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Cláusulas de exclusividade em mercados digitais: o caso Rappi x 99Food e os limites da livre concorrência no Cade

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18/10/2025 às 18:58

Resumo:


  • O caso Rappi x 99Food envolve a disputa perante o Cade sobre cláusulas de exclusividade em contratos com restaurantes.

  • A análise é feita à luz da Constituição Federal e da Lei nº 12.529/2011, considerando princípios como livre concorrência e abuso do poder econômico.

  • O estudo destaca a importância do compliance concorrencial e da autorregulação regulada para equilibrar a liberdade empresarial e a competição nos mercados digitais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Rappi acusa a 99Food de impor exclusividades que restringem a concorrência. Será que o Cade pode equilibrar livre iniciativa, compliance e autorregulação no mercado digital?

Resumo: O presente artigo analisa a disputa instaurada entre as plataformas Rappi e 99Food perante o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), em razão de alegadas cláusulas de exclusividade e restrição contratual em contratos firmados com restaurantes. Examina-se o caso à luz da Constituição Federal e da Lei nº 12.529/2011, considerando os princípios da livre iniciativa, da livre concorrência e da repressão ao abuso do poder econômico, bem como o precedente firmado no Termo de Compromisso de Cessação celebrado com o iFood em 2023. O estudo enfatiza a importância do compliance concorrencial e da autorregulação regulada como instrumentos de equilíbrio entre liberdade empresarial e preservação de mercados competitivos. Conclui-se que o caso representa oportunidade de aperfeiçoamento institucional e de consolidação de uma cultura de integridade e concorrência responsável no ambiente digital.

Palavras-chave: Cade. Concorrência. Rappi. 99Food. Cláusulas de Exclusividade. Livre Iniciativa. Compliance Concorrencial.

Sumário: 1. Introdução. 2. Contexto Fático e Econômico. 3. Enquadramento Jurídico. 4. Compliance Concorrencial e Cade. 5. O Precedente iFood (2023). 6. O Papel da Autorregulação Regulatória. 7. Risco de Duopólio e Impactos à Inovação. 8. Conclusão. Referências.


1. Introdução

A disputa instaurada entre as plataformas Rappi e 99Food perante o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) evidencia o estágio de maturação da política de defesa da concorrência no Brasil diante dos novos desafios impostos pela economia digital. Trata-se de um episódio emblemático, que transcende o litígio empresarial e adquire caráter paradigmático para a delimitação dos contornos entre a livre iniciativa e a livre concorrência, pilares constitucionais da ordem econômica brasileira.

O caso projeta luz sobre um fenômeno recorrente nos mercados de plataforma: a utilização de cláusulas de exclusividade e fidelização contratual como instrumentos de alavancagem comercial.

Se, em um primeiro plano, tais cláusulas podem ser vistas como legítimas estratégias empresariais para garantir estabilidade e previsibilidade em parcerias comerciais, em outro plano podem transformar-se em mecanismos de restrição de acesso e fechamento de mercado, com potencial de comprometer o equilíbrio concorrencial e inviabilizar a entrada de novos competidores.

A relevância jurídica e econômica do caso decorre do contexto em que ele se insere. As plataformas digitais de delivery operam em mercados caracterizados por fortes efeitos de rede, elevadas barreiras à entrada, dependência tecnológica e concentração de dados.

Nesse ambiente, o poder econômico não se mede apenas por quotas de mercado, mas também pela capacidade de controlar fluxos informacionais e mediadores digitais, determinando quais empresas e produtos terão maior visibilidade junto ao consumidor. Assim, práticas aparentemente contratuais adquirem, na prática, efeitos estruturais sobre a dinâmica competitiva.

Ao provocar a atuação do Cade, a Rappi não busca apenas a revisão de cláusulas contratuais, mas a definição de um paradigma regulatório para o setor. A decisão que advir desse processo tem potencial de estabelecer parâmetros sobre a licitude das exclusividades em mercados digitais, sobre o alcance das políticas de compliance concorrencial e sobre o papel das plataformas na preservação da competição em ecossistemas de intermediação tecnológica.

O tema adquire maior relevância diante da jurisprudência recente do Cade, especialmente após o acordo firmado com o iFood em 2023, que limitou o uso de cláusulas exclusivistas e instituiu mecanismos de transparência e acompanhamento contratual.

A repetição de condutas semelhantes em outros agentes de mercado suscita o debate sobre recidiva setorial, demandando da autoridade antitruste uma resposta coerente e previsível, capaz de reforçar a segurança jurídica e a credibilidade institucional do sistema concorrencial.

