Resumo: O presente trabalho realiza uma análise panorâmica dos requisitos de admissibilidade do Recurso Extraordinário, previsto no art. 102, III, da Constituição Federal, com especial atenção à função e à estrutura do filtro da repercussão geral. A pesquisa, de natureza teórico-dogmática e abordagem analítica, examina as hipóteses de cabimento, os pressupostos intrínsecos e extrínsecos e o iter procedimental do Recurso Extraordinário, destacando sua função no controle difuso de constitucionalidade e na uniformização da interpretação constitucional. A partir da revisão da literatura especializada — notadamente Marinoni, Mitidiero, Scarpinella Bueno, Kozikoski e Gomes —, o trabalho identifica o Recurso Extraordinário como instrumento de racionalização do sistema de precedentes e de consolidação da integridade jurisprudencial, enfatizando o papel da repercussão geral como mecanismo de filtragem necessário à eficiência e à coerência do Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: Recurso Extraordinário. Requisitos de admissibilidade. Repercussão geral. Supremo Tribunal Federal. Precedentes.
Sumário: Introdução. 1. Recurso extraordinário o que é. 2. Requisitos de admissibilidade. 2.1. A discriminação e demonstração detalhada da ofensa constitucional o resumo dos fatos e da controvérsia jurídica e as razões que justificam o pleito de reforma ou invalidação da decisão recorrida. 2.2. A preliminar formal de repercussão geral. 2.3. Interposição conjunta do recurso especial e do extraordinário se for o caso. 2.4. Prequestionamento da questão constitucional. 2.5. Necessidade de esgotamento das instâncias ordinárias. 2.6. Hipóteses de cabimento do recurso extraordinário. 2.6.1. Decisão que contraria a Constituição Federal (art. 102, III, a, da CF). 2.6.2. Decisão que declara a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal (art. 102, III, b, da CF). 2.6.3. Decisão que julgar válida lei ou ato de governo local contestada em face de norma constitucional (art. 102, III, c, da CF). 2.6.4. Decisão que julgar válida lei local contestada em face de lei federal (art. 102, III, d, da CF). 3. Função e efeitos do recurso extraordinário. 3.1. Efeito obstativo. 3.2. Efeito substitutivo. 3.3. Efeito devolutivo. 3.4. Efeito suspensivo. 4. Rito da petição de interposição ao julgamento do extraordinário. 4.1. Etapa 1. 4.2. Etapa 2. Conclusão. Referências.
Introdução
O Recurso Extraordinário ocupa posição singular no sistema recursal brasileiro: ao mesmo tempo em que constitui o ápice da via recursal ordinária, representa um mecanismo de natureza excepcional, destinado à tutela da ordem constitucional e à uniformização da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Seu estudo ultrapassa o mero interesse técnico-processual, projetando-se sobre a própria lógica do controle difuso de constitucionalidade e sobre o papel do STF como corte de precedentes.
O presente trabalho propõe-se a examinar os requisitos de admissibilidade do Recurso Extraordinário sob uma perspectiva panorâmica — uma “visão de cima” do instituto —, capaz de integrar seus aspectos formais e substanciais, processuais e epistemológicos. A abordagem adotada é analítica e sistemática, com ênfase no filtro da repercussão geral, mecanismo que redefine a função do Supremo Tribunal Federal e a relação entre eficiência e acesso à jurisdição constitucional.
Para tanto, realiza-se inicialmente a delimitação conceitual e normativa do Recurso Extraordinário, distinguindo-o de outros meios de impugnação e situando-o no contexto do Código de Processo Civil de 2015. Em seguida, analisam-se os requisitos intrínsecos e extrínsecos de admissibilidade, relacionando-os com as noções de cabimento, legitimidade, interesse recursal e prequestionamento. O estudo avança, então, para o exame da repercussão geral como condição de processamento e critério de racionalização da atuação do STF, discutindo sua natureza, seus fundamentos teóricos e seus efeitos práticos sobre o sistema de precedentes.
