujeito a vieses (como o "raciocínio motivado"), ele se mostra mais legítimo por ser transparente em seu propósito e por se engajar diretamente com a substância dos fatos.
A superioridade do método reconstrutivo de Moraes reside em sua honestidade intelectual: ele reconhece a singularidade do caso e reconstrói a lei para enfrentá-lo, enquanto o método mecânico de Fux finge que o caso é ordinário para poder aplicar fórmulas antigas, um ato que, em si, é a mais profunda das irracionalidades.
Portanto, Moraes tem mais razão. Sua decisão, ao conectar os pontos e enxergar o processo contínuo da trama, faz mais justiça à gravidade dos fatos e cumpre com maior eficácia o dever do STF de ser o guardião da Constituição. Entre um voto que se perde em tecnicalidades e outro que defende a democracia, a história tende a validar o segundo.
Referências
ARIELY, Dan. Previsivelmente Irracional: As Forças Ocultas Que Moldam Nossas Decisões. Rio de Janeiro: Campus-Elsevier, 2008.
BRANDOM, Robert. Articulating Reasons: An Introduction to Inferentialism. Cambridge/London: Harvard University Press, 2001.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 mar. 2015.
CARVALHO, Carlos Eduardo Araújo de. A LÓGICA PROCESSUAL-RECONSTRUTIVA E O MÉTODO RECONSTRUTIVO-INFERENTE: DA DECISÃO MECÂNICA AO PROVIMENTO LEGÍTIMO. 2024. Manuscrito não publicado.
CARVALHO, Carlos Eduardo Araújo de. Inclinação preconceitual cognitiva nas decisões judiciais. 2024. Manuscrito não publicado.
CARVALHO, Carlos Eduardo Araújo de. Legitimidade dos Provimentos. Curitiba: Juruá Editora, 2009.
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FUX, Luiz. Voto na Ação Penal referente à trama golpista. Supremo Tribunal Federal, 2025.
HABERMAS, Jürgen. Facticidade e Validez: Sobre o Direito e o Estado Democrático de Direito em Termos de Teoria do Discurso. v. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
MORAES, Alexandre de. Voto na Ação Penal referente à trama golpista. Supremo Tribunal Federal, 2025. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1yBqVLHqi_Y. Acesso em: 11 set. 2025.
NUNES, Dierle; LACERDA, Rafaela; MIRANDA, Newton Rodrigues. O Uso do Precedente Judicial na Prática Judiciária Brasileira: Uma Perspectiva Crítica. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, n. 62, p. 179-196, jan./jun. 2013.