Por decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, um casal perdeu os direitos parentais sobre a adolescente que havia adotado e foi condenado a pagar R$ 100.000 de indenização à jovem (1). Este não é um mero processo de família. É um veredito sobre a própria natureza da paternidade, um julgamento que transcende o papel e penetra na alma.
A paternidade, em sua essência, pode ser vista como um contrato. Algumas de suas cláusulas são visíveis, escritas com a tinta indelével da lei: o dever de sustento, a obrigação de educar, a responsabilidade de prover um teto. Contudo, as cláusulas mais vitais, aquelas que verdadeiramente dão vida ao pacto, são redigidas com a tinta invisível da conexão humana: o cuidado, a presença, o afeto. O caso catarinense nos força a confrontar uma questão lancinante: o que acontece quando estas cláusulas não escritas são violadas de forma tão brutal? Pode um tribunal, com suas ferramentas de lógica e precedente, colocar um preço em uma ferida aberta na alma de uma criança?
Longe de ser uma anomalia judicial, essa decisão representa um deslocamento tectônico que afasta a responsabilidade parental da esfera puramente material e a insere no domínio profundamente pessoal e psicológico. Este artigo se propõe a dissecar essa evolução, viajando da letra fria da lei à realidade complexa e, por vezes, insuportavelmente dolorosa da vida familiar, para entender como o Judiciário brasileiro está, lentamente, aprendendo a julgar os crimes do coração.
Retrato do Abandono: uma Sentença Devastadora
A história que culminou na decisão da Vara da Infância e Juventude da Grande Florianópolis é um roteiro de promessas quebradas. Um casal, após passar por todo o processo legal, adota uma adolescente, assumindo perante o Estado e a criança o compromisso solene de serem seus pais. Contudo, o que deveria ser a construção de um lar transformou-se em um campo de batalha emocional. A relação deteriorou-se a ponto de a adolescente precisar ser novamente acolhida em uma instituição, após a rede de proteção e a comunidade escolar denunciarem um padrão de negligência severa (2).
O ponto fulcral da decisão judicial foi a caracterização da conduta do casal como "abandono afetivo qualificado". Este termo jurídico é crucial. O tribunal não estava julgando uma simples ausência ou um distanciamento emocional, mas sim uma omissão agravada por "práticas de violência e humilhação" (1). Laudos sociais e psicológicos, peças-chave no processo, não apenas confirmaram a ausência de qualquer vínculo afetivo, mas também atestaram a inviabilidade de uma reintegração familiar, tamanha a profundidade do dano (1). A adolescente foi submetida a castigos físicos e psicológicos, isolamento dentro da própria casa e episódios de exposição vexatória. A corte entendeu que essas práticas degradantes e violadoras da integridade física e psíquica da jovem elevavam o abandono de uma falha passiva de cuidado para uma campanha ativa de destruição psicológica.
A resposta do Judiciário foi dupla e implacável, atacando o problema em duas frentes distintas: a legal e a reparatória.
Destituição do Poder Familiar: Esta é a sanção mais tradicional e drástica prevista no ordenamento jurídico, a "pena capital" para a parentalidade falha. É o ato pelo qual o Estado formalmente corta o laço jurídico que une pais e filhos, reconhecendo que os genitores falharam de forma irremediável em seus deveres fundamentais de cuidado, previstos tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quanto no Código Civil (3). Ao destituir o casal, o tribunal essencialmente declarou o "contrato" parental nulo por quebra irremediável de suas cláusulas essenciais.
Indenização por Abandono Afetivo: Aqui reside o aspecto revolucionário da sentença. A condenação pecuniária não visa "comprar" o afeto perdido ou apagar as cicatrizes. A decisão explicitamente atribui à indenização uma "função pedagógica" (1). É uma mensagem retumbante, não apenas para o casal em questão, mas para toda a sociedade: a parentalidade, uma vez assumida, é uma responsabilidade irrevogável. Sua violação não gera apenas consequências morais, mas também um débito tangível e monetário. O valor, R$ 50.000 para cada genitor, foi considerado proporcional à gravidade do dano e serve como um poderoso desestímulo a condutas semelhantes.
