Artigo Destaque dos editores

A ressalva contida na parte final da Súmula Vinculante nº 4 do Supremo Tribunal Federal e seus reflexos no Direito do Trabalho

Exibindo página 2 de 2
05/08/2008 às 00:00
Leia nesta página:

4 - Inadequação da técnica de declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, para a solução da controvérsia;

Não se mostra adequada à solução da controvérsia acerca da constitucionalidade da base de cálculo definida no artigo 192 da CLT a técnica tedesca denominada "declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade", à qual se refere a decisão da 7ª Turma do TST.

Por força dos princípios hermenêuticos da força normativa, da máxima efetividade, e da supremacia da Constituição, a adoção da referida técnica se mostra admissível se, e somente se, da não-aplicação do dispositivo legal não recepcionado, puder resultar vácuo jurídico intolerável para o ordenamento jurídico.

Materializa-se o vazio normativo insuportável quando a retirada da norma do ordenamento jurídico afete o exercício de direitos marcados pela nota da fundamentalidade, especialmente aqueles de natureza social, o que implicaria em afronta aos princípios da segurança jurídica e da vedação ao retrocesso social, o primeiro decorrente da própria existência do direito, e o segundo previsto no artigo 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).

Nesse sentido, GILMAR FERREIRA MENDES [04]:

"A tese segundo a qual, não obstante a declaração de inconstitucionalidade, a lei haveria de preservar a sua validade até a promulgação das novas regras, porque o Supremo Tribunal Federal, nos processos de controle de omissão, limita-se a declarar a inconstitucionalidade de determinadas situações jurídicas, não se compatibiliza com a idéia assente no direito brasileiro que considera nula a lei inconstitucional. A Constituição de 1988 não parece fornecer qualquer fundamento para a aplicação indiscriminada da lei inconstitucional. O princípio do Estado de Direito e a vinculação dos poderes estatais aos direitos fundamentais, estabelecida no art. 5º, § 1º, da Constituição, estão a indicar que não basta a promulgação de uma lei. A lei exigida pela Constituição, tal como ocorre no direito alemão, não pode ser qualquer lei, mas lei compatível com a Constituição.

O princípio do Estado de Direito (art. 1º), a vinculação dos poderes estatais aos direitos fundamentais (art. 5º, § 1º), a proteção dos direitos fundamentais contra eventual mudança da Constituição (art. 60, § 4º), bem como o processo especial para a revisão constitucional (art. 60) não só ressaltam a diferença entre lei e Constituição e estabelecem a supremacia desta sobre aquela, como também fixam as condições que devem ser observadas na promulgação das leis ordinárias.

Atribui-se, portanto, hierarquia de norma constitucional, também no Direito brasileiro, ao postulado da nulidade das leis inconstitucionais.

[...]

Aceita a idéia geral de que a declaração de inconstitucionalidade da omissão parcial exige a suspensão de aplicação dos dispositivos impugnados, não se deve perder de vista que, em determinados casos, a aplicação excepcional da lei inconstitucional traduz exigência do próprio ordenamento constitucional.

Isto poderia ser demonstrado com base no exame de algumas normas constitucionais que requerem, expressamente, a promulgação de leis. Um único exemplo há de explicitar esse entendimento. Nos termos do art. 7º, IV, da Constituição, o trabalhador faz jus a "salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família, com moradia, alimentação, educação, saúde, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo (...)". Essa norma contém expresso dever constitucional de legislar, obrigando o legislador a fixar salário-mínimo que corresponda às necessidades básicas dos trabalhadores.

Se o Supremo Tribunal Federal chegasse à conclusão, em processo de controle abstrato da omissão ou mesmo em processo de controle abstrato de normas - tal como ocorreu com o Bundesverfassungsgericht, a propósito da lei de retribuição dos funcionários públicos, em processo de recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde) -, que a lei que fixa o salário-mínimo não corresponde às exigências estabelecidas pelo constituinte, configurando-se, assim, típica inconstitucionalidade em virtude de omissão parcial, a suspensão de aplicação da lei inconstitucional - assim como sua eventual cassação - acabaria por agravar o estado de inconstitucionalidade. É que, nesse caso, não haveria lei aplicável à espécie.

Portanto, a suspensão de aplicação da norma constitui conseqüência fundamental da decisão que, em processo de controle abstrato da inconstitucionalidade por omissão e no mandado de injunção, reconhece a existência de omissão parcial. Todavia, ter-se-á de reconhecer, inevitavelmente, que a aplicação da lei, mesmo após a pronúncia de sua inconstitucionalidade, pode ser exigida pela própria Constituição. Trata-se daqueles casos em que a aplicação da lei mostra-se, do prisma constitucional, indispensável no período de transição, até a promulgação da nova lei.

