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Conflito aparente de normas.

Art. 40, IV, da Lei nº 11.343 e o Estatuto do Desarmamento

06/08/2008 às 00:00
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PROBLEMA POSTO

O presente estudo visa elucidar qual a norma de regência para os casos em que alguém sofre imputação pelo crime de tráfico de drogas, sendo que no contexto desta conduta há a utilização de arma de fogo, ainda que não empregada ostensivamente.

Para visualizar o problema posto, extremando de dúvidas o contexto do tráfico de drogas, basta imaginar a hipótese em que determinado indivíduo é flagrado em morro conhecido por seu "movimento", com quantidade relevante de drogas em depósito dentro de uma gruta, e no mesmo local é encontrada arma de fogo.

Tratando-se do mesmo contexto fático, depósito de drogas (tráfico) e das armas e munições, surge desde logo a dúvida sobre qual o enquadramento legal deve ser dado à hipótese sob comento, na medida em que normas distintas parecem disputar incidência sobre o fato, quais sejam, a que decorre da causa de aumento prevista no art. 40, inciso IV da lei 11.343, que prevê o emprego de arma de fogo ao crime de tráfico de drogas, ou as relativas aos crimes dos arts. 14 ou 16 lei 10.826 (vulgarmente conhecidos como porte ilegal de arma de fogo e munições, de uso permitido ou restrito), em concurso material com o art. 33 da lei 11343 (tráfico).

O tema não é objeto de pronunciamento jurisprudencial, tampouco a doutrina se ocupou enfrentá-lo especificamente, provavelmente pela novidade que representa a causa de aumento pelo emprego de arma de fogo constante do art. 40, IV, da lei 11.343, no cenário jurídico nacional.


DO CONFLITO APARENTE DE NORMAS

O ordenamento positivo, por pretender regular um número incontável de condutas, muitas vezes sobrepõe regras que parecem incidir sobre um mesmo fato. Todavia, para segurança do sistema, apenas uma regra deve ser a aplicável, razão pela qual a doutrina cuidou de organizar balizas para que se chegue a esta norma incidente ao caso concreto, o que avulta em importância em Direito Penal, através do instituto do conflito aparente de normas.

Com poder de síntese, leciona a professora Flávia Ferrer: "há dois pressupostos que conduzem à ocorrência do concurso aparente: a) unidade de fatos; b) pluralidade de normas que identificam o mesmo fato como delituoso." [01]

Pois bem, identificada a multiplicidade de normas sobre um mesmo fato, cumpre utilizar os princípios erigidos pela doutrina para se chegar à norma aplicável, e são eles, segundo o entendimento dominante, o da consunção, o da subsidiariedade e o da especialidade.

Para os estreitos limites deste trabalho afigura-se importante tratar de forma breve do princípio da especialidade, dada sua pertinência com o objeto do presente estudo, sendo tranqüilo afirmar que a norma é especial quando possua todos os elementos da norma geral, agregado algum fator extra na previsão legal que torne singular aquela conduta regulada em relação ao que está previsto na norma geral.

Ad colorandum, basta lembrar do homicídio, regra geral, e sua relação com o infanticídio. Se no homicídio, art. 121 do CP, o preceito primário diz "matar alguém", aí estaria inclusa também a conduta de uma mãe matar o seu próprio filho, sob a influência do estado puerperal, não fosse a previsão especial do art. 123 do CP, que agrega ao "matar alguém" o fato da vítima ser um recém nascido, e ainda que a autoria do crime caiba a sua mãe, sob influência do mencionado estado puerperal.

Ocorrente esta relação de especialidade, é a regra especial que deve ser aplicada, invocável a máxima latina "lex specialis derogat generali".

Exatamente por aplicação do princípio da especialidade é que no contexto do tráfico de drogas, havendo emprego de uma arma de uso restrito, por exemplo, aplicar-se-á o art. 33 com a causa de aumento do art. 40, IV [02], ambos da Lei 11.343, e não o concurso material entre o tráfico e o art. 16 [03] da lei 10.826.

Lembremos do pregão do tráfico flagrado em reportagem do falecido Tim Lopes, em que agente criminoso gritava a quem quisesse, e não quisesse, ouvir os preços das várias partidas da mercadoria espúria, com uma arma em punho, como a intimidar os circunstantes.

Até aqui dúvida não há, já que o termo empregar consta tanto na causa de aumento da lei de drogas quanto no estatuto do desarmamento, mas a especialidade determina o reconhecimento da majorante em detrimento do reconhecimento do crime autônomo da lei de armas.