A paternidade biológica pode, em certas circunstâncias, ser um acidente do destino. A adoção, no entanto, é sempre um ato de vontade, uma escolha deliberada, consciente e mediada pelo sistema legal. Os pais adotivos não tropeçam na paternidade; eles peticionam ativamente ao Estado pelo direito e pelo dever de se tornarem a família de uma criança. Este ato de escolha cria uma expectativa mais elevada e, consequentemente, um dever de cuidado mais profundo. O abandono por pais adotivos, portanto, não é apenas uma falha de afeto; é a traição de uma promessa solene feita tanto à criança quanto ao sistema jurídico que lhes confiou aquela vida. A dureza da decisão catarinense pode ser interpretada como um reconhecimento judicial dessa responsabilidade agravada (4). A "devolução" de um filho adotivo, um termo frio que mascara uma realidade brutal, está sendo reconfigurada pela Justiça, deixando de ser vista como um fracasso pessoal para ser tratada como uma violação legalmente acionável de um pacto autoimposto. Este caso sinaliza que os tribunais podem estar inclinados a aplicar um padrão ainda mais rigoroso de cuidado aos pais adotivos, reconhecendo que o trauma de um segundo abandono é uma forma de crueldade singularmente devastadora.
Psicanálise da Dor e da Deserção
Para compreender a magnitude da sentença de Santa Catarina, é preciso ir além dos autos do processo e mergulhar no território da psique humana. O que o Direito chama de "dano moral", a psicanálise entende como uma ferida estruturante, uma lesão na própria fundação da personalidade.
A psicanálise ensina que a relação primordial com as figuras parentais fornece a "estrutura das outras relações que serão estabelecidas ao longo da vida" (5). O abandono, portanto, não é um evento isolado; é um terremoto que abala essa estrutura fundamental, deixando fissuras que podem perdurar por toda a existência. Com base nas teorias de Freud, Winnicott e, especialmente, na Teoria do Apego de John Bowlby, os impactos psicológicos são profundos e multifacetados (6).
A criança abandonada internaliza a rejeição não como uma falha do genitor, mas como prova de sua própria inadequação, nutrindo a crença paralisante de não ser digna de amor, o que pode levar a um padrão de autossabotagem em relações futuras (7). A ausência de um porto seguro emocional leva ao desenvolvimento de estilos de apego inseguros — ansioso, esquivo ou desorganizado — que transformam a intimidade em um campo minado de medo e desconfiança (7). A dor psíquica, quando não elaborada, manifesta-se em sintomas concretos: depressão, crises de ansiedade, isolamento social, dificuldades de aprendizagem e até problemas de saúde física (8). Inconscientemente, o indivíduo pode ser compelido a recriar o trauma original, buscando parceiros que o rejeitem ou abandonem, numa tentativa desesperada e paradoxal de, desta vez, "consertar" o resultado, um fenômeno conhecido como compulsão à repetição (9).
Seria simplista e insuficiente pintar os pais que abandonam apenas com as cores da vilania. A psicanálise nos convida a uma análise mais profunda, explorando as complexas e muitas vezes inconscientes motivações que levam um adulto a cometer um ato tão devastador, especialmente no contexto da adoção, que é um ato de escolha.
Muitas vezes, os pais que abandonam estão, sem saber, reencenando seus próprios traumas de infância, repetindo com seus filhos o mesmo padrão de negligência ou rejeição que sofreram (8). A criança real, com suas falhas e necessidades, pode não corresponder à fantasia idealizada pelos pais. Essa dissonância pode infligir uma "ferida narcísica" insuportável, levando-os a rejeitar o filho que não cumpre o papel de espelho de sua perfeição. Isso é especialmente perigoso na adoção, onde as fantasias sobre o "filho ideal" podem ser particularmente intensas (10). Alguns pais simplesmente não conseguem criar um "espaço psíquico" para o filho. A criança permanece como um corpo estranho, um "intruso" em sua dinâmica emocional, que eventualmente precisa ser expelido para restaurar um equilíbrio precário (11). E, por fim, a ausência de cuidado pode gerar consequências psicológicas para os próprios pais, que podem ser assombrados mais tarde na vida por sentimentos de culpa e arrependimento, percebendo tardiamente o peso de sua omissão (8).
