6. O Papel da Autorregulação Regulatória
A experiência acumulada pelo Cade e pelos agentes econômicos demonstra que a efetividade da defesa da concorrência não depende exclusivamente da ação estatal coercitiva, mas também da cooperação entre reguladores e regulados. Nesse contexto, ganha relevância o conceito de autorregulação regulatória, ou seja, a construção de mecanismos privados de conformidade e de prevenção orientados por parâmetros públicos e supervisionados pela autoridade.
A autorregulação regulatória consiste em um modelo híbrido de governança econômica. O Estado define diretrizes gerais, princípios e limites normativos; as empresas, por sua vez, internalizam essas diretrizes e estruturam sistemas próprios de monitoramento, controle e transparência. O resultado é uma governança compartilhada, mais ágil e eficiente, que permite ao poder público concentrar-se nas condutas realmente lesivas e reduzir custos de fiscalização.
No campo do Direito da Concorrência, esse modelo é especialmente adequado a mercados digitais, caracterizados por complexidade tecnológica, velocidade de inovação e assimetria informacional. Nesses ambientes, a atuação reativa do Estado tende a ser tardia, pois as condutas mudam rapidamente. A autorregulação, ao contrário, permite uma resposta contínua e preventiva, uma vez que parte do próprio agente econômico, que conhece em detalhe suas práticas e pode corrigi-las antes de gerar efeitos anticoncorrenciais.
Aplicada ao setor de delivery digital, a autorregulação regulatória significa a adoção, pelas plataformas, de mecanismos internos de análise concorrencial de contratos, revisão periódica de cláusulas de exclusividade, procedimentos de auditoria algorítmica e canais de comunicação direta com o Cade. Tais medidas não apenas previnem litígios, como também fortalecem a credibilidade das empresas perante o mercado e os consumidores.
O papel do Estado, nesse modelo, é normativo, coordenador e pedagógico. Compete ao Cade definir parâmetros mínimos de transparência e proporcionalidade, criar espaços institucionais de diálogo com o setor privado e estabelecer protocolos de boas práticas que sirvam de referência para todo o mercado. Ao invés de atuar apenas ex post, punindo condutas já consumadas, o órgão passa a atuar ex ante, orientando comportamentos e construindo consensos regulatórios.
Essa transição não significa abdicação da autoridade pública, mas redefinição de sua função. O Cade permanece como instância de controle, mas deixa de ser o único responsável pela integridade do sistema concorrencial. A cooperação público-privada cria um ciclo virtuoso: quanto mais as empresas internalizam a cultura da conformidade, menos necessária se torna a intervenção punitiva, e mais eficaz é a prevenção.
O caso Rappi x 99Food ilustra de maneira concreta a necessidade dessa abordagem. Em mercados de múltiplos lados, como o de delivery, a atuação unilateral de qualquer grande plataforma pode afetar a totalidade da cadeia produtiva. Assim, a regulação deve ser distribuída, incorporando os próprios agentes como corresponsáveis pela preservação da concorrência. A autorregulação regulatória, nesse sentido, converte o dever jurídico em valor corporativo e o controle estatal em parceria institucional.
Essa concepção está em harmonia com o art. 174. da Constituição Federal, que atribui ao Estado a função de agente normativo e regulador da atividade econômica, incumbindo-lhe planejar, fomentar e fiscalizar, sem substituir a iniciativa privada. Trata-se de um modelo constitucional de equilíbrio: o Estado orienta, mas não monopoliza; as empresas cooperam, mas não se autogovernam sem limites.
No plano prático, a implementação desse modelo requer:
Diretrizes claras e estáveis do Cade, para que os agentes saibam de antemão quais práticas são aceitáveis e quais serão objeto de escrutínio;
Mecanismos de reporte e transparência, mediante os quais as empresas possam comunicar à autoridade eventuais condutas de risco ou dúvidas interpretativas;
Sistemas internos de due diligence concorrencial, que permitam avaliar, antes da assinatura de contratos, se há possibilidade de impacto sobre o mercado;
Avaliações periódicas de conformidade, com registros e documentação auditável, para garantir que os compromissos assumidos sejam efetivamente cumpridos.
A consolidação da autorregulação regulada como ferramenta de governança concorrencial representa um passo decisivo para o amadurecimento da economia digital brasileira. Ao compartilhar responsabilidades, Estado e iniciativa privada fortalecem a legitimidade do sistema e asseguram um ambiente de negócios competitivo, previsível e sustentável.
O caso Rappi x 99Food, portanto, ultrapassa a análise de um conflito contratual: ele se insere em um movimento mais amplo de construção de um modelo brasileiro de regulação cooperativa, em que o Cade atua como arquiteto institucional de boas práticas e as empresas assumem papel ativo na defesa da concorrência. Trata-se da consolidação de uma nova etapa da política antitruste nacional, marcada pela ênfase na ética concorrencial, na transparência e na corresponsabilidade entre poder público e iniciativa privada.