A perplexidade surge quando não há o emprego ostensivo de arma de fogo no contexto do tráfico de drogas. Aqui retorno ao exemplo mencionado no início deste estudo, em que determinado indivíduo é flagrado em morro conhecido por seu "movimento", com quantidade relevante de drogas em depósito dentro de uma gruta, e no mesmo local é encontrada arma de fogo de uso proibido.

Note-se que se dermos interpretação literal ao verbo empregar, não haveria enquadramento típico para aplicação da causa de aumento da lei de drogas, considerado o exemplo dado, pois ter em depósito arma reclama tipicidade literal com os crimes do art. 14 e 16 do estatuto do desarmamento, e não com a causa de aumento referida.

Abram-se parênteses para salientar que os arts. 14 e 16 da lei 10.826 são tipos mistos alternativos, com vários núcleos além do verbo empregar, tais como ceder, adquirir, portar etc, onde são de se aplicar idêntico raciocínio ao que se está a empreender.

Todavia a interpretação literal do verbo "empregar" viola o princípio da proporcionalidade a marteladas. Explico-me.

Uma premissa que parece irrefutável é a de que o emprego efetivo da arma de fogo no contexto do tráfico traz mais danos à sociedade do que aquele traficante que tem armas em depósito.

Para figurar o emprego, como conduta mais perniciosa do que o depósito, basta imaginar pregão que se faz para o comércio espúrio, com arma em punho, em determinadas comunidades, na frente de crianças com uniforme escolar.

Vale dizer, com o efetivo e literal emprego da arma de fogo a violação ao bem jurídico é mais contundente do que na conduta de tê-la em depósito ou de portá-la, ocultando-a sob a blusa, já que a coletividade não visualiza o ilícito.

Pois bem, tomado o exemplo, que é o paradigma deste estudo, o traficante com arma em depósito terá uma pena substancialmente maior do que aquele que empregou a arma na literalidade do verbo.

O art. 16 da Lei 10.826 tem pena mínima de 03 anos, ao passo que a causa de aumento do art. 40 da lei de droga prevê aumento de 1/6 a 2/3 sobre uma pena mínima de 05 anos.

No exemplo telado, o traficante tem "apenas" uma arma de uso proibido em depósito, mas sofreria uma reprimenda de 03 anos (se ausentes outras circunstâncias ao agravo da pena), ao passo que se estivesse com ela em punho ameaçando alguém, num imaginário flagrante, a majoração da pena pela causa de aumento do art 40, IV da Lei 11.343 provavelmente conduziria ao mínimo, é dizer 1/6, o que levaria a um aumento de 10 meses de reclusão.

As duas soluções respectivamente quantificadas quanto à pena no exemplo telado: (1) concurso material entre tráfico e o crime da lei de armas, sem o emprego efetivo = 8 anos de reclusão; (2) o crime de tráfico de drogas com a causa de aumento do art. 40, IV da lei 1.1343, por não haver o literal emprego da arma de fogo (ter em depósito) = 05 anos e 10 meses de reclusão.

A violação ao princípio da proporcionalidade é evidente e injusta, pois aquele que agride com maior intensidade a incolumidade social tem pena substancialmente mais branda do que aquele que a afronta de forma menos grave.

O cenário fica mais aberrante se o caso for de associação ao tráfico, crime a respeito do qual o art. 40, IV da Lei 11.343 também é aplicável. Isto porque a base de cálculo sobre qual deve incidir a causa de aumento de 1/6 a 2/3 é menor, catapultando a violação ao princípio da proporcionalidade a patamares vexatórios.

Figure-se então um exemplo. Um "olheiro" do tráfico, com uma pistola de uso proibido na cintura (porte, e não emprego tradicionalmente considerado) é flagrado utilizando um rádio transmissor para fornecer a localização da polícia. Clássica hipótese de, "somente", associação ao tráfico, pois não foi encontrada droga com esse agente.

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O cúmulo material (soma das penas – art. 69 do CP) entre a associação e o porte de arma de fogo importa em 06 anos de reclusão (associação – 03 anos + porte – 03 anos), ao passo que, se esse associado apontasse esta pistola contra alguém no auxílio da mercancia espúria, seria condenado apenas por tráfico, aplicando-se a causa de aumento em 1/6, a importar em 03 anos e 06 meses de reclusão. 02 anos e 06 meses a menos de prisão, portanto, para aquele que pratica uma conduta bem mais nociva ao tecido social!

A diferença de tratamento em prejuízo da isonomia é retumbante.