O que estamos testemunhando é a progressiva juridificação da psique. Historicamente, o "dano moral" estava ligado a ofensas à honra pública ou à reputação. Sua aplicação à dor emocional intrafamiliar é uma inovação radical. Para que essa dor se tornasse legalmente "real", os tribunais precisaram de uma nova linguagem, um novo arcabouço para descrevê-la e validá-la. A psicologia e a psicanálise forneceram esse léxico (12). As decisões judiciais, como a de Santa Catarina, dependem cada vez mais de laudos periciais para estabelecer a existência e a gravidade do dano psicológico (1). Termos como "trauma", "integridade psíquica" e "prejuízo ao desenvolvimento da personalidade" migraram da clínica para a jurisprudência (14). Essa mudança é profunda: o bem-estar emocional está sendo codificado como um direito legalmente protegido. O Estado, por meio do Judiciário, afirma seu interesse não apenas na segurança física de uma criança, mas em sua integridade psicológica, transformando estados emocionais internos em questões de relevância jurídica pública.
O Dever de Cuidar e a Liberdade de (Não) Amar
A crescente responsabilização pelo abandono afetivo não surgiu do vácuo. Ela se apoia em uma robusta arquitetura legal que, embora não use explicitamente o termo "afeto", constrói um inegável "dever de cuidado".
A base de tudo é a Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 227 estabeleceu, como um pilar da nação, o dever da família, da sociedade e do Estado de assegurar à criança e ao adolescente, com "absoluta prioridade", o direito à vida, à saúde, à dignidade e, crucialmente, à "convivência familiar e comunitária", colocando-os a salvo de toda forma de negligência (15). O Estatuto da Criança e do Adolescente funciona como o manual de instruções desse mandamento constitucional, detalhando os deveres de guarda, sustento e educação (3). A chave que abre a porta para a indenização financeira, no entanto, está no Código Civil. Seu artigo 186 define como ato ilícito toda ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência que viole direito e cause dano a outrem, ainda que exclusivamente moral (16). É nesta brecha da "omissão" que a tese do abandono afetivo fincou suas raízes: a ausência de cuidado é uma omissão ilícita que causa um dano moral e, portanto, deve ser reparada.
Apesar da clareza desses princípios, sua aplicação ao abandono afetivo criou um profundo cisma no Superior Tribunal de Justiça, a corte responsável por uniformizar a interpretação da lei federal no Brasil. Suas duas turmas de direito privado travam uma batalha filosófica sobre os limites da intervenção judicial nas relações familiares.
A Tese do Cuidado (3ª Turma): Liderada por uma visão mais humanista e intervencionista, a 3ª Turma defende que o dever de cuidado é uma obrigação jurídica, e sua violação é um ato ilícito que justifica a compensação financeira. O marco dessa corrente é o julgamento do Recurso Especial 1.159.242-SP, em 2012 (13). Nesse caso emblemático, a relatora, Ministra Nancy Andrighi, cunhou a máxima que se tornaria o estandarte da causa: "Amar é faculdade, cuidar é dever" (13). Essa frase genial opera uma cisão cirúrgica: o Direito não pode obrigar ninguém a sentir amor, uma emoção que pertence ao domínio da liberdade individual. No entanto, pode e deve exigir o cumprimento das manifestações objetivas desse amor: o cuidado, a presença, o amparo, a convivência. A ausência desses cuidados, portanto, não é uma questão de "desamor", mas de descumprimento de um dever legal.