7. Risco de Duopólio e Impactos à Inovação
A análise das práticas comerciais em mercados digitais, como o de delivery de refeições, impõe ao Direito da Concorrência o desafio de compreender e mitigar o risco da formação de estruturas duopolistas. Tais estruturas, ainda que formalmente distintas de monopólios, podem produzir efeitos econômicos e sociais equivalentes: restrição da diversidade competitiva, redução da contestabilidade do mercado e diminuição dos incentivos à inovação.
O caso Rappi x 99Food evidencia precisamente esse risco. As alegações de que a 99Food teria imposto cláusulas de exclusividade que não se aplicariam ao iFood sugerem a possível configuração de um duopólio funcional, em que dois agentes dominantes — o iFood, líder consolidado, e a 99Food, com forte estrutura de capital — passariam a dividir o mercado, limitando o espaço de atuação de novos entrantes. Essa dinâmica de concorrência bilateralmente restrita caracteriza o que a literatura econômica denomina equilíbrio colusivo tácito, no qual a mera interdependência estratégica entre líderes basta para reproduzir efeitos de cartelização sem necessidade de acordo formal.
A Lei nº 12.529/2011, em seu art. 36, §3º, tipifica como infração à ordem econômica qualquer ato que, ainda que não configure cartel, restrinja o funcionamento competitivo do mercado ou reduza substancialmente a concorrência. O foco, portanto, é nos efeitos práticos da conduta, não na intenção dos agentes. Se o comportamento de dois grandes operadores conduz a uma estrutura de mercado concentrada e estável, na qual os demais concorrentes são incapazes de competir em condições equivalentes, o resultado é um desequilíbrio estrutural que exige intervenção regulatória.
Em setores digitais, a formação de duopólios apresenta riscos adicionais, porque o poder de mercado se consolida não apenas pela participação quantitativa, mas pela acumulação de dados, pela padronização tecnológica e pela dependência de rede. Uma vez estabelecida uma base dominante de usuários e parceiros, as barreiras à entrada tornam-se quase intransponíveis. O acesso ao mercado passa a depender de condições impostas pelos próprios incumbentes, transformando a liberdade de empreender em um ideal meramente formal.
A consequência mais grave desse fenômeno é o comprometimento da inovação. Em mercados competitivos, as empresas buscam constantemente aprimorar seus produtos e processos para conquistar espaço. Em ambientes duopolistas, contudo, a inovação tende a se tornar defensiva e incremental, voltada à manutenção de posições consolidadas e não à criação de novos paradigmas de eficiência ou de valor. O resultado é uma estagnação silenciosa: os consumidores têm a impressão de variedade, mas enfrentam, na realidade, uniformização de serviços e elevação gradual de preços.
Outro efeito negativo é a dependência econômica dos agentes intermediados, especialmente restaurantes e pequenos empreendedores. Com apenas dois canais de visibilidade relevantes, os estabelecimentos tornam-se reféns das condições impostas pelas plataformas, o que compromete sua autonomia negocial e fragiliza a sustentabilidade de suas atividades. A concentração digital, portanto, repercute sobre toda a cadeia produtiva, desde o fornecedor até o consumidor final.
Diante desse cenário, a atuação do Cade assume caráter preventivo e estrutural. Não se trata apenas de reprimir condutas individuais, mas de preservar a pluralidade de agentes e o dinamismo inovador do mercado. O órgão deve zelar pela manutenção de um ambiente contestável, no qual novas empresas possam ingressar e competir em condições justas, promovendo um ciclo virtuoso de eficiência, qualidade e inovação.
A contenção do risco de duopólio exige instrumentos complementares: aplicação firme da lei antitruste, incentivo à entrada de novos competidores, apoio a políticas de inovação tecnológica e coordenação entre órgãos de regulação e defesa do consumidor. A sinergia entre o Cade, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) é fundamental para que as decisões concorrenciais reflitam também uma visão estratégica de desenvolvimento nacional.
O equilíbrio entre liberdade econômica e pluralismo concorrencial é, pois, condição de legitimidade do sistema. A competição não é um fim em si, mas o meio pelo qual se assegura a eficiência, a diversidade e a justiça nas relações econômicas. A prevenção do duopólio, nesse sentido, é também uma política pública de inovação e soberania, garantindo que o mercado digital brasileiro permaneça aberto, dinâmico e acessível a novos empreendedores.
Em suma, o caso Rappi x 99Food é mais que um conflito setorial: é um teste institucional de maturidade da política antitruste nacional. O Cade deverá decidir não apenas sobre contratos, mas sobre o modelo de concorrência que pretende consolidar no país — se um modelo de pluralidade aberta ou um modelo concentrado de poucos intermediários dominantes. O resultado desse processo definirá, em grande medida, o futuro da inovação e da competitividade na economia digital brasileira.
