2. Pressupostos da responsabilidade civil
Como antecipado no item introdutório, a responsabilidade civil divide-se em responsabilidade civil subjetiva e objetiva. Ambas demandam a demonstração de um 1 dano, 2 uma conduta produtora deste dano, 3 o nexo de causalidade entre 1 e 2. Na responsabilidade civil subjetiva demanda-se, além disso, a demonstração da culpa do agente praticante da conduta 2. Agora realizaremos um tratamento mais minucioso desses elementos.
Entende-se por DANO, de acordo com Caio Mario, a lesão a um bem jurídico (2018. Cap. 4, itens 34-A, 36 e 37.). Sem a existência de um dano ou prejuízo a ser reparado, a responsabilidade civil não se materializa, distinguindo-se assim das responsabilidades moral e penal. O autor adota a definição de dano como "toda ofensa a um bem jurídico", buscando deliberadamente fugir da restrição de que o prejuízo deva ser apenas patrimonial. Este conceito abrange lesões à integridade física ou moral da pessoa, bens corpóreos ou incorpóreos objeto de relações jurídicas, o direito de propriedade, direitos de crédito, a vida, a honra e o bom conceito social.
Para que o dano seja passível de ressarcimento, a Caio Mário estabelece que ele deve preencher os seguintes requisitos: 1 atualidade: o dano é atual se já existe ou existiu "no momento da ação de responsabilidade". Embora a regra geral indique que um dano futuro não justifique a ação de indenização, ela não é absoluta. Um dano futuro pode ser indenizável se for consequência de um dano presente e se os tribunais tiverem elementos para avaliá-lo, e 2 certeza: o dano deve ser certo, fundado em um fato preciso e não em mera hipótese. Não se admite a reparação de prejuízo meramente hipotético ou eventual. Isso não significa dizer que o prejuízo necessita estar integralmente realizado; exige-se apenas a certeza de que ele se produzirá ou poderá ser apreciado por ocasião da sentença na ação.
A CONDUTA, por sua vez, é definida por Maria Helena Diniz como o ato humano, comissivo ou omissivo, ilícito ou lícito, voluntário e objetivamente imputável, do próprio agente ou de terceiro, ou o fato de animal ou coisa inanimada, que cause dano a outrem, gerando o dever de satisfazer os direitos do lesado. Como se vê, a autora não define a conduta de modo a restringir as hipóteses de responsabilidade civil, seja aos casos de conduta ilícita, seja aos danos diretamente atribuíveis ao responsável legal. Apesar disso, o conceito tampouco é aberto, o que se verifica pela ênfase dada a voluntariedade e a imputabilidade objetiva da conduta. Segundo ela, “[a conduta] deverá ser voluntária no sentido de ser controlável pela vontade à qual se imputa o fato, de sorte que excluídos estarão os atos praticados sob coação absoluta; em estado de inconsciência, sob o efeito de hipnose, delírio febril” (2024. Cap. 2, item 2, B), etc.
O NEXO DE CAUSALIDADE ou relação causal entre a conduta e o dano produzido não é um objeto cujo estudo seja particular do direito. Na verdade, as preocupações com o nexo de causalidade ou da relação causal entre coisas pertencem até mais apropriadamente ao domínio da filosofia – e mais propriamente da metafísica. Caio Mario observa alguns elementos a respeito desse requisito da responsabilidade civil. Segundo o autor, o nexo de causalidade é um vínculo necessário entre conduta e dano: é a interligação que deve ser estabelecida entre a injuridicidade da ação (isto é, a conduta ilícita) e o mal causado (o dano). Note que aqui o autor está defendendo conceituação mais restritiva que Maria Helena Diniz. Aquela provavelmente usaria a expressão mais neutra “entre a ação [simplesmente, lícita ou ilícita] e o mal causado (o dano)”. Não é mera coincidência da conduta ilícita e do dano: não se responde porque calhou de haver uma conduta ilícita e ao mesmo tempo a produção de um resultado danoso, não, há legítima relação de dependência: para que a responsabilidade se concretize, é indispensável que o dano tenha ocorrido "porque" o agente procedeu contra o direito - o nexo causal como condição necessária do dano. A demonstração do nexo depende, porém, da teoria adotada para a identificação da causa. Caio Mário enumera as seguintes:
teoria da equivalência das condições: sustenta que todas as "condições" que concorreram para a realização de um dano são consideradas causas e são "equivalentes". Segundo esta teoria, a causa se insere em cada uma das condições, pois o resultado não se teria produzido se a condição não houvesse ocorrido (conditio sine qua non).
teoria da causalidade adequada: baseia-se em um critério de probabilidade e busca destacar o antecedente que, no "curso normal das coisas", está em condições de necessariamente ter produzido o dano. Fatos menos relevantes ou indiferentes à efetivação do prejuízo são eliminados.