A Tese da Punição Específica (4ª Turma): Em oposição direta, a 4ª Turma adota uma postura mais conservadora e legalista, argumentando que o Direito de Família já possui suas próprias sanções para o descumprimento dos deveres parentais, como a perda do poder familiar (18). Para essa corrente, aplicar as regras gerais da responsabilidade civil a um domínio tão delicado como o afeto seria uma impropriedade técnica e um perigo social. O precedente principal é o REsp 1.579.021-RS, no qual a relatora, Ministra Maria Isabel Gallotti, sustentou que "não há dever jurídico de cuidar afetuosamente" (19). O temor da 4ª Turma é duplo: primeiro, o de que a indenização transforme o Judiciário em uma "indústria indenizatória", incentivando a judicialização de todas as mágoas familiares (20); segundo, o de que uma condenação financeira sirva apenas para "sepultar a mínima chance de aproximação entre pai e filho", envenenando ainda mais a relação (21).
Esta divergência fundamental cria um cenário de insegurança jurídica, onde o direito de um filho a ser reparado pelo abandono depende, literalmente, da sorte de qual turma julgará seu caso.
Tese Jurídica |
3ª Turma (Pró-Indenização) |
4ª Turma (Contra-Indenização) |
Fundamento Principal |
O descumprimento do dever de cuidado (convivência, amparo) é um ato ilícito que gera dano moral passível de reparação (Art. 186, CC). |
O Direito de Família possui sanções próprias (ex: perda do poder familiar). A responsabilidade civil geral não se aplica a relações de afeto. |
Máxima Filosófica |
"Amar é faculdade, cuidar é dever." |
Não se pode "monetizar o afeto" ou judicializar o desamor. |
Precedente Chave |
REsp 1.159.242-SP (Rel. Min. Nancy Andrighi) (17) |
REsp 1.579.021-RS (Rel. Min. Maria Isabel Gallotti) (19) |
Consequência Prática |
Abre a porta para ações de indenização por danos morais, mesmo que a pensão alimentícia esteja em dia. |
Limita a reparação ao campo do direito de família (perda do poder familiar), afastando a indenização pecuniária por dano moral. |
A posição da 4ª Turma reflete uma visão tradicional, que considera a vida emocional da família um santuário no qual o Estado não deve interferir com suas ferramentas de reparação civil. A posição da 3ª Turma, por outro lado, representa uma mudança radical. Ao conceder uma indenização, o tribunal não está tentando comprar afeto ou precificar a dor. Está realizando um ato simbólico de imenso poder. A indenização funciona como uma validação pública e oficial do sofrimento da criança. É o Estado, em sua máxima autoridade, declarando: "Sua dor é real, ela é juridicamente reconhecida e acarreta consequências legais, mesmo que seu genitor se recuse a reconhecê-la". Nesses casos, o Judiciário intervém no vácuo deixado pelo pai ou pela mãe ausente, agindo como um "pai substituto" ao fornecer o reconhecimento e a validação que foram negados. O valor financeiro é secundário a este ato de restauração da dignidade da criança perante a lei e a sociedade.
Projetos de Lei em Gestação
Uma das funções primordiais de um tribunal superior como o STJ é unificar a interpretação da lei federal, garantindo que a justiça seja aplicada de maneira consistente em todo o país. A persistente e irreconciliável divergência entre a Terceira e a 4ª Turmas sobre o abandono afetivo representa uma falha notável no cumprimento dessa função (18). Esse impasse judicial cria um vácuo de incerteza que deixa cidadãos, advogados e juízes de instâncias inferiores em um estado de perplexidade.
É precisamente neste cenário de paralisia jurisprudencial que o Poder Legislativo é chamado a intervir. A recente profusão de projetos de lei sobre o tema no Congresso Nacional não é uma coincidência; é uma resposta direta à incapacidade do Judiciário de resolver a questão por meio da interpretação. O que estamos vendo é uma dinâmica fascinante: o ativismo judicial da 3ª Turma, que criou uma nova tese jurídica, colidiu com a resistência judicial da 4ª Turma, forçando o debate a sair dos tribunais e voltar para a arena política, onde uma regra única e clara deve ser forjada.
Os projetos de lei em discussão no Congresso abordam o problema de maneiras distintas, refletindo diferentes visões sobre a intensidade da intervenção estatal necessária.
