2. A RESOLUÇÃO CNJ 615
Passemos, finalmente, à resolução 615, que dá diretrizes para o desenvolvimento, o uso e a governança de soluções com recurso de inteligência artificial no Poder Judiciário do Brasil. Editada em março de 2025, está em vigência desde 20 de julho de 2025, após 3 meses de vacatio legis.
Extensa e minuciosa, a resolução compõe-se de 311 dispositivos (artigos, incisos, alíneas), incluídos dois anexos que definem atividades de Alto Risco (AR) e de Baixo Risco(BR).
O regulador utilizou muita textura aberta, por razões explicáveis. Chamam a atenção: treze menções a "possível" e duas delas ligadas a "código-fonte dos algoritmos/programas". Há também grande quantidade de termos avaliativos, como "abusivo", "relevante" ou "necessária", o que gera desafios de interpretação, embora abram espaço para a adequação hermenêutica da norma ao rápido andar da carruagem da tecnologia. A mobilidade normativa parece ter sido uma das principais metas do produtor da resolução.
2.1. PLD - Product Liability Directive da União Europeia.
O art. 16, inciso 10, da resolução, traz importante disposição sobre o estado da arte(da tecnologia). A União Europeia alterou sua diretiva regulamentar, conhecida como Product Liability Directive14, fazendo com que os desenvolvedores perdessem a possibilidade de se defender em processos, por defeito de produtos, com a referida diretiva. Mesmo que, ao tempo do lançamento, fosse impossível prever o problema (o estado da arte não permitia a previsão), o provedor passou a ser responsabilizado.
Uma medida particularmente impactante para a área de IA e que, inclusive, gerou atrasos e exigiu profundas revisões, foi a disposição que incluía o software no conceito de produto. Como não há dúvida de que a IA é software, ela e todos os produtos que se valem dela passariam a gerar responsabilidades extras para seus produtores. Isso exatamente no momento revolucionário da chegada da IA, com sua evolução incontrolável e com a entrega de poderes, aos usuários, para a utilizarem como modelos de fundação para suas próprias soluções customizadas. A reação às ações regulatórias foi intensa, prolongada e gerou resultados. A regulação atrasou sobremaneira. E, para muitos, a mera existência da pretensão de fazer os movimentos indicados gerou grande insegurança entre os empreendedores e impediu ou atrasou o desenvolvimento de empresas de IA na Europa, algo que começa a ser reconhecido e verbalizado pelas lideranças dos Estados da União.15
2.2. Desafio ao intérprete, flexibilidade e adaptabilidade.
A redação da resolução põe um desafio ao intérprete, mas atende a outros objetivos do regulador, como a mobilidade normativa. Flexibilidade e adaptabilidade são indispensáveis para que qualquer regulação sobreviva. A evolução é massacrante. A multiplicação exponencial de produtos de base (foundation models), ajustados para necessidades específicas, induzem o surgimento de novas relações e novos problemas diariamente.
É impossível ao julgador enfrentá-los se não dispuser de normas que permitam, num horizonte sistêmico de busca de integridade, encontrar sentidos aptos a promover a utilização e o desenvolvimento das ferramentas e, ao mesmo tempo, estabeleçam balizas mínimas para a área (fundem um espaço de segurança jurídica para os avanços).
2.3. Muitas mãos e visões.
O grupo de trabalho que produziu a resolução era multidisciplinar e "multi-interesses". Tribunais, juízes, associações civis jurídicas, big techs: todos opinaram e participaram. Os muitos interesses envolvidos foram, de alguma maneira, contemplados, embora isso tenha criado contradições no texto, o que é natural num balanço de sonhos e vontades e visões de difícil conjugação.
No final, entretanto, prevaleceram o incentivo ao uso da IA e a vontade de não criar embaraços para o desenvolvimento das ferramentas e para a introdução das novas tecnologias no processo, o que parece bastante salutar para esses tempos imprevisíveis e de “geopolitização” da matéria tecnológica de primeiríssima linha que é a IA.
Todos os LLMs (de qualquer fornecedor) foram permitidos, o que estabelece um ambiente de competição para o impulso do desenvolvimento, mas que exige muita atenção dos juristas, porque põe riscos a princípios basilares do processo democrático de direito.
A autonomia dos tribunais, exigindo-se apenas interoperabilidade dos sistemas desenvolvidos, tem os dois aspectos: ajuda e é problemática. A redação, como já vimos, tenta atrair as big techs para o engajamento e desenvolvimento de novas ferramentas.
2.4. Contradição: princípio da unidade procedimental em xeque.
Destaco, aqui, uma contradição de fundo entre o espírito geral do sistema processual (garantir tratamento igual a todos perante a lei) e a diversidade das soluções que podem surgir pelas mãos dos muitos tribunais. Há aspectos administrativos e de governança que mereceriam destaque. Prefiro, entretanto, chamar a atenção para esse desencontro sob ótica jurídica. Os cidadãos terão uma justiça caracterizada pela abordagem técnica privilegiada por cada tribunal. O requisito da igualdade perante a lei parece maculado quando se produz a dicção do direito com ferramentais tecnológicos tão diferentes.