DO CERNE DA CONTROVÉRSIA - INTERPRETAÇÃO DO VERBO EMPREGAR

A maneira juridicamente viável para contornar a iniqüidade apontada é elastecer a interpretação do que seja emprego da arma de fogo.

Ou seja, devemos nos despir do conceito desde sempre utilizado para majorar o crime de roubo, mediante emprego de arma (art. 157, parágrafo 2º, I do CP), consistente na efetiva utilização da arma para o sucesso da rapina violenta.

Não, o emprego de arma para o tráfico, que traduz no mais das vezes mercancia estável, empresa, tal como a dogmática do direito empresarial ensina, serve, na realidade carioca de grossos calibres, para garantir a dominância de áreas, verdadeiros estabelecimentos a céu aberto, e não precisam estar visivelmente dispostos nas mãos de seus agentes para que sirvam ao desiderato criminoso do tráfico de drogas.

Ao reverso, sabe-se que as armas de grosso calibre, algumas capazes de derrubar helicópteros, ficam escondidas para a hipótese de invasão de facções rivais, ou mesmo para rechaço de incursão policial, mas ninguém duvida de que tais armamentos pesados estão ali para garantia e respaldo da empresa em que se traduz o tráfico de drogas.

Vale dizer, ainda que não empregadas ostensivamente, tal qual sempre se considerou para configuração da majorante do emprego de arma de fogo ao crime de roubo (art. 157, parágrafo segundo, I do CP), são empregadas ao sucesso da empreitada que configura o tráfico de drogas.

Adotado este conceito, que se propõe, seria conferido tratamento isonômico aos casos apresentados a julgamento, permitindo ao magistrado dosar o quantitativo da reprimenda de acordo com o exame do caso concreto, variando a resposta em penal de 1/6 a 2/3 sobre as iras do art. 33 da Lei 11343.

O critério plasmado consiste em que as armas que sirvam ao tráfico são empregadas nesta atividade espúria, da maneira que for, ter em depósito, porte etc, disputando espaço com as normas do estatuto do desarmamento, em verdadeiro conflito aparente de normas, que deve ser resolvido pelo princípio da especialidade, na medida em que o tratamento das armas no contexto do tráfico de entorpecente tem regramento próprio na lei 11.343.


CONCLUSÃO

Alguém que intimida as pessoas com o emprego efetivo de arma de fogo ou lança perigo concreto de lesão, como na hipótese de disparo de arma de fogo, não pode sofrer reprimenda menor do que o sujeito que "simplesmente" porta ou tem em depósito uma arma de fogo ao exercício do tráfico de drogas, já que aquelas condutas agridem mais intensamente a ordem jurídica do que estas.

A lei de anti-drogas traz regra especial para incluir sob o seu manto todas as condutas possíveis de serem enquadradas ao manejo de armas na atividade do tráfico de entorpecentes, ao abrigo do verbo empregar, assim interpretado extensivamente para albergar o depósito, o porte etc.

Desta forma, há que se aplicar a causa de aumento do art. 40, IV da Lei 11.343 sempre que as armas estiverem sendo empregadas para o sucesso do tráfico de drogas, em detrimento do concurso material entre o tráfico e os arts. 14 e 16 da Lei 10.826.

O princípio do livre acesso ao judiciário não se limita a permitir o ingresso de demandas ao conhecimento de um juiz, mas, sobretudo que a justiça aplicada ao caso concreto seja efetivamente justa, o que não pode vingar quando duas condutas díspares em intensidade de violação ao bem jurídico tutelado permitam punições diametralmente opostas às intensidades que acarretam.

Não pode o desvalor maior sofrer reprimenda menor do que a conduta que é menos nociva ao sistema jurídico.

É uma questão de proporcionalidade. É uma questão de Justiça.


NOTAS

01 FERRER. Flávia. Escritos de Direito Penal e Processo Penal. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2002. p.12.

02 Art. 40 – As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se: IV - o crime tiver sido praticado com violência, grave ameaça, emprego de arma de fogo, ou qualquer processo de intimidação difusa ou coletiva;

03 Art. 16 – Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

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Sobre o autor
Vinicius Marcondes de Araujo

juiz substituto do TJ/RJ, pós-graduado em Direito Empresarial pela Universidade Cândido Mendes, ex-procurador federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAUJO, Vinicius Marcondes. Conflito aparente de normas.: Art. 40, IV, da Lei nº 11.343 e o Estatuto do Desarmamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1862, 6 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11561. Acesso em: 25 abr. 2024.

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