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A responsabilidade civil do médico e o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil

06/08/2008 às 00:00
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O parágrafo único do artigo 927, na primeira parte do seu texto prevê a responsabilidade objetiva para casos determinados em lei especial, responsabilizando o autor do dano de forma objetiva. Com a entrada em vigor do novo Código Civil ficam ressalvadas todas essas leis já existentes e também leis futuras que possam ser promulgadas considerando alguma atividade como perigosa, haja vista encontrar-se esse entendimento a cargo do Poder Judiciário.

Na segunda parte de seu texto o artigo trata da obrigação de reparar o dano, independente da prova da culpa, nos casos em que a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar risco aos direitos de outrem. São as chamadas atividades de risco, tratada no item 4.1 do presente trabalho.

O foco principal desse artigo é a inclusão, ou não, da atividade médica nesse rol, que traria aos médicos a responsabilização objetiva, fato esse ainda não pacificado pela doutrina e jurisprudência.

Para Roberto Lauro Lana, a jurisprudência e a doutrina estariam caminhando para a caracterização da prática médica como atividade perigosa:

Por outro lado, parece claro que a doutrina e a jurisprudência inclinam-se favoravelmente a considerar como atividades de risco, todas aquelas que colocam em risco a vida e a saúde humana, estendendo a abrangência do conceito das atividades de risco ao arbítrio do julgador, na ausência da norma reguladora, deixando com isso, uma porta aberta para a caracterização do próprio ato médico como sendo uma atividade de risco.

Destarte, cabe a obrigar a indenizar, desde que estabelecido o nexo causal entre a ação e a lesão causada pelo agente, por conseguinte configurando a responsabilidade objetiva em lugar da subjetiva. Da mesma maneira, a atividade do cirurgião, do odontólogo, e da maior parte dos profissionais de saúde podem igualmente ser caracterizada como atividades de risco. [01]

No mesmo diapasão, Celso Oliveira expõe:

Se o médico, no exercício regular de sua profissão, ocasionar danos ao seu paciente, será obrigado a indenizar, desde que fique provado o nexo de causalidade entre a conduta danosa e o resultado. Com a inovação do Novo Código Civil (Lei 10.406/02), no parágrafo único do artigo 927, admite-se, hoje, a responsabilidade objetiva quando a atividade desenvolvida pelo autor do dano, implicar, por sua natureza, riscos para o direito de outrem. Ora, a atividade médica, por sua própria natureza, implica em riscos para o direito de seu paciente, dentre eles, o mais importante é o direito à vida; logo, por esse artigo, deverá ser responsabilizado objetivamente se causar danos ao paciente. [02]

No mesmo sentido, Genival Veloso França leciona:

Ha certas profissões, e a Medicina é uma delas, que, por sua natureza e circunstancias, criam perigo de danos a outrem. Não existe medico, por menos experiente que seja ou paciente por mais ingênuo que possa parecer, que não estejam cientes do risco gerado na tentativa de salvar uma vida ou restabelecer uma saúde. Mesmo o mais tímido e discreto ato medico é passível de risco. [03]

Esse posicionamento doutrinário considera que a prática da medicina, por sua natureza, implica riscos aos direitos de outrem pelo fato de lidar com o maior bem jurídico tutelado: a vida.

Em sentido contrário, Neri Tadeu Câmara Souza preleciona:

Não é possível considerá-lo como um comando para tornar objetiva a responsabilidade do médico, nos casos de erro médico, haja vista o risco não ser criado pela sua atividade. (...) A atividade médica não é a geradora do risco a que é exposto o paciente mas, isto sim, a atuação do médico consiste em empregar os meios possíveis, nun determinado local e momento, para corrigir o desvio da sanidade física, ou mental, apresentada pelo paciente. O responsável pelo risco é a entidade nosológica – a doença – apresentada pelo paciente. Não há como transferir a responsabilidade pelo risco ao médico. Não é este o gerador do estado patológico do paciente com a prestação do seu serviço. O estado de doença em que se encontra o paciente, apresenta seus riscos inerentes – e próprios a cada entidade – em termos de evolução e também riscos, igualmente decorrente desse estado de doença, das investigações e tratamentos. [04]

Em outro artigo, o mesmo autor salienta:

O mesmo Artigo 927 do Novo Código Civil de 2002, em seu Parágrafo único: Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar por sua natureza, risco para os direitos de outrem. é norma nova, sem dispositivo que lhe corresponda no novo código civil. Não parece se adaptar este parágrafo único à atividade médica, visto esta não implicar por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Se riscos houver no agir do médico, têm, estes, como causa primeira a própria doença do paciente. São decorrentes da existência desta doença e não do ato médico. [05]

Parece ser mais acertado retirar do rol das atividades de risco a ciência médica, haja vista ser a patologia o fator de risco à saúde humana, e não a prática da medicina. A conduta do médico é sempre voltada à cura, utilizando, para tanto, os meios mais adequados. Como conseqüência, será aplicado ao médico a responsabilização subjetiva, enquadrando-o no caput do artigo supra mencionado, e não no parágrafo único.