O art. 403 do CC adota a teoria da causalidade adequada ao considerar ressarcíveis apenas os prejuízos efetivos e os lucros cessantes causados por efeito direto e imediato da inexecução. Isso exige um liame de necessariedade entre a conduta (causa) e o efeito (dano), afastando o ressarcimento quando uma causa autônoma mais próxima interrompe o nexo causal. Em última análise, a determinação do nexo causal envolve uma quaestio facti (questão de fato), e o juiz deve examinar cada caso com bom senso, equilíbrio e equidade (cum arbitrio boni viri), não aplicando as fórmulas de maneira cega e automática (PEREIRA, 2018. Cap. 6, itens 64, 68 e 73). O nexo causal pode ser rompido por fatores como a culpa exclusiva da vítima o caso fortuito ou a força maior (casus a nullo praestantur), o que faz desaparecer a responsabilidade. Essas são as chamadas excludentes, que serão detalhadas mais a frente.
Na lição de Caio Mário, a CULPA, somente é requisito necessário para a constituição da responsabilidade civil subjetiva e, tomado em sentido lato é gênero que abrange tanto o dolo quanto a culpa propriamente dita. Neste sentido amplo, a culpa com o significado de iniuria compreende também a ofensa dolosa. Modernamente, o conceito de dolo caracteriza a conduta antijurídica em que o agente tem a consciência do resultado prejudicial de seu procedimento, mesmo que não tenha o propósito exato de causar o mal (animus nocendi), enquanto a culpa, em sentido estrito, é um erro de conduta, cometido pelo agente que, procedendo contra direito, causa dano a outrem, sem a intenção de prejudicar, e sem a consciência de que seu comportamento poderia causá-lo. A culpa, que se subdivide em negligência, imprudência e imperícia é a violação de um dever preexistente que o agente podia conhecer e acatar. A voluntariedade pressuposta na culpa é a da ação em si mesma, a consciência do procedimento, que se alia à previsibilidade. Isso aponta para a superação do conceito psicológico de culpa e a assunção pela doutrina moderna da culpa normativa, que se traduz no desrespeito a padrões objetivos de comportamento exigíveis no caso concreto. Por fim, nota o autor que a culpa é caracterizada por uma unidade: apesar de se desdobrar em diversas modalidades (grave, leve, levíssima, contratual, extracontratual), o conceito de culpa é unitário. Essas modalidades são consideradas apenas aspectos acidentais (accidentalia negotii) que não alteram o conceito ontológico básico da culpa: a violação do dever preexistente e o comportamento ilícito (2018. Cap. 5, itens 55. 58. e 59).
3. Excludentes do dever de indenizar
De acordo com o CPC, é dever do réu demonstrar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor. Numa ação indenizatória onde pretenda-se a responsabilização civil de alguém, este alguém é equipado pelo ordenamento jurídicos brasileiros com algumas teses defensivas, para livrar-se da pretensão de responsabilização civil. Entendidos os requisitos para a caracterização da responsabilidade civil, é claro que, se o réu for capaz de demonstrar a ausência destes requisitos – e não se tratar de alguma daquelas circunstâncias excepcionais onde se flexibilizam os requisitos constitutivos da responsabilidade – estará fulminada a pretensão autoral. Viu-se que a responsabilidade subjetiva demanda a demonstração da conduta do ofensor, do dano, do nexo de causalidade e da culpa. Neste caso, se conseguir o réu demonstrar que: 1) não houve conduta (omissiva ou comissiva), 2) inexiste dano, 3) não há nexo de causalidade ou 4) não há culpa, então demonstrou fato extintivo do direito do autor.
Trata-se, algumas dessas hipóteses, de excludentes do dever de indenizar: aquelas que afetam a culpa e o nexo de causalidade, principalmente. Há casos exemplares estudados pela doutrina civilista, são eles: o fato de terceiro, a culpa exclusiva da vítima, o fato fortuito, a força maior, a atuação em estado de necessidade, a atuação em legítima defesa e o exercício regular de direito.
LEGÍTIMA DEFESA segundo Arnaldo Rizzardo (2019. Cap. 5, itens 1-7.) é um ato considerado não ilícito, previsto no art. 188, inc. I, do Código Civil. O indivíduo, ao defender sua pessoa ou seus bens, exerce um direito que emana diretamente da personalidade ou da natureza humana. Mesmo não necessitando de prévio reconhecimento na esfera penal, o ato prevalece na esfera cível se for perfeitamente provado. Para que a isenção de responsabilidade seja válida, devem concorrer os seguintes requisitos, muito semelhantes ao mesmo instituto no direito penal: a agressão deve ser atual, deve ser impossível de prevenir ou obstar a ação ou invocar e receber socorro de autoridade pública, não pode ter havido provocação que ocasionasse a agressão, ou, em outros termos, a agressão tem que ser injusta. Os meios empregados para a defesa devem ser moderados.