Como a Constituição não contém qualquer decisão a respeito, devem ser regulamentadas por lei as importantes questões relacionadas com a superação desse estado de inconstitucionalidade. No interesse da segurança, da clareza e determinação jurídicas, deveria o legislador editar uma regra sobre suspensão de aplicação e legitimar o Supremo Tribunal Federal a, sob determinadas condições, autorizar a aplicação do direito inconstitucional, nos casos constitucionalmente exigidos. De lege ferenda, poder-se-ia cogitar do estabelecimento de prazos dentro dos quais seria admissível a aplicação da lei inconstitucional."

Atente-se que a incompatibilidade entre a base de cálculo definida no artigo 192 da CLT e o disposto no artigo 7º, IV, "in fine", da Constituição, não se resolve mediante declaração de inconstitucionalidade da norma celetista, mas pela conclusão de sua revogação, por não-recepção.

Configura-se, assim, verdadeira omissão do Poder Legislativo quanto à atualização do corpo normativo anterior, à luz da nova ordem constitucional, aplicando-se à hipótese, portanto, o raciocínio exposto pelo Ministro GILMAR MENDES, no trecho acima transcrito.

No entanto, a revogação da norma celetista foi parcial, na medida em que o artigo 7º, XXIII, da Constituição de 1988 também garantiu aos trabalhadores, como direito fundamental, a percepção de adicional pelo serviço em atividades insalubres, sendo incompatível com o inciso IV do mesmo dispositivo, apenas, a base de cálculo definida no artigo 192 da CLT.


5 - O recurso à analogia como alternativa à adoção da técnica da declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade;

Diante disso, o juízo de revogação da norma celetista, no tocante à base de cálculo do adicional, não implica em vácuo jurídico intolerável que comprometa a ordem jurídica, de forma a justificar uma declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade.

É que existe no ordenamento jurídico brasileiro norma compatível com a Constituição de 1988 que viabiliza o contínuo pagamento do adicional de insalubridade, sem que seja necessário manter o estado de inconstitucionalidade decorrente da aplicação do artigo 192 da CLT.

Trata-se do artigo 193, § 1º, da CLT, que define como base de cálculo do adicional de periculosidade, igualmente previsto no artigo 7º, XXIII, da Constituição de 1988, o salário base do empregado, sem outros acréscimos de natureza remuneratória, nos seguintes termos:

"Art. 193, § 1º - O trabalho em condições de periculosidade assegura ao empregado um adicional de 30% (trinta por cento) sobre o salário sem os acréscimos resultantes de gratificações, prêmios ou participações nos lucros da empresa."

A identidade dos fundamentos que levaram o constituinte a garantir, como direito fundamental dos trabalhadores, o pagamento dos adicionais de periculosidade e insalubridade, viabiliza a aplicação analógica da norma prevista no artigo 193, § 1º, da CLT, de forma a suprir a omissão legislativa quanto à necessidade de atualização do artigo 192, no tocante à base de cálculo nele definida.

O recurso à analogia, nessa situação, mostra-se preferível à manutenção do estado de inconstitucionalidade decorrente da contínua aplicação do artigo 192 da CLT, sem que o Poder Judiciário se imiscua nas atribuições inerentes ao Poder Legislativo, mediante fixação de base de cálculo distinta daquela prevista em lei.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Essa foi a opção do TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO, que resolveu, em sessão plenária realizada em 26/06/2008, rechaçar a tese jurídica adotada pela sua 7ª Turma na decisão já mencionada, ao dar nova redação à Súmula 228, para definir o salário básico do empregado como base de cálculo do adicional de insalubridade, a partir de 09/05/2008, data da publicação da Súmula Vinculante 4, nos seguintes termos:

"SÚMULA 228. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. BASE DE CÁLCULO. A partir de 9 de maio de 2008, data da publicação da Súmula Vinculante n.º 4 do Supremo Tribunal Federal, o adicional de insalubridade será calculado sobre o salário básico, salvo critério mais vantajoso fixado em instrumento coletivo."

Por essas razões, concordo com o entendimento firmado na nova súmula 228 do TST, para concluir que o adicional de insalubridade previsto no artigo 192 da CLT deve ser calculado sobre o valor do salário básico do empregado, por aplicação analógica do art. 193 da CLT.