No sistema analógico, pré-tecnológico e secular, a diversidade de visões jurídicas em operação, na base do sistema (primeiro grau de jurisdição), sempre teve um valor especial para promover a pluralidade, oxigenar o sistema e garantir a todos, no conjunto, um espaço público de exposição de suas pretensões. Tudo, entretanto, submetido à rigidez de um procedimento único. Pelas lições de Luhmann, em Legitimação pelo procedimento, diante da incapacidade de recompor os fatos e promover a recomposição do direito lesado, o Direito passou a prometer, azo menos, um procedimento único e fortemente regrado. Mesmo com a ressalva das jurisdições especializadas, como a trabalhista, dentro delas o procedimento, que legitima a dição do direito, é único.
A IA permite alterar profundamente a ferramenta procedimental e, assim, romper o princípio de unidade procedimental, um apanágio do devido processo legal. É difícil saber por que prevaleceu essa arquitetura contraditória. Albergar interesses e obter apoios talvez tenham influído. Igualmente a urgência de uma solução, ainda que provisória, e o encanto das novas ferramentas podem ter induzido o descuido com o olhar mais importante que é o jurídico-sistêmico.
3. ASPECTOS MUITO POSITIVOS DA REGULAÇÃO.
Há pelo menos três aspectos muito positivos a apontar no texto regulatório:
(a) o primeiro é o fomento ao uso da IA quebrando a histórica resistência dos juristas brasileiros à tecnologia e capitalizando a atual disposição de "autocolonizar-se tecnologicamente", impulsionada pelo fascínio das novas ferramentas.
(b) em segundo lugar, destaca-se a consciência da provisoriedade, um fator que permite o uso sob regulação com limites à extensão (apenas suporte aos decisores, por exemplo), revisões periódicas, fiscalizações continuadas e avaliações de risco, o que parece responder à questão da Justice da Suprema Corte norte-americana sobre "como regular se não sabemos o que é, como é e nem como será?" A resolução 615/CNJ foi o modo brasileiro de regular e uma possível resposta a todos os que se dedicam a encontrar caminhos no âmbito das regulações.
(c) por fim, ressalta-se a consciência dos riscos e a disposição para enfrentá-los de modo a não permitir que o receio impeça os avanços, tendo sido inteiramente adotada a classificação de riscos da União Europeia, com pequenos ajustes.
4. ASPECTOS QUE EXIGEM MAIS REFLEXÃO E ATENÇÃO.
Destaco três aspectos do texto regulatório que parecem exigir melhor consideração e aprofundamento. Dizem respeito à gestão e à juridicidade dos efeitos do instrumento.
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(a) Autonomia dos tribunais: nos primórdios do processo eletrônico e antes do lançamento do Processo Judicial Eletrônico (PJe), o Brasil chegou a ter quase 50 sistemas eletrônicos de processamento de ações judiciais (SEPAJ) distintos. Esse número era um complicador para os advogados e, pior ainda, para a gestão da Justiça, pois políticas nacionais não podiam ser traçadas. A complexificação das soluções, na base, impedia que, nos recursos, apenas o objeto processual passasse à alçada da corte superior. Tudo tinha de ser refeito no formato esperado na corte de revisão. E não se tratava apenas de um problema técnico-sistêmico (compatibilidade, interoperabilidade etc). É válido pensar que, sob uma compreensão sistêmica, a igualdade perante a lei não deve depender da disposição do tribunal ou do juiz de usar ou não determinado ferramental no ato de dizer o direito. Colocar tudo sob uma ótica jurídico-sistemática de igualização procedimental exigiria, provavelmente, a concessão de menor autonomia ao tribunais no tocante ao ferramental de base a ser utilizado;
(b) Princípios fundamentais do processo judicial de decisão: embora a resolução limite o uso da IA a atividades de suporte e exija a supervisão humana, muitos princípios constitucionais podem ser, na prática, violados: livre convicção, juiz natural, transparência, fundamentação das decisões. Como visto, a textura aberta da resolução cumpre um papel relevantíssimo porque imprime ductibilidade à norma regulatória e lhe garante sobrevida evolutiva frente à mutante realidade. Mas traz junto o risco da insegurança jurídica em relação a princípios considerados basilares do devido processo. Até que ponto, pela via interpretativa, serão maculados princípios como o da livre convicção (pluralidade e diversidade), juiz natural, transparência, fundamentação das decisões e vários outros?
