Resumo: O artigo sustenta que a efetividade da justiça climática depende de um arranjo de enforcement multiescalar, combinando o aparato internacional do Acordo de Paris — notadamente o Comitê de Implementação e Conformidade (PAICC, art. 15) e os mecanismos de cooperação do art. 6 — com instrumentos domésticos aptos a converter compromissos em resultados verificáveis. Examina-se a operacionalização do Fundo de Perdas e Danos e a emergência de arranjos financeiros voltados à floresta amazônica, em especial o Tropical Forests Forever Facility (TFFF), no contexto da COP30, em Belém (novembro de 2025). Conclui-se que, sem indicadores robustos, financiamento previsível e consequências por descumprimento, a justiça climática permanece retórica.
Palavras-chave: Justiça climática; Acordo de Paris; PAICC; Artigo 6; Perdas e Danos; Amazônia; COP30.
Sumário: Introdução. 1. Justiça climática no Acordo de Paris. 2. Enforcement internacional: PAICC (art. 15) e cooperação do art. 6. 3. Perdas e Danos: do desenho institucional à entrega. 4. Arranjos financeiros para a floresta amazônica e a COP30. 5. Enforcement doméstico brasileiro e o “chão” da Amazônia. Conclusão.
Introdução
A noção de justiça climática, em termos contemporâneos, remete à distribuição equitativa de ônus e benefícios da ação climática, com prioridade a populações que menos contribuíram para as emissões e mais sofrem seus impactos.
O Acordo de Paris, juridicamente vinculante, constitui a moldura onde essa justiça pode ser buscada: metas nacionais (NDCs), transparência, mecanismos de cooperação e um comitê para facilitar implementação e promover conformidade.
Às vésperas da COP30, a própria UN Climate Change divulgou relatórios mandatados indicando que o acordo “está funcionando”, porém requer aceleração “mais rápida e ampla”, o que reforça a centralidade do cumprimento mensurável.
1. Justiça climática no Acordo de Paris
Embora “justiça climática” não figure como cláusula autônoma do texto, seus princípios irrigam a arquitetura do Acordo de Paris por meio da equidade e das responsabilidades comuns porém diferenciadas, repercutindo nos ciclos de ambição e nos sistemas de transparência.
Em termos operacionais, justiça climática se concretiza quando o sistema internacional oferece meios de monitorar, comparar e corrigir trajetórias de cumprimento, e quando os fluxos financeiros alcançam, com prioridade, os territórios mais vulneráveis.
Isso exige tanto governança internacional eficaz quanto institucionalidade nacional capaz de transformar aportes e regras em proteção de direitos no território amazônico.
2. Enforcement internacional: PAICC (art. 15) e cooperação do art. 6
O PAICC, órgão previsto no art. 15, funciona como mecanismo de facilitação da implementação e de promoção da conformidade, operando por procedimentos e calendários próprios.
Em 2025, o Comitê realizou sucessivas reuniões, avançando no escrutínio de gargalos de reporte e na organização de documentos que alimentam o ciclo de transparência, o que, ainda que de perfil não sancionatório, produz pressão por cumprimento e aprendizado entre pares.
A 15ª reunião (29/9–2/10/2025) consolidou observações sobre prazos e práticas de submissão, registrando, por exemplo, a situação diferenciada de LDCs e SIDS no âmbito do art. 13.
A cooperação do art. 6, por sua vez, constitui a peça de engrenagem que pode alinhar integridade ambiental, aumento de ambição e mobilização financeira.
O art. 6.2 organiza abordagens cooperativas com transferência internacional de resultados de mitigação; o art. 6.4 estrutura um mecanismo com Órgão Supervisor, regras e procedimentos próprios (RMP), formulários padronizados e um registro.
Em 2025, o Órgão Supervisor manteve encontros e atualizou instrumentos procedimentais, enquanto materiais de referência e sínteses pós-COP29 apontam a continuidade da implementação com revisões regulatórias previstas adiante no ciclo.