Portanto, este estudo propõe-se a examinar o caso sob múltiplas perspectivas: jurídica, econômica e institucional. Busca-se compreender se a conduta questionada da 99Food constitui abuso de poder econômico ou prática legítima de mercado; se os mecanismos existentes de regulação e autorregulação são suficientes para prevenir riscos estruturais; e de que modo o Cade pode harmonizar liberdade empresarial e interesse público.

Ao final, conclui-se que a análise do caso Rappi x 99Food ultrapassa o plano sancionatório e se insere em uma reflexão maior sobre a governança econômica e a sustentabilidade da concorrência no ambiente digital brasileiro.


2. Contexto Fático e Econômico

O litígio que envolve Rappi, 99Food e Keeta/Meituan teve início a partir de representação apresentada pela Keeta, que alegou a existência de cláusulas de exclusividade e de restrição contratual impostas pela 99Food em contratos firmados com restaurantes parceiros.

Tais disposições impediriam que os estabelecimentos mantivessem relações simultâneas com plataformas concorrentes, inclusive com a Rappi, sob pena de multa contratual elevada e abrangência extensiva a filiais, franquias e futuras unidades.

A Rappi, ao tomar conhecimento da representação, solicitou ingresso formal no processo administrativo, sustentando que a prática denunciada violaria os princípios da livre concorrência e da livre iniciativa, ao criar barreiras artificiais à entrada de competidores e consolidar uma estrutura de mercado concentrada e verticalmente integrada. De acordo com a empresa, o impacto das cláusulas seria sistêmico, pois reduziria o número de estabelecimentos disponíveis em múltiplas plataformas, limitando a oferta e prejudicando o consumidor final.

Por sua vez, a 99Food negou a prática de condutas abusivas. Alegou que as cláusulas em questão seriam limitadas no tempo, vinculadas a investimentos em infraestrutura, logística e publicidade, e que o objetivo seria assegurar o retorno proporcional dos aportes financeiros realizados. Assim, tratava-se de medida comercial legítima, amparada na autonomia contratual e na busca por eficiência.

O Cade, ao receber a manifestação das partes, passou a examinar o caso sob a ótica da Lei nº 12.529/2011, especialmente quanto aos conceitos de posição dominante, fechamento de mercado e conduta excludente. O órgão busca determinar se a 99Food detém, de fato, poder de mercado capaz de produzir efeitos anticoncorrenciais e se as restrições contratuais se inserem no campo do abuso econômico.

Do ponto de vista econômico, o setor de delivery digital é marcado por uma estrutura de plataformas de múltiplos lados, em que consumidores, restaurantes e entregadores interagem de maneira interdependente.

Nessa configuração, quanto maior a base de usuários, maior o valor agregado da plataforma — o que gera um círculo virtuoso para quem detém a liderança, mas um efeito de bloqueio para quem tenta ingressar no mercado. Esse fenômeno é conhecido como efeito de rede e explica por que pequenas diferenças iniciais podem gerar grande assimetria de poder.

O risco de fechamento de mercado decorre justamente do uso de cláusulas contratuais que ampliam tais assimetrias. Ao restringir a liberdade de escolha dos restaurantes, a 99Food reduz o número de alternativas disponíveis a consumidores e novos entrantes, perpetuando o domínio das plataformas já consolidadas. Ainda que uma única empresa não detenha, isoladamente, posição dominante, a soma de condutas semelhantes por diferentes agentes pode resultar em um efeito cumulativo de exclusividade cruzada, dificultando a expansão da concorrência.

Outro aspecto relevante é a alegação de que as restrições impostas não se aplicariam ao iFood, empresa que já detém posição preponderante no mercado. Essa seletividade nas proibições suscita suspeitas quanto à possível cooperação tácita entre grandes operadores e ao risco de duopólio estrutural, cenário em que duas empresas controlam a intermediação entre fornecedores e consumidores. Tal configuração compromete a diversidade e reduz o incentivo à inovação, gerando um ambiente de estabilidade artificial que beneficia apenas os líderes do setor.

Em sua essência, o caso traduz o conflito entre dois princípios: de um lado, a liberdade contratual e o direito de empreender, e de outro, a preservação da concorrência e a proteção da estrutura de mercado. O desafio do Cade consiste em aplicar a lei de modo equilibrado, distinguindo práticas comerciais legítimas de condutas excludentes, com base em evidências empíricas e análise econômica do direito.