1. Recurso Extraordinário, o que é 1
O Recurso Extraordinário é um recurso, significando dizer que é um instrumento que os operadores do direito podem utilizar em suas demandas para ter provida alguma pretensão que fora denegada ou violada em instâncias inferiores – este pleito, porém, se dará sempre de forma indireta ou oblíqua (KOZIKOSKI, 2016, pg. 1021). Este recurso é recebido pelo Supremo Tribunal Federal e, como seu título caracterizador “Extraordinário”2 corretamente indica; é utilizado em circunstâncias não-ordinárias, com um rol bastante restritivo de hipóteses (motivação vinculada às hipóteses constitucionais – Art. 102. da CF, III, alíneas “a”, “b”, “c” e “d”), neste sentido Kozikoski;
“o recurso extraordinário, por sua vez, está adstrito às hipóteses de fundamentação vinculada. Está jungido à discussão de matéria jurídica, prestando-se ao controle difuso de constitucionalidade. Não servindo para propiciar nova convicção acerca da prova (enunciado 279 da Súmula do STF)”. (KOZIKOSKI, 2016, pg. 1021)
Não é recurso propício para a contenda de questões de fato, de modo que “a finalidade dos recursos que compõem tal gênero [o gênero dos recursos extraordinários] não é rever a justiça da decisão diretamente, ou seja, a defesa de direitos subjetivos das partes, mas a análise de ofensa a normas jurídicas pela decisão recorrida” (RODRIGUES, 2017, pg. 269). Um adendo, porém, sobre a mera rediscussão de provas (vedada no Recurso Extraordinário), ou o “conhecimento de fatos” no Recurso, é trazido por Marinoni e Mitidiero:
“Isso quer dizer que em recurso extraordinário e em recurso especial a parte não apenas pode, mas na verdade tem o ônus de caracterizar os fatos do caso – ou melhor, de delinear o caso em todos os seus aspectos fático-jurídicos (art. 1.029, I). Daí que é tecnicamente incorreto afirmar que não se pode conhecer de fatos em recurso extraordinário e em recurso especial: o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça podem conhecer de fatos, porque do contrário não teriam como conhecer do próprio caso levado à consideração mediante recurso extraordinário e recurso especial.” (MARINONI, 2020, pg. 470)
No mesmo lugar, ainda acrescentam que “o que não é possível é rediscutir a existência ou inexistência dos fatos em recurso extraordinário e em recurso especial”.
Este aspecto vinculativo das hipóteses do Recurso Extraordinário é relevante porque denota a finalidade precípua do instrumento: garantia da validade, uniformidade e eficácia das normas constitucionais. Além de delimitar o escopo de trabalho da cúpula, combatendo ao problema crônico da massiva quantidade de recursos a serem julgados quotidianamente pelos Ministros.
2. Requisitos de Admissibilidade
Este tópico é de bastante relevância, uma vez que a repercussão geral, objeto específico deste trabalho, se enquadra numa dessas exigências, e será comparada e sopesada com seus pares. Ademais, compreendê-las se faz útil, uma vez que são os verdadeiros obstáculos à recepção e apreciação dos Recursos Extraordinários na praxe.
Estes requisitos são claramente paralelos às exigências das condições da ação e dos pressupostos processuais, um “mínimo” que deve perdurar por todo o processo, embora seja observado mais pontualmente ao início da ação e quando da interposição de recursos, como tanto enfatiza Scarpinela Bueno:
“os recursos são indicativos seguros dos desdobramentos do direito de ação e do direito de defesa pelo autor, pelo réu e, se for o caso, pelos terceiros intervenientes, ao longo do processo, de seu efetivo exercício durante todo o processo, portanto. Todo e qualquer ato praticado pelas partes e pelos terceiros no processo pressupõe a reunião de elementos mínimos e diversos pressupostos cujo exame consubstancia o juízo de admissibilidade recursal.” (BUENO, 2019, pg. 804. – grifo ausente no original)
O juízo de admissibilidade consiste, então, na análise dos pressupostos necessários para que se possa apreciar o mérito do recurso, viabilizando que seja provido ou improvido.
É de antecipar que para os recursos excepcionais, o juízo de admissibilidade será promovido em duas frentes, como bem lembra Sérgio Kozikoski, em paralelismo com o Código de Processo Civil de 1973: “Com efeito, foi retomada a sistemática de admissibilidade compartilhada, realizada de forma bipartida em que o exame provisório envolvendo a admissão ou inadmissão do recurso excepcional compete ao Tribunal local” (KOZIKOSKI, 2016, pg. 1021).
