Resumo: A aprovação da chamada “PEC da Blindagem” reacende um antigo debate sobre os limites do poder político e a tentação de convertê-lo em privilégio. A proposta, ao condicionar o prosseguimento de processos criminais contra parlamentares à autorização prévia do Congresso e ao ampliar o foro privilegiado para presidentes de partidos, aproxima-se mais de um mecanismo de autodefesa do que de uma garantia institucional. O que se apresenta como proteção da independência parlamentar pode, na prática, significar impunidade. Este artigo busca compreender esse movimento não apenas sob a ótica jurídica, mas também a partir de suas implicações filosóficas e sociológicas, revelando os riscos de uma democracia que se habitua a conviver com divindades no lugar de cidadãos.
Palavras-chave: blindagem; impunidade; república; corporativismo.
INTRODUÇÃO
A Câmara dos Deputados aprovou, em dois turnos, a PEC 3/21, conhecida como “PEC da Blindagem”. A proposta altera significativamente as regras de responsabilização criminal de parlamentares, ao exigir autorização prévia do Legislativo para o prosseguimento de processos contra deputados e senadores. Essa autorização deverá ser concedida por maioria absoluta, em votação secreta, o que reforça o poder das próprias Casas sobre o destino de seus membros.
Além disso, o texto aprovado limita a possibilidade de prisão às hipóteses de flagrante de crime inafiançável, sujeitando a decisão final de manter ou revogar a prisão ao crivo do Parlamento, em até 24 horas, também em votação secreta.
Outro ponto central é a ampliação do foro por prerrogativa de função. A partir da proposta, presidentes de partidos com representação no Congresso também passam a ser julgados exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal. A proposta estabelece, ainda, que parlamentares só poderão ser alvo de medidas cautelares expedidas pelo STF, e não por instâncias inferiores da Justiça.
Todos os destaques que buscavam alterar ou suprimir esse dispositivo foram rejeitados, consolidando uma das medidas mais polêmicas do projeto. Para os defensores da PEC, o objetivo não é garantir impunidade, mas proteger o exercício parlamentar diante de eventuais abusos de outros Poderes, preservando, segundo eles, a independência do Legislativo e a soberania do voto popular.
Veja abaixo uma arte que apresenta as modificações propostas pela Proposta de Emenda à Constituição:
Fonte: Poder 360.
Embora tenha contado com o apoio de líderes de diferentes legendas e da oposição, a proposta enfrentou resistência expressiva, sobretudo de parlamentares que enxergam na PEC um enfraquecimento dos mecanismos de responsabilização.
O propósito deste artigo é ir além do óbvio e buscar compreender, de maneira mais ampla, as ideias filosóficas e sociológicas subjacentes a esse projeto, procurando responder se estamos diante de um legítimo escudo contra abusos de outros Poderes ou se o Parlamento se coloca, ele próprio, em um patamar de intocabilidade que desafia as bases do Estado Democrático de Direito.
1. A TENTAÇÃO DA SERPENTE
A serpente é sorrateira; sabe como exercer a tentação. Com seus objetivos nunca transparentes, provocou Eva até que esta desobedecesse ao Criador. O argumento irresistível foi: “Quando comerdes do fruto, sereis como Deus.”
Ora, a serpente era mais astuta que todos os animais do campo que o Senhor Deus tinha feito. E esta disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda a árvore do jardim?
E disse a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim comeremos,
Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais.
Então a serpente disse à mulher: Certamente não morrereis.
Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal . (Gênesis 3:1-5)
Trata-se de proposta irrecusável, certamente. No entanto, da mitologia grega à tradição judaico-cristã, há uma lição clara: os homens não podem se comparar aos deuses, pois estes são superiores; não podem se igualar a eles, pois são eternos. Um célebre exemplo é a história mitológica de Aracne:
Aracne era uma jovem tecelã na cidade de Lídia, famosa por sua habilidade no tear. Ela era conhecida por afirmar que suas habilidades de tecelagem eram superiores às da própria deusa Atena. Essa presunção e arrogância enfureceram Atena.
Atena, irritada com a afronta de Aracne, decidiu desafiá-la para uma competição de tecelagem. Elas concordaram em tecer cada uma, uma tapeçaria para provar quem era a melhor tecelã.
As duas começaram a tecer seus tapetes. Aracne criou uma tapeçaria incrivelmente bonita [...]. Quando Atena examinou o trabalho de Aracne, ela reconheceu a habilidade excepcional da jovem, mas ficou furiosa com a ousadia de Aracne em retratar os deuses de maneira desrespeitosa. A deusa, tomada pela raiva, destruiu a tapeçaria de Aracne e a golpeou na cabeça com seu fuso.
Em sua aflição, Aracne não suportou a humilhação e decidiu enforcar-se. Antes que ela pudesse completar o ato, Atena interveio para impedir que ela se matasse. No entanto, Atena não a deixou impune. Ela transformou Aracne em uma aranha para que ela passasse a eternidade tecendo suas teias, como um lembrete de sua arrogância e como uma punição por desafiar os deuses.