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PL 72/2025 (Criminalização): Uma das propostas mais radicais é a que busca tipificar o abandono afetivo como crime, inserindo-o no Código Penal e no ECA, com pena de detenção de um a três anos (22). Esta abordagem, embora nascida de uma justa indignação, representa um exagero potencialmente perigoso. O Direito Penal é a ultima ratio, o instrumento mais contundente do Estado, reservado para as condutas mais graves. Questiona-se se a ferramenta bruta de uma pena de prisão é adequada para lidar com as dinâmicas delicadas e complexas de um colapso familiar. Corremos o risco de transformar vítimas de relações disfuncionais em criminosos, sem, contudo, resolver a dor subjacente. Uma sentença criminal pode satisfazer um desejo de punição, mas dificilmente reconstruirá um laço ou curará uma ferida afetiva.
PL 3012/2023 e PL 3212/2015 (Ilícito Civil): Um caminho mais moderado e provável é o seguido por projetos que buscam alterar o ECA e o Código Civil para caracterizar explicitamente o abandono afetivo como um ilícito civil (23). Essa solução legislativa essencialmente adotaria a tese da 3ª Turma do STJ, pondo fim à divergência jurisprudencial e criando uma base legal inequívoca para as ações de indenização. O texto reforçaria a necessidade de comprovar as consequências negativas do abandono, exigindo cautela do magistrado para que a medida não seja vista como uma mera "monetarização do afeto" (23). Esta parece ser a solução mais equilibrada, pois consolida um avanço civilizatório sem recorrer à força excessiva do direito penal.
PL 4229/2019 e PL 1841/2024 (Conceitos Doutrinários): A discussão legislativa também revela a expansão do conceito de responsabilidade afetiva. Projetos de lei já abordam o "abandono afetivo inverso", que trata da responsabilidade civil dos filhos que abandonam seus pais idosos (24). Isso demonstra que o princípio do dever de cuidado está evoluindo de uma obrigação vertical (pais para filhos) para uma filosofia mais ampla de solidariedade familiar, reconhecendo a vulnerabilidade em ambos os extremos da vida.
O Futuro do Cuidado
Ao conectar os pontos — a sentença emblemática de Santa Catarina, a profunda dor psíquica documentada pela psicanálise, a guerra de teses no STJ e o clamor por uma resposta no Congresso —, um quadro claro emerge. Apesar das resistências e dos debates acalorados, a trajetória cultural e jurídica do Brasil aponta em uma direção clara e, ao que tudo indica, irreversível.
A profecia é que a filosofia encarnada pela 3ª Turma do STJ — a de que o cuidado é um dever juridicamente exigível — prevalecerá. A resistência da 4ª Turma, embora fundamentada em uma prudência legalista, será vista pela história como a última trincheira de um paradigma jurídico em extinção, um que ainda via a família como uma caixa-preta imune à fiscalização do Estado em sua dimensão afetiva. A vitória dessa nova concepção provavelmente se dará por meio de uma lei que, finalmente, codificará o abandono afetivo como um ilícito civil, pacificando a jurisprudência e oferecendo segurança jurídica a milhares de famílias.
A nova fronteira do Direito de Família não reside na tentativa ingênua e autoritária de legislar sobre o amor, mas na capacidade pragmática e justa de fazer valer as consequências tangíveis de sua ausência negligente. O sistema legal está, enfim, reconhecendo uma verdade que psicólogos e pedagogos sabem há décadas: a construção de um cidadão saudável, de um ser humano pleno, exige mais do que pão e teto; exige uma fundação de segurança psicológica, de pertencimento e de valor. O verdadeiro e duradouro legado de casos como o da adolescente de Santa Catarina é o reconhecimento, tardio, mas crucial, de que certos deveres não são devidos apenas ao corpo de uma criança, mas à sua alma em formação. A Justiça brasileira está aprendendo a sentenciar não apenas sobre contratos de papel, mas também sobre os contratos de sangue e de alma que definem a condição humana.