José Carlos Barbosa Moreira, propunha que o conteúdo do juízo de admissibilidade seja classificado em dois gêneros, o dos requisitos intrínsecos (concernentes à existência do direito de recorrer) e dos requisitos extrínsecos (concernentes ao modo de exercício do direito de recorrer).
“Alinham-se no primeiro grupo: o cabimento, a legitimação para recorrer, o interesse em recorrer e a inexistência de fato impeditivo (v.g., os previstos no art. 881, caput, fine) ou extintivo (v.g., os contemplados nos arts. 502. e 503) do poder de recorrer. O segundo grupo compreende: a tempestividade, a regularidade formal e o preparo” (MOREIRA apud BUENO, 2019, pg. 809)
Interessante articular o sistema classificatório de Barbosa Moreira com os requisitos particulares do Recurso Extraordinário, o que estabeleceria o seguinte quadro:
São requisitos de admissibilidade do Recurso Extraordinário: (a) requisitos extrínsecos: (a1) tempestividade, (a2) regularidade formal e (a3) o preparo. Já na peça de interposição do apelo extremo, (a4) a discriminação e demonstração detalhada da ofensa constitucional, o resumo dos fatos e da controvérsia jurídica, e as razões que justificam o pleito de reforma ou invalidação da decisão recorrida (a5) a preliminar formal de repercussão geral, e (a6) interposição conjunta do Recurso Especial e do Extraordinário, se for o caso. (b) Requisitos intrínsecos: (b1) o cabimento, (b2) a legitimação para recorrer, (b4) o interesse recursal e (b4) a inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer, (b5) prequestionamento da questão constitucional (requisito compartilhado pelo Recurso Especial e de Revista, quanto às ofensas de que tratam cada um), (b6) a repercussão geral da questão constitucional, (b7) necessidade de esgotamento das instâncias ordinárias.3
Útil, portanto, uma breve exposição dos requisitos de admissibilidade mais particulares:
2.1. A discriminação e demonstração detalhada da ofensa constitucional, o resumo dos fatos e da controvérsia jurídica, e as razões que justificam o pleito de reforma ou invalidação da decisão recorrida.
É bastante autoexplicativo, mas cumpre enfatizar o que se quer dizer com o primeiro período; o mero apontamento genérico da existência de violação ao texto da Constituição, não é cumprimento satisfatório deste requisito, resultando na não-recepção da peça. É necessário, na peça, apontar especificamente qual das alíneas do inciso III, do art. 102. da CF, é justificadora do recurso em questão, procedendo então à demonstração da ofensa. É o que diz Araken de Assis: “O inciso revela a circunstância de o cabimento estrito do extraordinário obrigar o recorrente a expor motivação vinculada na petição de interposição. Quer dizer, é preciso, sob o abrigo do art. 1.029, II, individualizar a questão constitucional.” (ASSIS, 2017, pg. 638), e detalha Flávio Marcelo Gomes:
“É fundamental nos recursos extremos que a parte delimite exatamente onde se encontra na decisão recorrida a ofensa à CF ou lei federal [...] Não é difícil o recurso acabar se enquadrando nessa situação quando a parte [...] se limita a mencionar os dispositivos legais que teriam sido violados, sem demonstrar a forma pela qual eles teriam aplicação ao caso concreto e foram ignorados pelo juízo a quo.” (GOMES, 2020, pg. 27)
De impacto na praxe forense é a observação da claríssima distinção entre, ao realizar o juízo de admissibilidade o tribunal recorrido observar “alegação de ofensa a constituição” (o que é requisito) e observar efetiva ofensa à Constituição (o que sequer lhe compete), testemunha Marinoni:
“Note-se que aí o que está em jogo é apenas o juízo de admissibilidade do recurso: vale dizer, um juízo a respeito da existência de alegação de violação à Constituição e à lei federal. Obviamente que não compete ao tribunal recorrido afirmar a existência ou inexistência de efetiva violação da Constituição ou da lei federal” (MARINONI, 2020, pg. 472)
Isto seria confundir juízo de admissibilidade com juízo de mérito, e o mérito do extraordinário, naturalmente, compete à Corte Suprema. Mais sobre isso à frente.
