Diz a Constituição da República Federativa do Brasil, nos incisos LIV e LV do artigo 5º, que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, bem como assegura aos litigantes em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
O legislador constituinte foi feliz ao mencionar que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, e quando ele relacionou ninguém, é ninguém mesmo. José Afonso da Silva1, afirma que o contraponto universal a que se refere o pronome indefinido ‘ninguém’, é ‘todos’ ou ‘toda pessoa’ tem o direito a um processo justo onde lhe é assegurado o direito de se defender de forma ampla, bem como se valer de todos os recursos legalmente permitidos.
Veja que o pronome indefinido “ninguém” não comporta qualquer tipo de exceção e ninguém é ninguém mesmo, ou seja, nenhuma pessoa pode ser privada de tais direitos.
Logo, se ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, mais uma vez nos reportamos ao renomado jurista José Afonso da Silva, que afirma que o princípio do devido processo legal entrou no direito constitucional positivo com um enunciado que vem a Magna carta Inglesa que combinado com o direito de acesso à justiça o contraditório e a plenitude de da defesa fecha o ciclo das garantias processuais.
E ao se falar em garantias processuais constitucionais, temos que o direito de ação é um dos princípios constitucionais, pois lá inciso XXXV2 do artigo 5º, diz que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Ocorre que constantemente se depara com despachos judiciais como o que abaixo se transcreve:
“Para que seja analisada a pretensão à gratuidade da justiça, nos moldes do art. 99, § 2º, do Código de Processo Civil, providencie a parte autora a juntada dos documentos:
a) holerite ou comprovante de salário, bem como declaração de imposto de renda;
b) esclarecimento sobre os imóveis e veículos que mantém;
c) indicação de sua remuneração mensal, especificando a parcela que venha de pró labore, atividade informal ou rendimentos recebidos habitualmente;
d) especificação quanto aos bens e direitos mantém;
e) relatório de Contas e Relacionamento em Bancos (CCS) emitido pelo Banco Central por meio da ferramenta "Registrato", e extrato das respectivas contas.
As mesmas informações e documentos relativos ao cônjuge/companheiro, se houver.
Prazo: 15 dias, ficando desde já indeferida a gratuidade processual em caso de omissão da parte . Nesta hipótese e no mesmo prazo deverá ocorrer o recolhimento das custas e despesas, sob pena de cancelamento da distribuição 3 ” .
Notem que de acordo com despachos, como o acima mencionado, o acesso a justiça já fica muito restrito e parece socorrer somente a quem tem condição financeira de arcar com as custas processuais, violando completamente o que prega a Constituição da República Federativa do Brasil.
O aludido despacho destoa dos dois princípios constitucionais básicos que é o acesso a justiça e da gratuidade do pagamento de taxas conforme previsto no inciso XXXIV4, e da afirmativa contida no princípio da não exclusão do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, conforme previsto no inciso XXXV5, ambos do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil.
Em linhas gerais, é preciso ter em mente que o legislador constitucional ao se referir que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, ele positiva o princípio da proteção judiciária, também chamado de princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, que a bem da verdade, funciona como uma das principais garantias dos direitos subjetivos.
Quando se transcreveu parte de um despacho extraído de um processo judicial, é justamente pela indisposição em que os pleitos dos jurisdicionados que carecem da gratuidade da justiça para defender seus direitos estão sendo recepcionados pelo Poder Judiciário, em especial, nos foros do extremo leste da cidade de São Paulo.
No caso específico que deu origem a estes arrazoados aqui apresentados, é porque se trata de um processo judicial, onde se questiona o abuso na cobrança (+ de R$ 11 mil reais mensal) de água de uma cidadã que mora em uma comunidade local, sem rede de esgoto, ou qualquer tipo de saneamento básico, que um córrego passa em baixo de seu barraco, por onde são despejados os dejetos; beneficiária do programa social “bolsa família”, mantido pelo Governo Federal, cadastrada no CadÚnico como beneficiária da tarifa social, mas ao se socorrer ao Poder Judiciário local, se depara com uma decisão da natureza da acima apresentada.
Facilmente se percebe que o Poder Judiciário ao exigir de uma pessoa que recebe “bolsa família”, cadastrada no CadÚnico como de baixa renda e beneficiária da “tarifa social”, que mora em uma comunidade sem rede de esgoto, apresente toda essa documentação mencionada parece piada ou total desrespeito a presunção de pobreza.
Lamentavelmente, para alguns Magistrados que atuam no extremo leste da cidade de São Paulo, parecem estar desconectados com a realidade local, pois são tantas exigências feitas para entrega da prestação jurisdicional que até desmotiva o ingresso com ações reparatórias e isso afasta o cidadão pobre e de bem do Estado-Juiz.
No Direito Penal, a presunção de inocência é cláusula pétrea, pois segundo o inciso LVII6 do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Tanto a presunção de inocência como a presunção de pobreza, ao nosso ver, estão sim inseridos na Norma Constitucional, em que pese está sendo muitas vezes ignorada.
Fato é que o Poder Judiciário ao impor condições severas para que o cidadão de poucos recursos, possa vindicar seus direitos, afunila e aniquila todas as perspectivas do princípio constitucional de que todos tem acesso a justiça.
O Poder Judiciário ao padronizar despachos como o utilizado de referência, para esse artigo, ou talvez, para o que chamamos de crítica, perde cada vez mais o protagonismo de ser o pacificador social; de ser aquela instituição cuja finalidade alcança o ápice da lei, que é a busca da paz social.