8. Conclusão
A controvérsia entre Rappi e 99Food, atualmente em análise pelo Cade, simboliza a transição da política de defesa da concorrência brasileira para uma fase de maior sofisticação institucional e sensibilidade econômica. O caso ilustra como as fronteiras entre estratégia comercial legítima e prática anticoncorrencial abusiva tornam-se difusas em mercados digitais, exigindo do regulador um olhar técnico, prudente e equilibrado.
A Constituição Federal consagra, em seu art. 170, a livre iniciativa e a livre concorrência como fundamentos da ordem econômica, mas também impõe, no art. 173, §4º, o dever estatal de reprimir o abuso do poder econômico. Essa dualidade traduz o espírito do constitucionalismo econômico brasileiro: garantir a liberdade empresarial, mas sem abdicar da tutela do interesse público e da justiça concorrencial.
A Lei nº 12.529/2011 concretiza esses princípios e confere ao Cade a competência para prevenir e reprimir infrações à ordem econômica. O órgão não é apenas um tribunal administrativo, mas um formulador de política pública, responsável por equilibrar liberdade e regulação, eficiência e equidade. No caso em exame, o desafio é assegurar que as plataformas digitais possam competir e inovar, sem recorrer a práticas que comprometam a diversidade e o dinamismo do mercado.
Os fatos analisados indicam que cláusulas de exclusividade e restrição contratual, ainda que formalmente válidas, podem gerar efeitos de fechamento e dependência econômica. A experiência recente do acordo firmado com o iFood demonstrou que soluções cooperativas — baseadas em transparência, limitação temporal e monitoramento — podem ser mais eficazes que sanções meramente repressivas. Esse modelo de autorregulação regulada, em que o Estado orienta e as empresas internalizam práticas responsáveis, revela-se especialmente adequado à economia digital.
Ao mesmo tempo, a decisão do Cade deverá reafirmar o valor pedagógico do compliance concorrencial, instrumento que estimula a integridade empresarial e previne a repetição de condutas abusivas. O fortalecimento dessa cultura representa não apenas benefício às empresas, mas ao próprio sistema de mercado, que passa a operar com maior previsibilidade e confiança.
O caso Rappi x 99Food também reforça a necessidade de vigilância diante da possibilidade de formação de duopólios digitais, capazes de concentrar poder econômico e restringir a inovação. A manutenção da contestabilidade do mercado é requisito de legitimidade do capitalismo contemporâneo e condição essencial para o desenvolvimento sustentável.
Dessa forma, a atuação do Cade deverá se pautar por uma abordagem técnica, proporcional e orientada à preservação do ambiente competitivo, garantindo coerência com o precedente do iFood e com os princípios constitucionais que estruturam a economia brasileira.
Em conclusão, o episódio não deve ser visto como embate entre empresas, mas como etapa de maturação institucional da política concorrencial. Ao decidir esse caso, o Cade definirá não apenas os limites da exclusividade contratual em plataformas digitais, mas o próprio modelo de governança econômica que o país pretende consolidar: uma economia livre, inovadora, ética e comprometida com o interesse público.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 8 out. 2025.
BRASIL. Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011. Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 1º dez. 2011.
CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Termo de Compromisso de Cessação celebrado com iFood. Processo Administrativo nº 08700.000627/2021-14. Brasília: CADE, 2023.
CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Guia de Programas de Compliance Concorrencial. Brasília: CADE, 2022. Disponível em: https://www.gov.br/cade/pt-br. Acesso em: 8 out. 2025.
RAPPI aciona Cade na disputa por suposto bloqueio da 99Food a concorrentes. InfoMoney, 6 out. 2025. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/business/rappi-aciona-cade-na-disputa-por-suposto-bloqueio-da-99food-a-concorrentes/. Acesso em: 8 out. 2025.
Abstract: This article examines the dispute between delivery platforms Rappi and 99Food before Brazil’s Administrative Council for Economic Defense (Cade) regarding alleged exclusivity clauses and contractual restrictions with partner restaurants. The analysis is based on Brazil’s Constitution and Law 12.529/2011, which establish the principles of free enterprise, free competition, and the prohibition of abuse of economic power, as well as the 2023 settlement agreement signed with iFood. The study highlights the role of antitrust compliance and regulated self-regulation as mechanisms to balance entrepreneurial freedom and the protection of competitive markets. It concludes that this case provides an opportunity to strengthen institutional coherence and foster a culture of ethical and sustainable competition in the digital economy.
Key words : Cade. Competition. Rappi. 99Food. Exclusivity Clauses. Free Enterprise. Antitrust Compliance.