2.2. A preliminar formal de repercussão geral
De novo, é requerido a formulação de uma preliminar formal onde aponte-se a espécie de repercussão geral, seguindo-se sua demonstração. Inábil a mera afirmativa “há repercussão geral”. A questão é polêmica, e o STF tem se posicionado frontalmente contrário à parcela autorizada da doutrina. Não só esta última entende que a formalidade é inexigível, como, ainda que fosse exigível, não poderia ensejar inadmissão do recurso diretamente (GOMES, 2020, pg. 51). A Corte, porém, sequer confere prazo para a retificação do recurso faltoso, pautado no art. 327, caput e §1° do RISTF. Ao lado do Supremo Tribunal Federal, porém, Mitidiero e Marinoni, para quem:
“sendo requisito intrínseco de admissibilidade do recurso extraordinário, a exposição da repercussão geral deve ser feita preliminarmente ao mérito do recurso extraordinário. O fato de o Código de 2015 não repetir essa exigência em nada altera essa necessidade, dado que se trata de questão preliminar. A inexistência de repercussão geral leva à inadmissibilidade do recurso extraordinário” (MITIDIERO, 2020, pg. 471)
2.3. Interposição conjunta do Recurso Especial e do Extraordinário, se for o caso.
Esse requisito refere-se às hipóteses em que é necessária a interposição conjunta de Recurso Especial e Extraordinário. Isto ocorre quando a decisão enfrentada tem justificativa tanto constitucional quanto infraconstitucional, podendo sustentar-se por qualquer um dos fundamentos. Nessa hipótese, mesmo que fosse aceito o Recurso Extraordinário, isso não resultaria na anulação ou reforma da sentença, porquanto o argumento restante – que não será objeto da análise do Pretório – manteria o decisium viável. Assim, exige-se a interposição conjunta. A este respeito, proveitoso o comentário de Estefânia Viveiros: “Observe-se que o não conhecimento do especial também gera prejudicialidade do extraordinário quando se tratar apenas – repise-se – de decisão impugnada embasada em dois fundamentos que por si só são suficientes para a manutenção da decisão” (VIVEIROS apud KOZIKOSKI, 2016, pg. 1027) Segundo a autora, esse não será o caso da interposição conjunta opcional, porém, o autor poderia alegar infração legal, mas também constitucional, e sendo o caso do STJ não prover quanto à primeira, o STF ainda poderia prover quanto à segunda. Seria este um caso de inadmissão por insuficiência de fundamentação (GOMES, 2020, pg. 27). Tendo o recorrente interposto ao mesmo tempo recurso extraordinário e recurso especial, os autos serão remetidos ao Superior Tribunal de Justiça. Concluído o julgamento do recurso especial, os autos serão remetidos ao Supremo Tribunal Federal para apreciação do recurso extraordinário, se este não estiver prejudicado.
2.4. Prequestionamento da questão constitucional
Para Scarpinella, esse prequestionamento consiste simplesmente em dizer que a questão constitucional aqui referida é “questão já decidida”:
“É essa a razão pela qual [...] importante substituir, do ponto de vista não só dogmático, mas também pragmático, a palavra “prequestionamento” pela expressão, de inspiração constitucional, “causa decidida”. Havendo “causa decidida” acerca de uma dada tese de direito constitucional e/ou de direito federal infraconstitucional, o recurso extraordinário e o recurso especial são cabíveis.” (BUENO, 2019, pg. 994)
Dito de modo direto, a matéria alegada no Recurso Extraordinária foi alegada nas instâncias inferiores e, todavia, foi decidida ao dissabor do recorrente (senão, não haveria causa de pedir).
