1. Conceituação e Fundamentos Teóricos da Função Contramajoritária
A função contramajoritária do Poder Judiciário, especialmente encarnada nas cortes supremas, constitui um pilar essencial do constitucionalismo moderno, destinado a salvaguardar os direitos fundamentais e as minorias contra os excessos da vontade majoritária manifestada pelos poderes Legislativo e Executivo.
Concebida originalmente por Alexander Bickel em sua obra The Least Dangerous Branch (1962), a "dificuldade contramajoritária" (counter-majoritarian difficulty) reflete o paradoxo inerente às democracias constitucionais: uma instância não eleita, como o Judiciário, detém o poder de invalidar atos emanados de órgãos representativos, preservando assim a supremacia da Constituição sobre a efemeridade das maiorias políticas.
No ordenamento jurídico brasileiro, essa função encontra amparo expresso na Constituição Federal de 1988 (CF/88), que erige o Supremo Tribunal Federal (STF) como guardião da Carta Magna (art. 102, caput), incumbindo-o do controle concentrado de constitucionalidade (art. 102, I, "a").
Tal atribuição não se limita a uma interpretação literalista, mas abrange a defesa dos princípios republicanos, democráticos e da separação dos Poderes (art. 2º), impedindo que o Legislativo, sob o manto da representatividade popular, promova reformas que atentem contra o núcleo imutável da Constituição ou fragilizem mecanismos de responsabilidade pública.
Como bem assevera a doutrina, o STF atua como "freio institucional" aos desmandos majoritários, evitando a "tirania da maioria" preconizada por Alexis de Tocqueville em A Democracia na América (1835), e alinhando-se à jurisprudência internacional, a exemplo da emblemática decisão da Suprema Corte dos EUA em Marbury v. Madison (1803), que fundou o judicial review.
Na atual conjuntura legislativa brasileira, marcada por polarização ideológica, reformas legislativas controversas e tentativas de enfraquecimento de instrumentos anticorrupção, a função contramajoritária do STF revela-se não apenas necessária, mas imperativa para a preservação do Estado Democrático de Direito. Exemplos recentes, como a suspensão cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 7.236/DF, ilustram essa dinâmica, onde o STF intervém para corrigir distorções normativas que privilegiam interesses particulares em detrimento do coletivo.
2. O Contexto Legislativo Atual: Polarização, Reformas e Desafios à Probidade Administrativa
A situação legislativa brasileira em 2025 caracteriza-se por um cenário de instabilidade institucional, agravado pela edição de leis que, sob pretexto de modernização, mitigam salvaguardas constitucionais.
A Lei n.º 14.230/2021, que alterou a Lei de Improbidade Administrativa (Lei n.º 8.429/1992), exemplifica tal tendência ao introduzir a prescrição intercorrente reduzida a quatro anos (art. 23, § 5º), o que, conforme dados jurimétricos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), compromete a efetividade de milhares de ações em trâmite, potencializando a impunidade em casos de lesão ao erário público.
Essa reforma, aprovada pelo Congresso Nacional, reflete uma majoritária legislativa influenciada por interesses corporativos e políticos, que prioriza a celeridade processual em detrimento da moralidade administrativa (art. 37, caput, CF/88) e da imprescritibilidade das ações de ressarcimento por atos dolosos (art. 37, § 5º, CF/88, conforme RE 852.475, Tema 897).
Outras controvérsias legislativas, como as discussões sobre o Marco Civil da Internet (Lei n.º 12.965/2014) e a responsabilidade das plataformas digitais, revelam tentativas de o Legislativo impor censuras ou limitações à liberdade de expressão (art. 5º, IV e IX, CF/88), frequentemente contestadas pelo STF em julgados que reafirmam sua função contramajoritária.
Ademais, decisões sobre o marco temporal indígena (ADI 7.099) e a descriminalização do aborto (ADI 5.581) destacam o papel do STF em contrapor maiorias parlamentares que atentam contra minorias vulneráveis, alinhando-se à proteção de direitos indígenas (art. 231, CF/88) e à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88).
Essa conjuntura é agravada pela judicialização da política, onde o STF é instado a suprir omissões legislativas ou corrigir excessos, como na modulação de efeitos em julgados sobre políticas públicas (art. 27. da Lei n.º 9.868/1999).
Críticas doutrinárias, questionam o uso do princípio majoritário no STF, defendendo que o judicial review deve priorizar a legitimidade democrática sem usurpar competências legislativas.
Contudo, em um contexto de fragilidade institucional, como o pós-eleições de 2022 e investigações sobre tentativas de ruptura (Inquérito n.º 4.781), o STF exerce sua função para preservar a ordem constitucional contra abusos majoritários.
3. O STF como Guardião Contra Excessos Majoritários
A jurisprudência do STF corrobora sua função contramajoritária, como no RE 843.989 (Tema 1.199), que fixou a irretroatividade do regime prescricional da Lei n.º 14.230/2021, preservando ações de improbidade em curso e alinhando-se à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Decreto n.º 5.687/2006), que preconiza prazos amplos para persecução de ilícitos.
Na ADI 7.236, a suspensão cautelar da redução prescricional (decisão monocrática de 23/09/2025) exemplifica o periculum in mora e o fumus boni iuris, evitando prescrições em massa que comprometeriam a efetividade da tutela coletiva (art. 5º, XXXV, CF/88).
Doutrinadores como Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso enfatizam que o STF deve atuar como "contrapeso institucional", especialmente em face de legislaturas capturadas por interesses particulares, conforme o princípio da responsabilidade (art. 37, §4º, CF/88).
Críticos ao ativismo judicial, alertam para limites, mas reconhecem a necessidade de intervenção quando o Legislativo fragiliza o combate à corrupção.
4. A Imperiosa Manutenção da Função Contramajoritária para a Estabilidade Democrática
Em suma, a função contramajoritária do STF, na atual situação legislativa brasileira, configura-se como mecanismo indispensável para contrabalançar reformas que, sob influxo majoritário, atentam contra a probidade, a moralidade e os direitos coletivos.
Longe de usurpar competências, o STF reafirma a supremacia constitucional, evitando que o Legislativo, em causa própria, promova um "limbo legal" que perpetue impunidades.
Como guardião da CF/88, o Tribunal não "muda o jogo", mas o recoloca nos trilhos da legalidade, garantindo que o interesse público prevaleça sobre o particular, em prol de uma democracia substantiva e não meramente formal.