O EXERCÍCIO REGULAR DE UM DIREITO RECONHECIDO, assim como a legítima defesa, é listado como um ato não ilícito pelo art. 188, inc. I. O dever de indenizar não incide, pois a lei permite o exercício do direito.
O ESTADO DE NECESSIDADE ocorre quando se pratica a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Embora o Código Civil o inclua no rol de atos não ilícitos (art. 188, II), Rizzardo, no mesmo lugar, destaca que a lesão determinada por esta conduta não isenta da indenização. O dever de reparar decorre da eficácia do ato-fato jurídico, e não de um ato ilícito. O dono da coisa que sofreu o prejuízo tem direito à indenização. Nesse caso, o autor do dano pode ajuizar uma ação regressiva contra o terceiro cuja culpa deu origem ao perigo, para reaver a quantia ressarcida ao lesado.
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O ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL é uma causa de exclusão reconhecida no âmbito criminal. Contudo, no juízo cível, esta circunstância não exclui a ilicitude civil. O autor, citando Hélio Tornaghi, ressalta que é irrelevante no juízo cível que o ato tenha sido decidido como estrito cumprimento do dever legal no criminal, pois é justo e razoável que o dano seja ressarcido ou reparado. O juízo cível deve, portanto, conhecer do fato para avaliar a extensão da agressão e o grau de culpa.
CASO FORTUITO ou FORÇA MAIOR são expressões que encerram, para Rizzardo, o mesmo sentido. Eles são causas que afastam a responsabilidade por interromperem o nexo causal. A caracterização da força maior ou caso fortuito reside em dois elementos: a inevitabilidade do evento (que é um elemento objetivo) e a ausência de culpa no comportamento (que é um elemento subjetivo). Assim, o conceito envolve todo o acontecimento inevitável, necessário, “a cujos efeitos não seria dado a nenhum homem prudente prevenir ou obstar”.
A CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA é um fator que afasta a responsabilidade. Quando o dano é causado unicamente pela conduta culposa do lesado, desaparece a relação de causa e efeito entre o ato do agente e o prejuízo resultante. Nesse cenário, não há participação indenizatória de terceiros, pois o dano se deveu exclusivamente ao lesado:
“Mesmo provando o agente ou titular do bem que adotou todas as medidas possíveis para evitar o dano, arcará com as consequências, a menos que fique evidenciada a ocorrência por culpa inescusável da vítima, pois desaparece a relação de causa e efeito entre o ato do agente e o prejuízo resultante.”. (RIZZARDO, 2019. Cap. 5, item 7)
Flávio Tartuce acrescenta, ainda as CLÁUSULAS DE NÃO-INDENIZAR entre as excludentes (2018. Cap 18, item 6), conceituando-as como uma previsão contratual (também chamada de cláusula de irresponsabilidade ou cláusula de exclusão de responsabilidade) pela qual a parte exclui a presença de pressupostos do dever de reparar o dano. Por mais que possa causar estranhamento, a cláusula é juridicamente viável no âmbito do inadimplemento das obrigações (responsabilidade contratual), mas não na responsabilidade extracontratual (aquiliana), que envolve preceitos de ordem pública. Está também excluída (sob pena de nulidade), nos casos de conduta dolosa do agente ou na presença de atos criminosos da parte ou se pactuada contra o consumidor, por expressa previsão dos arts. 25. e 51, inc. I, do CDC. Em outras palavras, somente parece válida e eficaz em contratos civis paritários ou negociados, especialmente se as partes limitarem as indenizações a determinados tipos de danos (como a exclusão de lucros cessantes ou danos indiretos), servindo como instrumento de gestão de riscos.
Conclusão
A responsabilidade civil é tema que se encontra na espinha dorsal do direito civil brasileiro, é ao menos tão essencial para ele quanto a pena é essencial para o direito penal. Por isto, importa revisitar seus conceitos fundamentais em constante processo de críticas e sínteses das opiniões dos principais doutrinadores a versar sobre os princípios, funções, requisitos e características da responsabilidade civil. Acreditamos ter sido possível apontar algumas falhas na compreensão do instituto da responsabilidade civil, mesmo em autores tão notáveis quanto Vicenzo Roppo ou Nelson Rosenvald, o que assinala que um assunto de tamanha importância está acompanhado de uma imensa dificuldade.