A corrente doutrinária majoritária afirma não ser possível a responsabilização dos médicos sem que reste devidamente comprovada sua culpa, em qualquer das modalidades, seja ela imperícia, imprudência ou negligência, como expressa Fabio Ulhoa Coelho:

Não provada a culpa do profissional na adoção dos procedimentos recomendados pela ciência médica, o dano deve ser suportado pelo próprio paciente. [06]

No mesmo sentido, Antônio Jeová Santos:

A conduta do médico se submete aos princípios gerais que norteiam a responsabilidade civil. Se o médico, no curso de seu trabalho normal, causa dano a um paciente por culpa, emerge o dever de indenizar (...). [07]

Entretanto, pelo que se pode observar, este posicionamento não é unânime em nossos Tribunais, como ilustra o acórdão abaixo reproduzido, em que a prova da culpa do médico não foi efetivada, sob o fundamento de que acarretaria uma demora excessiva na resolução do caso, o que não estaria de acordo com os princípios do direito do consumidor. Mas, analisando a Lei, nº 8.078/90, percebe-se que o tratamento dado à responsabilidade dos profissionais liberais, inclusive dos médicos, é distinto do aplicado pelo Tribunal nesse acórdão. O Código de Defesa do Consumidor, no artigo 14, § 4º, preleciona que a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais deve ser apurada mediante a verificação de sua culpa. A prova da culpa é uma garantia dos profissionais liberais, que no caso em tela não foi resguardada, possibilitando à vítima acionar qualquer integrante da cadeia de prestação do serviço, inclusive o médico, que restou impossibilitado de fazer a prova de que laborou da maneira esperada, visando o melhor resultado possível no tratamento.

Tipo da Ação: AGRAVO DE INSTRUMENTO

Número do Processo: 2004.002.15488

Data de Registro : //

Órgão Julgador: DECIMA PRIMEIRA CAMARA CIVEL

Des. DES. JOSE C. FIGUEIREDO

Julgado em 06/10/2004

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. RELAÇÃO DE CONSUMO NA MODALIDADE DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS. ART. 88 DA LEI N° 8078/90. IMPOSSIBILIDADE. Lide que se funda em relação de consumo, sendo resguardado à parte acionar qualquer dos integrantes da cadeia de prestação de serviço, sem prejuízo da ação de regresso posterior, à vista da responsabilidade objetiva (art. 88, CDC). A discussão acerca da responsabilidade do médico, pautada em demonstração de culpa, implicaria dilação probatória que não se coaduna com os princípios do direito do consumidor e com os fundamentos do Estatuto do Idoso. RECURSO IMPROVIDO. [08]

No acórdão supra, não há discussão acerca da prova que o médico laborou com culpa, sob a explicação que isso demandaria tempo, e feriria alguns princípios garantidos aos consumidores e aos idosos. Mas, esta decisão também fere garantias constitucionais do médico, presumindo-lhe a culpa, não lhe dando a oportunidade de produzir a chamada "prova negativa", e tendo que buscar seus direitos através da propositura de outra ação: a ação de regresso em face dos integrantes da cadeia de prestação do serviço.

Os julgadores basearam-se no fato de ser a relação médico-paciente uma relação contratual de prestação de serviços. No julgamento desse agravo de instrumento, o Tribunal equiparou todos os integrantes da cadeia de prestação, aplicando a eles a responsabilidade objetiva imposta pelo Código do Consumidor no caput do artigo 14, que diz: "O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos." [09]

Cumpre ressaltar que não se pode equiparar o profissional com o local onde é prestado o serviço, como por exemplo, o hospital, que tem sua responsabilidade já pacificada no ordenamento, como sendo objetiva. Tanto é verdade que o mesmo artigo 14, § 4º, excepciona a responsabilidade pessoal do profissional liberal como sendo dependente da apuração de sua culpa: "A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa."

Genival Veloso França atenta para o fato de que os Tribunais, até pouco tempo, apenas caracterizavam a responsabilidade médica diante de um erro grosseiro ou uma forma indiscutível de negligência, e hoje em dia, apenas a existência de uma excludente de responsabilidade, como o caso fortuito ou de força maior, a culpa do próprio paciente, os atos de terceiro e a inexistência do nexo de causalidade, isentariam o profissional dessa responsabilidade, o que seguiria a tendência da responsabilização plena, objetiva, visto ser-lhes ato discricionário a interpretação do artigo 927 parágrafo único:

Pelo que se revela, a visão dos tribunais está se voltando para a reparação do dano, pouco importando que o resultado seja demonstrado por uma falha instrumental ou da ciência, quando a culpa do médico não chegou a ser comprovada. Esta responsabilidade do médico está presa pelo aspecto contratual que faz da relação médico-paciente um contrato de locação de serviços. Os julgadores não estão muito preocupados em examinar profundamente as razões subjetivas da culpa, senão apenas em reparar o dano. Houve até quem sentenciasse: Não há nada de imoral, mesmo na ausência da culpa, em obrigar a reparação da coletividade pública causadora do dano por atos de seus agentes. [10]

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Embora exista essa tendência de buscar a satisfação plena do autor da ação de possível erro médico e, considerando o avanço da ciência médica, a maioria da doutrina, e por conseqüência, da jurisprudência ainda trata a responsabilidade médica de forma subjetiva.