(c) Controle do “polvo”: A regulação é muito detalhada e complexa, prevendo muita fiscalização, o que não será fácil cumprir, considerando-se o número de sistemas (autonomia dos tribunais) e ferramentas utilizadas. Controlar o polvo exigirá grande esforço e recursos e deve-se considerar que as ferramentas estão em movimento contínuo: o LLM de hoje não é o de ontem, nem o de amanhã.
5. DISPUTAS.
Duas questões estão sendo levantadas aos poucos, embora ainda em grupos restritos:
(a) Publicidade dos prompts: os prompts usados para elaborar decisões devem ser públicos (ir para a caixa branca de sentenças) ou não (ir para a caixa preta)? O jurisdicionado tem o direito de conhecer o prompt que conduziu à decisão que lhe foi dada? Afinal, as razões de decidir (fatos, valorações, normas...) são passadas ao algoritmo de IA, no caso, via prompt. Cabe, então, considerar e disciplinar eficientemente o disclosure dos prompts, tendo em conta, especialmente, a difusão, no Brasil, dos chamados prompts de prateleira.16 O ensino da construção de prompts (como bem dialogar com a IAGen para obter bons resultados) é uma coisa. A difusão de coleções de prompts, prontos para a produção de certo resultado, é bastante problemática, quando se entra na seara da decisão.
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(b) Dispositivo sobre a transparência: A Resolução CNJ nº 615/2025 trata da transparência como um princípio fundamental. No entanto, uma leitura sistemática e o exame dos dispositivos específicos demonstram uma lacuna preocupante entre o discurso normativo e a prática exigida dos operadores, notadamente dos decisores. O art. 3º, que trata dos princípios orientadores, diz que “IV- Transparência e explicabilidade: os sistemas de inteligência artificial devem ser transparentes quanto ao seu funcionamento e decisões, e suas ações devem ser compreensíveis para os usuários e partes interessadas.” E o artigo 19, §3º, I, diz o seguinte sobre o uso de IA generativa: ““É facultado ao magistrado ou servidor indicar, na decisão ou documento produzido, que houve auxílio de solução de inteligência artificial generativa, desde que não haja comprometimento da segurança da informação ou do sigilo legalmente protegido.”
Ora, afinal, onde está a transparência? Apesar da ênfase ao princípio da transparência, o texto normativo não obriga que o uso de IA seja informado nas decisões judiciais. A expressão “é facultado” no §3º do Art. 19 revela que: 1) Não há dever de informar ao jurisdicionado que uma decisão foi produzida com auxílio de IAgen. O alcance de “produzir” é grande e, na atualidade, praticamente é impossível pensar numa decisão produzida sem algum auxílio de IA; 2) Não há exigência de registro público ou rastreabilidade clara sobre quais decisões foram influenciadas por sistemas automatizados e 3) Não há garantia de explicabilidade real, pois o funcionamento interno dos modelos (especialmente LLMs proprietários) pode ser opaco até para os próprios tribunais. Isso dependerá sempre da modelagem adotada.
A confiança pública na dicção do direito pode ser comprometida, porque o cidadão não tem como saber se sua causa foi analisada por um humano, por um sistema automatizado, ou por uma combinação dos dois. A facultatividade da informação impede o controle social e a responsabilização, especialmente em casos de erro, viés ou decisões contraditórias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Resolução CNJ 615 representa um marco significativo na abordagem do Brasil em relação à regulação da inteligência artificial no âmbito judicial. Trata-se de um bom trabalho, feito para um período revolucionário e disruptivo, com disposição de avanço. Pode-se afirmar que, ao reconhecer a inevitabilidade da "autocolonização técnica" e a rapidez da evolução da IA, o regulador buscou um modelo flexível e adaptável, que incentiva a inovação sem ignorar os riscos. A resolução demonstra uma rara disposição do Poder Judiciário para aproveitar-se maximamente da tecnologia (estado da arte atual e avanços) e atacar o problema do persistente acervo processual brasileiro. Parece haver a firme disposição do Poder Judiciário de se reinventar para dar concretude à vontade constitucional expressa no inciso VXXVIII do artigo 5º da Constituição da República Federal do Brasil.
No entanto, a implementação dessa norma não será isenta de desafios. A textura aberta de seus termos, a contradição aparente em relação à transparência dos prompts e a dificuldade de fiscalizar um conjunto de sistemas, dedicados à mesma tarefa, em constante mutação, são pontos que merecem atenção contínua. A coexistência de diferentes LLMs e a autonomia dos tribunais, embora promovam uma competição salutar para fins de inovação, podem comprometer a uniformidade do sistema judicial e a igualdade perante a lei. Cabe agora aos intérpretes e à comunidade jurídica em geral garantir que o espírito da norma seja mantido, utilizando as ferramentas oferecidas para controlar o leme da transformação digital, sem perder de vista os princípios fundamentais que regem o nosso ordenamento jurídico. O futuro da IA no Direito brasileiro dependerá da capacidade de todos os envolvidos em equilibrar a inovação com a segurança e a justiça.