Os deuses gregos são irônicos e apreciam pregar peças nos meros mortais. Sibila de Cumas, por exemplo, pediu a vida eterna ao deus Apolo, que lhe concedeu o pedido com alegria. Porém, esquecera um detalhe fundamental: não pedira a juventude eterna. Os anos, as décadas e os séculos foram passando, e ela não morria, mas envelhecia. Chegou ao ponto de começar a se decompor em vida. O mito termina assim:
Conta Ovídio que, nas noites quentes da Campânia, as crianças ouviam a voz potente lamentar sua longa e velha vida. E as crianças, em algazarra, perguntavam: Sibila, o que anseias? E, em meio aos mais pungentes lamentos, a voz sussurrava, cava: Ah, eu, anseio morrer.
A grande questão que aqui se pretende desenvolver é a seguinte: os seres humanos nunca serão deuses, assim como não podem se considerar dotados de poderes divinos. Tal como Eva, Aracne ou Sibila sofreram consequências ao tentarem se igualar aos deuses, a história nos ensina que a pretensão de transcender limites fundamentais pode gerar distorções e injustiças. Estamos abaixo das divindades e estamos todos, entre nós mesmos, juntos de semelhantes, sem hierarquias inflexíveis.
No plano contemporâneo, essa lição ressoa no campo político: a PEC da Blindagem, ao instituir regras que colocam parlamentares acima da responsabilização comum, reflete uma tentação semelhante — a de erguer-se como intocáveis, ignorando que os cidadãos devem ser tratados com igualdade perante a lei.
É exatamente por isso que há um princípio constitucional de máxima relevância para o tema: o princípio da igualdade.
1.1. Diferentes, mas iguais
Somos todos diferentes. Cada indivíduo, dotado de sua capacidade narcísica de sujeito, constrói-se de maneira singular. Mas também, sob um prisma civilizatório, somos diferentes: negros têm experiências de vida distintas das dos brancos; mulheres enfrentam desafios diversos dos homens; pessoas LGBT vivem realidades distintas das de heterossexuais. Logo, somos diferentes, mas iguais.
Somos iguais naquilo que é mais fundamental: nossa condição de humanos e nosso direito de sermos tratados enquanto tais. Somos diferentes, por outra perspectiva, porque a sociedade se organiza em desigualdades, hierarquias e discriminações que facilitam ou dificultam a vida deste ou daquele grupo.
É por esse raciocínio que se compreende melhor a máxima aristotélica: “Devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”. É também com base nessa perspectiva que se deve interpretar a Constituição brasileira quando esta estabelece, em seu art. 5º, caput, que “todos são iguais perante a lei”.
Há, nesse diapasão, a possibilidade de que ocorra o fenômeno da desequiparação, desde que razoável e orientada a um fim legítimo, para “acertar, na diferença de cuidado jurídico, a igualação do direito à dignidade na vida” (ROCHA, 1990, p. 75). É fundamental que a igualdade ultrapasse os limites das frias letras da lei e tome forma na realidade fática da existência humana. Logo, embora possa parecer contraditório, desequiparar é um modo essencial de promover a igualdade — razão pela qual existem políticas públicas destinadas a compensar desigualdades estruturais e históricas, garantindo que todos tenham condições reais de acesso a direitos e oportunidades.
Assim, é necessário buscar a igualdade material ou substancial, e não apenas a igualdade formal. Em outras palavras, deve estar presente uma igualdade de fato, e não apenas de direito.
No tocante ao tema central deste artigo, é indispensável considerar que deputados e senadores realmente exercem atividades específicas e diferenciadas em relação aos cidadãos em geral, o que pode colocá-los em maiores riscos de serem processados ou de sofrer violência política, na medida em que estão mais expostos.
Entretanto, embora se possa travar longo debate sobre esse ponto, é imprescindível que haja razoabilidade nessa proteção. O que a PEC propõe é protegê-los em excesso frente à persecução penal, tornando-os quase inatingíveis — seres acima dos cidadãos brasileiros a quem deveriam servir. Não há razoabilidade em tal proposta.
No caso de aprovação final da PEC, parlamentares não serão “diferentes, mas iguais”; serão “diferentes e mais do que desiguais”.
2. CATILINÁRIAS: até quando abusarás da nossa paciência?
No Senado Romano, Cícero estava indignado. Catilina, também senador, tramava um golpe para derrubar a República. Profundamente exasperado, Cícero proferiu um célebre discurso:
Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia sem freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda nocturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem? Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, em que local estiveste, a quem convocaste, que deliberações foram as tuas?
Séculos se passaram desde a indignação de Cícero, mas a essência de sua pergunta permanece atual: até quando toleraremos o abuso de poder travestido de legitimidade? Se, em Roma, a ameaça era uma conspiração aberta contra a República, hoje o risco se apresenta sob a forma de normas e emendas, revestidas de legalidade formal, mas potencialmente corrosivas da própria democracia. A chamada PEC da Blindagem coloca-nos diante de dilema semelhante: até que ponto é aceitável que representantes do povo utilizem o próprio poder legislativo para erguer muros de proteção contra a lei comum?