Segundo essa corrente, a atividade médica seguirá os trâmites dos artigos 186 e 951 do Código Civil, haja vista que o artigo 1.545 do C.C./1916, que tratava especificamente dos cirurgiões, médicos, farmacêuticos, parteiras e dentistas, não foi recepcionado pelo Código atual. Esses artigos em referência evidenciam a necessidade da verificação da culpa em qualquer das suas modalidades para caracterizar o dever de reparação, segundo os quais:

Art. 186

. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho. [11]

A presença de culpa em um ato médico é caracterizada pela imperícia, a imprudência ou a negligência e à vítima incumbe provar a culpa do agente, para obter a reparação do dano. Sobre isso, é conveniente acrescentar o que diz Siqueira Montalvão:

Para a caracterização da culpa médica, basta a simples voluntariedade de conduta, sendo, portanto a intenção desnecessária, pois, a culpa ainda que levíssima obriga a indenizar. [12]

Nesse sentido, ensina Miguel Kfouri Neto:

Não é propriamente o erro de diagnóstico que incumbe ao juiz examinar, mas sim se o médico teve culpa no modo pelo qual procedeu ao diagnóstico, se recorreu ou não, a todos os meios a seu alcance para a investigação do mal, desde as preliminares auscultações até os exames radiológicos e laboratoriais – tão desenvolvidos em nossos dias, mas nem sempre ao alcance de todos os profissionais – bem como se à doença diagnosticada foram aplicados os remédios e tratamentos indicados pela ciência e pela prática. [13]

Ao magistrado cabe verificar se houve culpa, não sendo preciso que a culpa do médico seja grave, bastando que seja certa. Esse agir culposo do médico necessita do nexo causal, ou seja, deve ser o gerador do dano ao paciente.

Em caso de culpa concorrente do médico e do paciente, não haverá exclusão da responsabilidade, mas cada uma das partes, envolvida no atendimento médico responde pela parcela da culpa que lhe couber. O problema da concorrência de culpa ocorre com freqüência nas equipes médicas e nos serviços de hospital, durante intervenções cirúrgicas e internamentos, e também nos casos em que o procedimento do paciente não foi o recomendado pelo médico, gerando falhas no tratamento, não tendo esse o resultado esperado.


Notas

  1. LANA, Roberto Lauro. Acesso em 15/08/05. Disponível em: <http://www.portaldeginecologia.com.br/modules.php?name=News&file=article&sid=98>
  2. OLIVEIRA, Celso, Acesso em 18/07/05. Disponível em:

    < http://conjur.estadao.com.br//static/text/31721,2>

  3. FRANÇA, Genival Veloso. Acesso em 14/07/05. Disponível em:

    <http://www.medicinalegal.com.br/artigos.asp?Crit=42>

  4. SOUZA, Neri Tadeu Câmara. Acesso em 15/07/05. Disponível em: <http//direito.medico.vilabol.uol.com.br/erromediconcc.htm>
  5. SOUZA, Néri Tadeu Câmara. Acesso em 15/08/05. Disponível em: <http://www.ccih.med.br/erro_medico_codigo_civil_2002.html>
  6. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil, volume 2, ed. Saraiva, São Paulo, 2002, p. 325.
  7. SANTOS, Antônio Jeová. Dano Moral Indenizável. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 251.
  8. BRASIL. TJRJ. Cível. Agravo de Instrumento. N. 2004.002.15488. Denunciação da lide. Relação de consumo na modalidade de prestação de serviços médicos. Relator: Dês. José C. Figueiredo. Acórdão: 06/10/2004.
  9. BRASIL. Lei n. 8.078. 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção de consumidor e dá outras providências. Art. 14.
  10. FRANÇA, Genival Veloso. Texto do livro "Direito Médico", 8ª ed., São Paulo: Fundo editorial Byk, Acesso em 15/08/05 no site: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/Revista%20PGE%2057-58.pdf>
  11. BRASIL. Lei n. 10.406. 10 de janeiro de 2002. Regula os direitos e obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e suas relações. Art. 186 e 951.
  12. MONTALVÃO, A. Siqueira. Erro Médico – Teoria, Legislação e Jurisprudência. Campinas/SP. Julex, 1998, v.I, p. 19.
  13. KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p.76/77.
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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPEZ, Elisa Vieira. A responsabilidade civil do médico e o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1862, 6 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11574. Acesso em: 22 nov. 2024.

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