Uma questão sempre aparente ao lidar-se com este tópico é acerca das hipóteses em que os tribunais inferiores não abordaram expressa e explicitamente a questão constitucional combatida. Embora a nota ressoe tons de injustiça, isso é plenamente capaz de prejudicar o recorrente na admissão de seu recurso. Uma forma de compreender o fenômeno, é inverter a interpretação de “prequestionamento”. Em vez de ler-se prequestionamento como o ato em que o recorrente argui de dada tese, leia-se o ato em que a corte apelada posiciona-se sobre a tese aventada: “na prática, esse requisito é chamado de prequestionamento – nada obstante prequestionar seja na verdade uma atividade voltada ao enfrentamento pelo órgão que prolatou a decisão recorrida de determinada questão.” (MARINONI, 2020, pg. 471)
A opção que tem o autor é, então, a interposição de embargos de declaração – convenientemente chamados pela doutrina embargos prequestionadores - para que se supra a omissão. A lição de Marco Antônio Rodrigues é que sendo providos ou não, os embargos servirão como prequestionamento, devendo, porém, ser apostilados à peça de interposição do recurso:
“De acordo com o art. 1025, consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante suscitou, para fins de prequestionamento, ainda que os embargos de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados, caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade. [...] Nessa situação, com base no art. 1.025, o recurso especial ou extraordinário pode ter o requisito do prequestionamento cumprido, caso verificado que realmente havia um dos vícios que ensejariam os embargos e permitiriam a configuração do prequestionamento.” (RODRIGUES, 2017, pg. 292)
2.5. Necessidade de esgotamento das instâncias ordinárias
Leciona Araken de Assis; que “É indispensável, em qualquer caso, que o pronunciamento do juiz singular ou do tribunal seja “final”. Significa que o provimento há de se mostrar imune a
outro recurso na instância ordinária” (ASSIS, 2017, pg. 620). Isso pode se depreender até mesmo do gênero “extraordinário” de que o recurso é espécie. Supõe-se o esgotamento de todos os recursos ordinários disponíveis ao autor, além da incontroversa matéria fática da lide, discutindo-se tão somente a aplicação do direito, ou, no dizer de Scarpinella Bueno: “Pressupõe-se, para empregar expressão comuníssima, “exaurimento de instância” (BUENO, 2019, pg. 982).
2.6. Hipóteses de cabimento do Recurso Extraordinário
O Recurso Extraordinário poderá ser utilizado todas as vezes que a parte observar uma decisão judicial que: 1. contraria dispositivo da Constituição Federal, 2. declara a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, 3. julgar válida lei ou ato de governo local contestada em face de norma constitucional, 4. julgar válida lei local contestada em face de lei federal. Detalhes a seguir;
2.6.1. Decisão que contraria a Constituição Federal (art. 102, III, “a”, da CF)
É o caso em que uma decisão judicial reconhece ou denega uma pretensão em violação ao comando constitucional, momento em que a parte entendendo haver esta violação a acusará num Recurso Extraordinário, fundamentando o reclame na alínea “a”.
Flávio Marcelo Gomes, na esteira de Barbosa Moreira, faz arguta observação sobre a redação da hipótese:
“o modo como está redigida a hipótese de cabimento (“quando a decisão recorrida contrariar dispositivo desta Constituição”) dá falsa impressão de que, para o recurso ser cabível, exigir-se-ia a efetiva afronta ao texto constitucional. Nesse sentido, caso o STF entendesse inexistente a ofensa, deixaria de receber o recurso e não faria o julgamento de seu mérito. Essa interpretação, no entanto, não é correta, pois confunde a análise de mérito com o juízo de admissibilidade do recurso. Melhor seria, segundo José Carlos Barbosa Moreira, se a hipótese de cabimento fosse: “quando a decisão recorrida for impugnada sob a alegação de contrariar dispositivo desta Constituição” (GOMES, 2020, pg. 16)
De fato, o Recurso não é permitido apenas quando efetivamente houve violação da norma constitucional, afinal, isto obrigaria o STF a saber, já na apreciação dos requisitos de admissibilidade o próprio mérito da questão (o que tipicamente ocorre apenas num momento posterior à muitos debates e reflexões) ou levaria à mais engraçada situação de no mérito, o Supremo decidir pela não recepção do recurso (RODRIGUES, 2017, pg. 273). Em verdade, o que se requer é que a parte conteste a decisão firmada em (como constitutivo da sua argumentação) eventual afronta à norma constitucional. Em síntese; a alegação de ofensa à norma constitucional é requisito da admissão do recurso, a efetiva violação, de seu provimento.
Há de se antecipar, porém, que essa ofensa à norma constitucional será sempre direta, de modo que se faz vedado o combate à inconstitucionalidade reflexa por esta via. Em tal hipótese, o manejo devido é do Recurso Especial, explica Marco Antônio Rodrigues:
“A contrariedade mencionada no dispositivo há de ser direta à própria Carta da República, de modo que a decisão recorrida, ao aplicar a Constituição ao caso concreto, adote solução dissonante daquela preconizada pelo constituinte. Caso o juízo ou tribunal recorrido, antes de violar a Constituição, viole norma de hierarquia infraconstitucional, seja federal, estadual ou municipal, a ofensa será reflexa, não ensejando o cabimento do recurso extraordinário, ao menos com base na alínea “a” do art. 102, III, consoante a pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal” (no mesmo lugar).
2.6.2. Decisão que declara a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal (art. 102, III, “b”, da CF)
É o caso de uma decisão em instância inferior que declare formalmente a inconstitucionalidade de lei federal ou tratado internacional. Atenção à expressão “formalmente”, porque deve haver declaração expressa da inconstitucionalidade, sendo que a mera inaplicação da norma ao caso pelo entendimento não manifesto de inconstitucionalidade não incide no permissivo constitucional de manejo do Recurso (de novo, GOMES, 2020, pg. 20). A não aplicação, nesse caso, configuraria violação à cláusula de reserva de plenário, por força da Súmula Vinculante n° 10, que pode ser remediada por meio do Recurso Extraordinário, mas com justificativa na alínea anterior:
“O desrespeito a alguma dessas formalidades [do incidente de arguição de inconstitucionalidade] ensejará o cabimento de recurso extraordinário, com fundamento na alínea “a” do art. 102, III, por violação ao art. 97. da CF e, ainda, recurso especial, fundado no art. 105, III, “a”, da CF, por violação aos arts. 948. e 949 do CPC.” (RODRIGUES, 2017, pg. 274)
Atenção se dê ao emprego das expressões “lei federal” e “tratado”, na hipótese; aquela tendo sentido amplo (lei ordinária, lei complementar, medida provisória, entre outras) não incluindo apenas os atos infralegais federais, e esta tendo escopo amplo e compreensivo, abarcando tratado, pactos, convenções, protocolos e atos similares, quando internalizados (GOMES, 202, pg. 18).
2.6.3. Decisão que julgar válida lei ou ato de governo local contestada em face de norma constitucional (art. 102, III, “c”, da CF)
Como a define Flávio Marcelo Gomes;
“Nesta hipótese de cabimento, a parte suscita a inconstitucionalidade de lei ou ato administrativo prejudicial aos seus interesses. Ao apreciar a alegação da parte, o juízo recorrido não acolhe a alegação de inconstitucionalidade, mas, pelo contrário, entende válida a lei ou ato de governo local”. (2020, pg. 21)
A “lei” ou “ato de governo local” a que se refere o texto constitucional inclui, segundo a doutrina, certa amplitude de atos normativos e administrativos. São produto da atuação do Poder Local, os entes federativos Municipais, Distrital e Estaduais, acobertando desde regulamentações dos estatutos dos servidores municipais até decretos, portarias e regulamentos.
Observação a ser feita é que nessa hipótese não se agasalha a objeção ao acórdão/decisão que declare a inconstitucionalidade desta lei ou ato de governo local. O cabimento é exclusivo para a decisão que os declare constitucional, devendo a parte prejudicada enquadrar o Recurso Extraordinário em outra das alíneas se por bem entender.
2.6.4. Decisão que julgar válida lei local contestada em face de lei federal (art. 102, III, “d”, da CF)
A redação dada pelo constituinte não facilita o trabalho de interpretação novamente; aqui, entende a doutrina que a hipótese é mais de um “controle constitucional da competência” do que um controle de legalidade (da norma local pela federal). Isto porque a Constituição delineia as competências legislativas dos Entes Federativos em diferentes níveis; atribuindo porções à União, porções aos Estados e porções aos Municípios e Distrito Federal. Nessa linha, Marco Antônio Rodrigues:
“A Constituição da República traz, nos arts. 22, 24 e 30, um extenso rol de competências legislativas privativas e concorrentes da União, Estados e Municípios. Assim, se há discussão a respeito da validade de norma local em confronto com norma federal, teremos uma questão constitucional a ser dirimida, tratando da repartição de competências legislativas entre os entes da federação18. Daí, portanto, o cabimento de recurso extraordinário em face da decisão.” (RODRIGUES, 2017, pg. 276. – grifo ausente no original)
O cabimento dessa alínea, portanto, é orientado àquelas decisões que aleguem a constitucionalidade de certa lei ou ato administrativo atestando que o legislador local atuou dentro de seus limites constitucionalmente impostos. Como disse Araken de Assis: “recusando-se o juízo a quo a aplicar a lei federal, porque invasora da área reservada à lei local (estadual, municipal ou distrital), então tocará ao STF dirimir a causa” (apud GOMES, 2020, pg. 23)