A proposta, ao condicionar o processamento criminal de parlamentares à autorização prévia de suas próprias Casas, reforça a sensação de que se cria uma casta distinta, não apenas pela função que exercem, mas pela prerrogativa de escapar, em grande medida, ao controle jurisdicional. Tal como Catilina zombava da vigilância do Senado, nossos parlamentares parecem zombar dos mecanismos de responsabilização, sob o argumento de proteger o mandato da ingerência de outros Poderes.
O discurso de Cícero ecoa como advertência: quando a audácia não encontra freios, quando a ordem jurídica se curva diante de interesses particulares, a República adoece. A PEC da Blindagem, ao ampliar privilégios e acentuar a distância entre representantes e representados, obriga-nos a refletir sobre o risco de transformar a independência em impunidade.
3. EM NOME PRÓPRIO
Há no Brasil, com força ímpar, o fenômeno do corporativismo — das classes, dos sindicatos, das corporações profissionais. Esses grupos, em regra, buscam a proteção de seus próprios interesses e, nessa cruzada, quanto mais privilégios, melhor — ainda que jamais utilizem a palavra “privilégio”.
Portanto, resta aqui este apontamento final: é justamente esse o caso da chamada PEC da Blindagem.
Sob o pretexto de defender a independência do Parlamento e a soberania do voto, o que se observa é a tentativa de institucionalizar uma proteção que vai muito além das garantias necessárias ao livre exercício do mandato. O discurso é de imunidade; a prática, de impunidade.
Esse movimento revela não apenas um descolamento dos parlamentares em relação ao cidadão comum, mas também a lógica perversa de um sistema que se retroalimenta: o Poder Legislativo cria regras para preservar a si próprio, blindando seus membros de mecanismos de responsabilização que deveriam ser universais. Trata-se, portanto, de mais uma expressão de corporativismo que se confunde com autodeificação — o erigir-se acima do comum, como se a função pública fosse salvo-conduto para escapar ao Direito.
A questão que se impõe, então, é se o Brasil deseja fortalecer um regime de cidadãos iguais em dignidade e responsabilidade ou se aceita, silenciosamente, a formação de uma casta política cada vez mais distante, intocável e, paradoxalmente, cada vez menos republicana.
CONCLUSÃO
A análise da chamada PEC da Blindagem evidencia muito mais do que um ajuste técnico nas regras de responsabilização parlamentar: revela a tendência recorrente de nossas instituições a priorizar a autopreservação em detrimento do interesse público. A blindagem proposta não é apenas um dispositivo jurídico; é o sintoma de um sistema que insiste em criar exceções para si mesmo, alimentando a distância entre governantes e governados.
Se, em Roma, a audácia de Catilina escandalizava o Senado, no Brasil contemporâneo o risco se apresenta de forma mais sutil, por meio de normas que, sob a aparência de legalidade, corroem os fundamentos do Estado Democrático de Direito. A democracia não se fortalece quando seus representantes se tornam intocáveis; ao contrário, fragiliza-se diante da perda de credibilidade e do esvaziamento da ideia republicana de igualdade.
O texto segue agora para o Senado, onde precisará do apoio de 49 dos 81 senadores para ser aprovado. A expectativa é de que a tramitação encontre resistência, sobretudo na Comissão de Constituição e Justiça, cujo presidente já manifestou repúdio à proposta. Caso avance, a PEC consolidará mudanças profundas na forma como se dá a responsabilização criminal de parlamentares e dirigentes partidários, reconfigurando o papel do Legislativo na própria definição de seus limites.
Ao fim, a questão que se impõe não é apenas jurídica, mas ética e política: queremos um Parlamento que represente o povo ou um Parlamento que se proteja dele? A resposta a essa pergunta, mais do que a votação de uma PEC, definirá o tipo de República que desejamos construir: uma República de cidadãos iguais perante a lei ou uma de divindades blindadas contra ela.
REFERÊNCIAS
BÍBLIA Online. Gênesis 3. Versão Almeida Corrigida e Fiel. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/3. Acesso em: 19 set. 2025.
MIGALHAS. Câmara aprova PEC da blindagem que protege parlamentares de processos. Migalhas Quentes, 17 set. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/440285/camara-aprova-pec-da-blindagem-que-protege-parlamentares-de-processos. Acesso em: 19 set. 2025.
MORTE, D. Morte e imortalidade na mitologia grega. Sobremorte e Morrer, 2010. Disponível em: https://sobremorteemorrer.blogspot.com/2010/11/morte-e-imortalidade-na-mitologia-grega_07.html. Acesso em: 19 set. 2025.
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PODER360. Entenda o que pode mudar com a PEC da blindagem. Poder360, Brasília, 17 set. 2025. Disponível em: https://www.poder360.com.br/poder-congresso/entenda-o-que-pode-mudar-com-a-pec-da-blindagem/. Acesso em: 19 set. 2025.
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio constitucional da igualdade. Belo Horizonte: Editora Lê, 1990. p. 75.
SEMIDEUSES. Aracne, a Tecelã afrontosa. Semideuses, [s.d.]. Disponível em: https://www.semideuses.com.br/post/aracne-a-tecel%C3%A3-afrontosa. Acesso em: 19 set. 2025.