Se observamos que no exemplo citado, a água é um bem vital, e como diz a Ministra do Supremo Tribuna Federal Cármen Lúcia Antunes Rocha7, “a fome agride a dignidade dos homens, e não são poucos os famintos, não apenas de pão, mas de justiça e solidariedade, que peregrinam mundo afora, mesmo quando não podem sair do seu canto”, e em uma outra passagem da mesma obra citada, afirma que “todo homem tem direito de receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhes sejam reconhecidos pela constituição ou pelas leis”.
Mauro Vasni Paroski8, ao discorrer sobre os obstáculos de ordem econômico-financeira, afirma que “uma das maiores, senão a maior, das limitações do acesso à justiça reside na falta de condições econômicas da maior parte da população para custear as despesas do processo jurisdicional”.
Para ele, “chama a atenção o fato de que na maioria dos Estados da Federação os cartórios judiciais e extrajudiciais são verdadeiros feudos que passa de pai para filho, explorados por particulares, isto é, em caráter privado mediante delegação do poder público”.
Afirma o ilustre jurista que9:
“Nas Capitais e nas localidades mais prósperas, os cartórios e as serventias da Justiça Comum Estadual se apresentam como privilegiadas fontes de renda para seus titulares. As despesas com as diligências a serem praticadas através de oficiais de justiça, a exemplo de citações, intimações, notificações, interpelações, remoção de bens, dentre outras, também são exigidas dos litigantes. O pagamento em regra, deve ser feito antecipadamente, destinando-se aos particulares que se ocupam desse ofício”.
Julgados recentes definem que o STJ proíbe negar a gratuidade de justiça apenas por critérios objetivos, exigindo que o juiz analise a hipossuficiência da pessoa, e o TST impõe aos magistrados o dever de conceder automaticamente o benefício a quem ganha até 40% do teto do INSS e possui a condição comprovada nos autos.
Já os tribunais superiores orientam que a parte que impugna o pedido de gratuidade deve apresentar provas de que o requerente tem condições financeiras de arcar com os custos do processo.
O Superior Tribunal de Justiça proíbe indeferimento imediato por critérios objetivos e para isso fixou que o juiz não pode simplesmente indeferir um pedido de gratuidade com base em critérios objetivos como renda ou patrimônio, sem analisar o contexto individual da parte.
Análise da hipossuficiência é fundamental e o juiz deve investigar se, mesmo com indicadores objetivos (como um imóvel), a parte tem recursos para pagar as custas do processo sem comprometer seu sustento.
O artigo 98 do Código de Processo Civil, permite que a pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar custas, despesas processuais e honorários advocatícios tem direito à gratuidade de justiça, mas lamentavelmente no caso analisado e aqui apresentado, não está sendo observado, pois exigir de uma pessoa que mora em uma comunidade que sobrevive de recursos dos programas sociais do Governo, conforme demonstrado no processo, é um total desrespeito a legislação.
Por seu turno o artigo 99, parágrafo 2º, estabelece que o juízo só pode indeferir o benefício se houver no processo claros elementos que demonstrem a falta dos pressupostos legais para a sua concessão, de toda sorte, antes do indeferimento do pedido, deve determinar que à parte a comprovação desses pressupostos, e por fim o § 3º do artigo 99 ainda atribui presunção de veracidade à declaração de hipossuficiência apresentada pela parte nos autos do processo, o que também não foi ignorado pelo magistrado.
O tema 1178 do Superior Tribunal de Justiça fixou a seguinte tese:
1. É vedado o uso de critérios objetivos para o indeferimento imediato da gratuidade judiciária requerida por pessoa natural;
2. Verificada a existência nos autos de elementos aptos a afastara presunção de hipossuficiência econômica da pessoa natural, o juiz deverá determinar ao requerente a comprovação de sua condição, indicando de modo preciso as razões que justificam tal afastamento, nos termos do art. 99, § 2º, do CPC;
3. Cumprida a diligência, a adoção de parâmetros objetivos pelo magistrado pode ser realizada em caráter meramente suplementar e desde que não sirva como fundamento exclusivo para o indeferimento do pedido de gratuidade
Ao fim, e ao cabo, o que se pretende com o presente artigo e fazer com que o leitor tenha uma reflexão, sobre os dois princípios mencionados, pois ao que nos parece “O Princípio da Pobreza e do Devido Processo Legal”, estão longe de serem materializados na medida em que magistrados paulistas façam tantas exigências como as aqui apresentadas, impossibilitando assim que pobres vindiquem seus direitos.
Desta forma, entendemos que exigir de uma pessoa que sobrevive por conta das benesses dos programas sociais como o “bolsa família” e a “tarifa social”, apresente suas ultimas declarações de imposto de renda, extratos bancários das contas correntes, dos cartões de crédito e documentos da JUCESP, informando a existência de empresas, é um verdadeiro contrassenso a Norma Constitucional, principalmente, quando decisões assim, são exigidas na região mais pobre da cidade de São Paulo, que é o seu extremo leste.
Notas
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Silva, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição / José Afonso da Silv – 11ºe., São Paulo. Editora JusPodivm, 2025. Pág. 143
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CRFB/1988 Art. 5º. XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito
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Processo: 4011445-52.2025.8.26.0007 – 1ª Vara Cível do Foro Regional de Itaquera
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CRFB/1988 Art. 5º. XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;
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CRFB/1988 Art. 5º. XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito
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CRFB/1988 Art. 5º LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória
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ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Direitos de para todos. 2ª ed. Belo Horizonte. Pag. 14
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PAROSKI, Mauro Vasni. Direitos Fundamentais e Acesso à Justiça na Constituição. Editora LTr. São Paulo – 2008. Pág. 219.
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Op. Cit. Pág 220.