Sob esse prisma, a disputa Rappi x 99Food ultrapassa o plano jurídico-formal e alcança o plano institucional, desafiando o Cade a reafirmar seu papel como guardiã da concorrência e promotora de um ambiente de negócios dinâmico, inovador e inclusivo, compatível com a Constituição e com as exigências da economia digital.


3. Enquadramento Jurídico (Lei nº 12.529/2011 e Constituição Federal)

A análise jurídica do caso Rappi x 99Food exige o exame do núcleo normativo da ordem econômica constitucional, delineado pelos arts. 170 e 173 da Constituição da República, que estabelecem como fundamentos da atividade econômica a livre iniciativa, a livre concorrência, a função social da propriedade e a busca do pleno emprego. Esses princípios conformam um modelo jurídico de economia de mercado regulada, em que a liberdade empresarial é reconhecida como valor constitucional, mas subordinada ao dever de promover a justiça social e evitar a dominação econômica.

O art. 170, inciso IV, assegura que a livre concorrência é um valor-fim da ordem econômica, e não mera decorrência do individualismo contratual. O dispositivo constitucional traduz a compreensão de que o desenvolvimento sustentável de uma economia de mercado depende da pluralidade de agentes e da neutralização de condutas que, embora formalmente legítimas, possam comprometer a competição efetiva. Já o art. 173, § 4º, determina que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”.

Desses dispositivos decorre a necessidade de uma intervenção estatal equilibrada, apta a preservar a autonomia privada, mas também a impedir práticas que distorçam o funcionamento competitivo dos mercados. A liberdade econômica, portanto, não é absoluta: ela é funcionalizada ao interesse público, e sua legitimidade depende do respeito às condições estruturais de concorrência.

A Lei nº 12.529/2011, que organiza o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), representa a concretização legislativa desses comandos constitucionais. O art. 36. da norma define como infração à ordem econômica toda ação ou omissão que tenha por objeto ou possa produzir efeitos de restrição, limitação ou falseamento da concorrência, ainda que a posição dominante não se configure de modo formal.

O § 3º do mesmo artigo apresenta rol exemplificativo de práticas que podem configurar infração, entre as quais:

  • subordinar a venda de um bem à não aquisição de outro bem ou serviço concorrente (inciso XI);

  • impor restrições ao exercício de atividade econômica de concorrente, fornecedor ou distribuidor (inciso XV); e

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  • exercer de forma abusiva posição dominante (inciso XVIII).

No contexto do caso em estudo, as chamadas “cláusulas de exclusividade” ou “de banimento” devem ser avaliadas à luz desses dispositivos, pois podem constituir instrumentos indiretos de restrição de mercado. Ainda que celebradas em contratos privados e justificadas sob o argumento de eficiência ou retorno de investimentos, tais cláusulas podem representar meios artificiais de exclusão concorrencial, especialmente quando vinculadas a obrigações de abrangência territorial ou temporal excessivas.

A jurisprudência do Cade tem reconhecido que a licitude de cláusulas de exclusividade depende da análise concreta de seus efeitos econômicos. Cláusulas temporárias e proporcionais, voltadas a viabilizar investimentos ou compensar riscos assumidos, podem ser compatíveis com a livre iniciativa. Entretanto, exclusividades amplas e indefinidas, quando firmadas por agentes com capacidade de influência sobre o mercado, tendem a configurar abusos de poder econômico, nos termos do art. 36. da Lei nº 12.529/2011.

A interpretação sistemática do ordenamento impõe, portanto, a realização de um teste de proporcionalidade. Três dimensões devem ser observadas:

  • Adequação, para verificar se a restrição é capaz de atingir o objetivo alegado (como garantir investimentos ou evitar concorrência desleal);

  • Necessidade, para aferir se não há outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo fim; e

  • Proporcionalidade em sentido estrito, que exige ponderação entre o benefício econômico da cláusula e o sacrifício imposto à concorrência.

Esse raciocínio jurídico é compatível com o modelo constitucional de economia de mercado que o Brasil adotou, no qual o Estado atua como agente normativo e regulador da atividade econômica (art. 174. da Constituição). O papel do Cade é, assim, garantir que as condições de mercado permaneçam abertas e que a eficiência econômica não se converta em instrumento de exclusão.

No caso em tela, a verificação da eventual ilicitude dependerá da comprovação de que as cláusulas impostas pela 99Food produzem efeitos concretos de fechamento — impedindo a atuação de concorrentes ou restringindo a liberdade dos restaurantes. Se tais efeitos forem demonstrados, a conduta poderá ser enquadrada como infração à ordem econômica, independentemente da intenção subjetiva da empresa ou do tamanho formal de sua participação de mercado.

Em síntese, o enquadramento jurídico do caso Rappi x 99Food exige a aplicação coordenada da Constituição e da Lei nº 12.529/2011, com base em uma leitura funcional e finalística. O objetivo não é punir a iniciativa privada, mas assegurar que a liberdade de contratar e empreender se exerça dentro de um ambiente competitivo e plural, em consonância com os valores estruturantes da ordem econômica constitucional.


4. Compliance Concorrencial e Cade

O compliance concorrencial representa uma das mais relevantes inovações institucionais do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Diferentemente da visão tradicional, centrada apenas na repressão de ilícitos, o Cade passou a adotar uma abordagem preventiva e educativa, estimulando as empresas a desenvolver mecanismos internos de conformidade destinados a prevenir, detectar e corrigir práticas anticoncorrenciais antes que produzam efeitos no mercado.

No contexto do caso Rappi x 99Food, o debate sobre cláusulas de exclusividade evidencia a importância do compliance concorrencial como instrumento de governança corporativa e ética empresarial. A adoção de programas de conformidade não deve ser vista como mera formalidade, mas como expressão de uma cultura de responsabilidade, capaz de alinhar o comportamento corporativo aos valores da livre concorrência e da integridade econômica.

O Cade, ao publicar seu Guia de Programas de Compliance Concorrencial, delineou princípios fundamentais para sua estruturação: comprometimento da alta administração, autonomia das áreas de controle, capacitação contínua, canais de denúncia e auditoria de condutas. O objetivo é criar dentro das organizações um ambiente de vigilância e correção permanente, reduzindo o risco de infrações e promovendo um mercado mais transparente.

No caso das plataformas digitais, o compliance concorrencial adquire novas dimensões. Não se trata apenas de revisar cláusulas contratuais, mas também de monitorar algoritmos, fluxos de dados e critérios de ranqueamento que podem afetar a visibilidade e o acesso de concorrentes. Práticas aparentemente neutras — como a priorização de parceiros exclusivos em interfaces digitais — podem gerar efeitos de exclusão equivalentes aos de contratos restritivos. Por isso, o compliance digital deve incorporar instrumentos de governança algorítmica, auditoria e documentação de decisões automatizadas.

O fortalecimento do compliance concorrencial também se conecta à noção de boa-fé objetiva empresarial, que exige transparência, lealdade e previsibilidade nas relações comerciais. A empresa que internaliza práticas de conformidade não apenas evita sanções, mas demonstra respeito aos princípios constitucionais da livre iniciativa e da função social da empresa.

Sob o ponto de vista institucional, o Cade tem reconhecido o valor atenuante dos programas de compliance em eventuais processos administrativos. Empresas que comprovam esforços estruturados de prevenção e monitoramento recebem tratamento diferenciado, justamente por contribuírem para a autorregulação do sistema. Essa diretriz traduz a transição de um modelo repressivo para um modelo cooperativo de enforcement, em que a autoridade pública e o setor privado compartilham responsabilidades na preservação da concorrência.

No setor de delivery e intermediação digital, a implementação de políticas internas de conformidade concorrencial é especialmente relevante. Plataformas que contratam milhares de restaurantes e lidam com grandes volumes de informação precisam adotar rotinas padronizadas de verificação de cláusulas, revisões contratuais periódicas, registros de justificativas e análise de impactos competitivos. Essa postura preventiva contribui para a estabilidade regulatória e para a construção de um ambiente de negócios previsível, competitivo e ético.

Em síntese, o compliance concorrencial não é mera formalidade nem substitui o papel regulador do Estado; ele o complementa. Através da conformidade voluntária, o setor privado participa da construção de uma governança econômica compartilhada, na qual a liberdade de empreender é exercida com responsabilidade social e respeito ao interesse coletivo.

A consolidação dessa cultura de integridade representa um avanço para o Brasil, pois reduz a litigiosidade, reforça a confiança institucional e consolida um modelo de concorrência baseada em mérito, inovação e transparência — valores que se alinham diretamente à função constitucional da ordem econômica e ao papel pedagógico do Cade.


5. O Precedente iFood (2023)

O precedente firmado entre o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e o iFood, em 2023, tornou-se referência obrigatória na análise de condutas exclusivistas no setor de delivery digital. Trata-se de um marco interpretativo que consolidou critérios para o tratamento jurídico das cláusulas de fidelização e exclusividade em contratos firmados por plataformas com restaurantes e estabelecimentos comerciais.

O caso teve origem em representação de empresas concorrentes e associações do setor, que alegavam que o iFood impunha aos restaurantes obrigações de exclusividade incompatíveis com o princípio da livre concorrência. Após investigação, o Cade identificou indícios de que tais cláusulas, quando adotadas em larga escala, poderiam produzir efeitos de fechamento de mercado, uma vez que impediam que novos entrantes alcançassem escala mínima de operação.

A análise do órgão antitruste evidenciou que a posição de mercado do iFood, consolidada por fortes efeitos de rede, conferia à empresa capacidade para condicionar as escolhas dos estabelecimentos e limitar o acesso de concorrentes aos insumos essenciais da atividade — notadamente, a base de restaurantes cadastrados. Em razão disso, entendeu-se que as cláusulas de exclusividade, embora formalmente válidas, teriam potencial de restringir a contestabilidade do mercado e de reduzir a diversidade competitiva do setor.

Como resultado, o Cade celebrou com o iFood um Termo de Compromisso de Cessação (TCC), previsto no art. 85. da Lei nº 12.529/2011. O instrumento previu a limitação temporal e material das cláusulas de exclusividade, a proibição de contratos que envolvessem grande número de restaurantes, e a criação de mecanismos de transparência e auditoria interna. O acordo representou um avanço institucional, pois traduziu em medidas concretas o compromisso da empresa com o restabelecimento da concorrência.

O precedente do iFood firmou premissas de grande relevância:

  • A exclusividade contratual não é ilícita por si, mas torna-se abusiva quando, em razão do poder de mercado do agente, restringe de forma relevante a liberdade de escolha de parceiros ou o acesso de concorrentes ao mercado;

  • A análise deve ser contextual e prospectiva, considerando os efeitos potenciais sobre a estrutura de mercado e a inovação, e não apenas a intenção subjetiva do agente;

  • Medidas estruturais e de governança podem substituir sanções puramente punitivas, estimulando a conformidade e a cooperação regulatória;

  • A atuação do Cade deve ser proporcional, buscando preservar o dinamismo do setor e a segurança jurídica dos contratos.

Tais diretrizes refletem o amadurecimento do sistema concorrencial brasileiro. Ao privilegiar a solução consensual e o monitoramento continuado, o Cade deslocou o foco do enforcement para uma abordagem preventiva, pedagógica e cooperativa. Essa transição é particularmente importante em setores intensivos em tecnologia, onde a inovação depende da previsibilidade regulatória e da confiança entre Estado e iniciativa privada.

No caso Rappi x 99Food, o precedente do iFood serve como parâmetro interpretativo. As semelhanças entre as condutas apontadas — ambas relacionadas a contratos de exclusividade com restaurantes — impõem ao Cade o dever de coerência institucional. Caso o órgão entenda pela licitude irrestrita das práticas da 99Food, haveria risco de contradição com o entendimento firmado dois anos antes, o que fragilizaria a estabilidade normativa do sistema.

Mais do que isso, a reaplicação dos princípios do precedente reforça a noção de que a defesa da concorrência é também política pública de governança econômica. O Cade não apenas reprime abusos, mas orienta comportamentos empresariais, induzindo a incorporação de práticas responsáveis de mercado. Assim, o TCC do iFood consolidou-se como exemplo de instrumento de autorregulação regulada, em que o Estado e a empresa compartilham a tarefa de preservar a concorrência.

Sob essa perspectiva, a apreciação do caso Rappi x 99Food não se limita à apuração de infrações, mas representa uma oportunidade de reafirmar as balizas interpretativas da política antitruste digital no Brasil. A coerência entre os precedentes é elemento essencial para garantir previsibilidade aos agentes econômicos, atrair investimentos e proteger o ambiente de inovação que sustenta o crescimento da economia digital.

Portanto, o precedente iFood não apenas solucionou um conflito setorial, mas inaugurou um regime normativo de conduta: um modelo em que exclusividades são permitidas apenas quando justificadas por contrapartidas objetivas e limitadas no tempo, e em que a liberdade contratual é exercida sob o princípio da razoabilidade e da transparência. O caso Rappi x 99Food, ao retomar essa discussão, servirá para consolidar — ou redefinir — esse paradigma, fixando o alcance efetivo do dever de competir de forma leal e responsável.

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Sobre o autor
Luiz Carlos Nacif Lagrotta

Procurador-Geral do Município de Taboão da Serra, Professor do Centro Universitário UniFECAF, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas-FGV-SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LAGROTTA, Luiz Carlos Nacif. Cláusulas de exclusividade em mercados digitais: o caso Rappi x 99Food e os limites da livre concorrência no Cade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8144, 18 out. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115916. Acesso em: 5 dez. 2025.

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