6 - Da viabilidade da modulação temporal dos efeitos da declaração de revogação por não recepção, e o princípio constitucional da segurança jurídica;

Observe-se que, na nova redação dada a sua Súmula 228, a Corte Superior Trabalhista resolveu modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, ou melhor, da declaração de revogação, por não recepção, da base de cálculo definida no artigo 192 da CLT.

A referida modulação temporal dos efeitos encontra previsão no artigo 27 da Lei 9.868/1999, que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o STF, cujo teor é o seguinte:

"Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado."

Observe-se que, nada obstante se refira, apenas, à modulação dos efeitos no controle concentrado de constitucionalidade, a previsão legal não exclui a adoção da técnica no controle difuso, que se mostra possível, em respeito ao princípio da segurança jurídica, e aos postulados da lealdade, da boa-fé e da confiança legítima, sobre os quais se assenta o próprio Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, GILMAR FERREIRA MENDES [05]:

"Embora a Lei n. 9.868, de 10-11-1999, tenha autorizado o Supremo Tribunal Federal a declarar a inconstitucionalidade com efeitos limitados, é lícito indagar sobre a admissibilidade do uso dessa técnica de decisão no âmbito do controle difuso. Ressalte-se que não se está a discutir a constitucionalidade do art. 27 da Lei n. 9.868, de 1999. Cuida-se aqui tão-somente de examinar a possibilidade de aplicação da orientação nele contida no controle incidental de constitucionalidade. [...] Ressalte-se que o modelo difuso não se mostra incompatível com a doutrina da limitação dos efeitos. [...] Não parece haver dúvida de que, tal como já exposto, a limitação de efeitos é decorrência do controle judicial de constitucionalidade, podendo ser aplicado tanto no controle direto quanto no controle incidental."

No entanto, a referida modulação de efeitos se justifica, tão somente, nos casos em que a situação jurídica já esteja consolidada e definitivamente resolvida, de forma a preservar a lealdade, a boa-fé e a confiança legítima dos indivíduos no ordenamento jurídico e na norma aparentemente em vigor, a exemplo dos contratos de trabalho nos quais, mesmo após a Constituição de 1988, houve pagamento do adicional de insalubridade com base no salário mínimo, nos termos do que dispunha o artigo 192 da CLT, e a antiga orientação contida na Súmula 228 do TST.

Por esse motivo, entendo que a modulação temporal de efeitos promovida pelo TST na nova redação de sua Súmula 228 não se aplica às demandas judiciais pendentes em que a questão controvertida seja o próprio direito do trabalhador ao pagamento do adicional de insalubridade, por serviços prestados em ambiente insalubre antes de 09/05/2008, data da publicação da Súmula Vinculante 04 do STF.

É que, nesses casos, como não houve pagamento do adicional, não há lealdade, boa-fé, e confiança legítima a serem tuteladas, sendo insustentável, pois, a modulação dos efeitos.

Por outro lado, nas situações em que a controvérsia se referir à existência da insalubridade no local de trabalho, não se mostra aplicável a modulação temporal de efeitos, da prevista na Súmula 228 do TST.

Nessas hipóteses, o adicional de insalubridade não deve ser calculado sobre o salário mínimo, nem sobre o conjunto remuneratório, mas sobre o salário básico do empregado, sem acréscimos, conforme previsão do artigo 193 da CLT, de aplicação analógica.


Notas

  1. STRECK, Lenio Luiz. O Fahrenheit Sumular do Brasil: O Controle Panóptico da Justiça. Disponível em: <http://leniostreck.com.br/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=17&Itemid=40>. Acesso em: 07 jul. 2008.
  2. SGARBOSSA, Luís Fernando; JENSEN, Geziela. Súmula vinculante, princípio da separação dos poderes e metódica de aplicação do direito sumular. Repercussões recíprocas. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1798, 3 jun. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11327>. Acesso em: 18 jun. 2008.
  3. Idem, ibidem.
  4. MENDES. Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. - São Paulo: Saraiva, 2008. p. 1263-1266.
  5. MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit. p. 1096-1099
Assuntos relacionados
Sobre o autor
Fernando Luiz Duarte Barboza

Assessor de Juiz no TRT da 13ª Região

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOZA, Fernando Luiz Duarte. A ressalva contida na parte final da Súmula Vinculante nº 4 do Supremo Tribunal Federal e seus reflexos no Direito do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1861, 5 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11575. Acesso em: 20 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos