1. Usurpação da competência de vinte senadores (RISF, art. 380, II)
A grande mídia nacional noticiou, nos dias 6 e 7 de agosto de 2025, que o senador Cid Gomes informou que o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, “descartou qualquer possibilidade de dar andamento, neste momento, a pedidos de impeachment contra ministros do Supremo Tribunal Federal”. Disse ainda que “o presidente (do Senado) informou que a questão de impeachment (art. 52, II, da Constituição) é uma atribuição dele” e que “não há hipótese de colocar para votar essa matéria”.
A fala de Alcolumbre aconteceu durante a reunião de líderes realizada na residência oficial do Senado, na tarde de quarta-feira, 6 de agosto. Na ocasião, o presidente da Casa afirmou que a prerrogativa de pautar o impeachment de ministros era exclusiva dele e que “não pautará nem se todos os integrantes da Casa” assinarem o requerimento.
Segundo apurou o Metrópoles, o presidente disse que “não se trata de uma questão numérica”, e, sim, de uma “avaliação jurídica”.
Alcolumbre teria dito a integrantes do STF que “não vai admitir que a Presidência seja furtada do direito de exercer as prerrogativas do cargo (...) e decidir sobre o processo de impeachment de ministros do Supremo”.
A rigor, as declarações de ambos os senadores (e outros áulicos) devem ser consideradas bravatas, pois não estão previstas em lei nem no RISF (Regimento Interno do Senado Federal).
A questão de deliberar pelo recebimento ou não de processo de impeachment jamais foi atribuição do Presidente do Senado, mas de vinte senadores, integrantes de Comissão Especial (constituída por um quarto da composição do Senado), conforme determinam a Lei nº 1.079/1950, art. 44, e o RISF, art. 380, incisos I e II.
2. Legislação sobre o tema
Para aclarar a questão, veja-se o que diz a Lei 1079/1950:
Art. 44. Recebida a denúncia pela Mesa do Senado, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada a uma comissão especial, eleita para opinar sobre a mesma.
Art. 45. A comissão a que alude o artigo anterior, reunir-se-á dentro de 48 horas e, depois de eleger o seu presidente e relator, emitirá parecer no prazo de 10 dias sobre se a denúncia deve ser, ou não julgada objeto de deliberação. Dentro desse período poderá a comissão proceder às diligências que julgar necessárias.
Art. 48. Se o Senado resolver que a denúncia não deve constituir objeto de deliberação, serão os papeis arquivados.
Art. 49. Se a denúncia for considerada objeto de deliberação, a Mesa remeterá cópia de tudo ao denunciado, para responder à acusação no prazo de 10 dias.
Por sua vez, o Regimento Interno do Senado Federal, no Título X, Capítulo I, que trata especificamente do funcionamento do Senado como órgão judiciário, determina o seguinte:
Art. 380. Para julgamento dos crimes de responsabilidade das autoridades indicadas no art. 377, obedecer-se-ão às seguintes normas:
I - recebida pela Mesa do Senado a autorização da Câmara para instauração do processo, nos casos previstos no art. 377, I, ou a denúncia do crime, nos demais casos, será o documento lido no Período do Expediente da sessão seguinte;
II - na mesma sessão em que se fizer a leitura, será eleita comissão, constituída por um quarto da composição do Senado, obedecida a proporcionalidade das representações partidárias ou dos blocos parlamentares, e que ficará responsável pelo processo;
III - a comissão encerrará seu trabalho com o fornecimento do libelo acusatório, que será anexado ao processo e entregue ao Presidente do Senado Federal, para remessa, em original, ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, com a comunicação do dia designado para o julgamento;
3. Presidente do Senado não tem prerrogativa de pautar ou não pautar
Portanto, nenhum esforço especial é necessário para afirmar que o presidente do Senado não possui qualquer prerrogativa nem margem de discricionariedade para pautar ou não representações contra ministros do STF, bem como contra outras autoridades (PGR, AGU e integrantes do CNMP e do CNJ).
Ao contrário do que afirma, o presidente do Senado é obrigado a ler a denúncia no expediente da sessão seguinte (art. 44 da Lei nº 1.079/1950 e art. 380, inciso I, do RISF). Caberá a uma Comissão Especial formada por vinte senadores (art. 380, inciso II, do RISF e art. 44 da Lei nº 1.079/1950) emitir parecer, no prazo de dez dias (art. 45 da Lei nº 1.079/1950), declarando se a denúncia deve, ou não, ser julgada objeto de deliberação.
Caso o Senado (e não o seu presidente) delibere pelo não prosseguimento, a denúncia poderá ser arquivada (art. 48 da Lei nº 1.079/1950). Aqui, sim, estaria a “avaliação jurídica” a ser feita na análise da admissibilidade da representação, mas exclusivamente pelos senadores, e não pelo presidente nem pela Advocacia do Senado.
Ou seja, quanto à suposta “avaliação jurídica” que o presidente do Senado alega ser sua prerrogativa, a Lei nº 1.079/1950, art. 45, é clara ao determinar que essa atribuição cabe à Comissão Especial (vinte e um senadores), no prazo de dez dias, nos seguintes termos:
“A comissão a que alude o artigo anterior reunir-se-á dentro de 48 horas e, depois de eleger o seu presidente e relator, emitirá parecer no prazo de dez dias sobre se a denúncia deve ser, ou não, julgada objeto de deliberação.”
Apenas por amor ao debate, cumpre notar que a questão da representação contra ministros do STF e outras autoridades é tão excepcional que os ritos e procedimentos foram concentrados exclusivamente no Título X do Regimento Interno do Senado Federal. Nenhum poder especial é conferido ao presidente do Senado nessa matéria, nem mesmo na Lei nº 1.079/1950. Em suma, não há qualquer margem para o presidente pretender sub-rogar-se à Comissão Especial de vinte senadores.
Portanto, é por demais evidente que o Presidente do Senado, ao pretender avocar para si prerrogativas que não possui — em especial, sub-rogar-se em vinte e um senadores —, incorre em usurpação de função pública, conduta tipificada como crime nos termos do art. 328 do Código Penal.
4. Omissão do Presidente do Senado: caos constitucional e institucional
A omissão do senador Davi Alcolumbre (e de seu antecessor, Rodrigo Pacheco) nessa grave questão é a principal responsável pelo atual caos institucional e constitucional que assola os poderes da República. Tal conduta omissiva resultou, na prática, na abolição do sistema de freios e contrapesos (checks and balances), mecanismo de controle e influência recíproca entre os poderes, destinado a evitar abusos, garantir que nenhum se torne absoluto e, sobretudo, proteger a democracia e os direitos fundamentais dos cidadãos. Montesquieu deve estar se revirando no túmulo.
Vale dizer que essa omissão colocou o Congresso Nacional de joelhos perante o Poder Judiciário, implicando não apenas na anulação das prerrogativas do Legislativo e de seus parlamentares, mas também na abertura de espaço para um ativismo judicial incompatível com a Constituição, em violação aos arts. 49, XI, e 52, II, da Constituição Federal.
A situação é tão teratológica que prerrogativas de parlamentares (senadores e deputados federais) têm sido sistematicamente violadas em razão da inação e inércia do Presidente do Senado (que também preside o Congresso Nacional).
Cabe exclusivamente aos senadores a adoção das providências necessárias para solucionar essa grave controvérsia institucional, incluindo medidas cabíveis a serem aplicadas contra o agente causador — no caso, o próprio Presidente do Senado, caso persista no descumprimento de suas obrigações constitucionais e regimentais.
A remoção do imbróglio é uma das opções.