O desenho é técnico: garantir mensuração, reporte e verificação, prevenir dupla contagem e oferecer salvaguardas sociais, sem as quais “mercados de carbono” corroem, e não promovem, justiça climática.
3. Perdas e Danos: do desenho institucional à entrega
O Fundo para Responder a Perdas e Danos — concebido para apoiar países que já enfrentam perdas irreversíveis e danos decorrentes da mudança do clima — saiu do anúncio e ingressou em fase de operacionalização com um Conselho ativo desde 2024.
Em 2025, reuniões sequenciais culminaram no Segundo Relatório do Conselho à COP/CMA, que consolidou status de recursos, governança e encaminhamentos.
O documento pré-sessão de 23/9/2025 indica, por exemplo, que os compromissos (pledges) somavam cerca de USD 788,8 milhões em 27/6/2025, realçando o desafio de converter promessas em acordos executados e, sobretudo, em desembolsos céleres.
Para a justiça climática, o parâmetro não é apenas a existência de um fundo, mas sua previsibilidade e capilaridade de acesso em situações de emergência e reconstrução.
4. Arranjos financeiros para a floresta amazônica e a COP30
No tabuleiro da COP30, o Brasil vem articulando o Tropical Forests Forever Facility (TFFF), proposto como um endowment de USD 125 bilhões destinado a remunerar países tropicais por resultados de conservação, com meta de USD 25 bilhões públicos e filantrópicos para alavancar USD 100 bilhões privados.
Entre setembro e novembro de 2025, o país anunciou aporte de USD 1 bilhão e passou a defender a viabilidade de mobilizar USD 10 bilhões no primeiro ano, com o Banco Mundial como gestor fiduciário.
O debate internacional, às vésperas de Belém, expôs adesões e ceticismos, inclusive com países sinalizando apoio político sem aporte imediato, o que evidencia a disputa de desenho institucional e de garantias de integridade e repartição de benefícios no território.
O caso do TFFF ilustra, assim, a tensão entre ambição financeira e governança concreta, com impactos diretos para comunidades amazônicas.
5. Enforcement doméstico brasileiro e o “chão” da Amazônia
Nenhum desenho internacional produz justiça climática sem uma camada doméstica forte de execução.
No Brasil, instrumentos como ações civis públicas com tutela estrutural, termos de ajustamento de conduta, controle judicial de políticas públicas e contratos públicos com cláusulas climáticas podem atuar como vetores de cumprimento interno.
O mesmo vale para a due diligence climática em cadeias de valor, a integração de métricas socioambientais em compras e financiamentos e a abertura de dados para monitoramento público em escala subnacional (MRV territorializado).
O ponto de inflexão é transformar fluxos internacionais — Fundo de Perdas e Danos, mecanismos do art. 6 e fundos florestais — em entregas verificáveis em bacias e municípios amazônicos, com salvaguardas de direitos e repartição de benefícios.
Nesse caminho, a governança participativa que inclui povos indígenas e comunidades tradicionais não é ornamento, mas condição de legitimidade e eficácia do enforcement.
Conclusão
A justiça climática só se materializa quando ambição, dinheiro e consequências se amarram em um mesmo circuito.
No plano internacional, PAICC e art. 6 oferecem, respectivamente, o espaço de facilitação/conformidade e o duto de cooperação e financiamento; no plano financeiro, o Fundo de Perdas e Danos e iniciativas como o TFFF podem prover escala e previsibilidade.
No plano doméstico, instrumentos processuais e contratuais permitem converter promessas em resultados no território.
A COP30, em Belém, é, portanto, um teste de estresse dessa engrenagem: sem indicadores robustos, capitalização efetiva e mecanismos de responsabilização por descumprimento, permaneceremos em um regime de anúncios.
Com essas peças operando em sinfonia, há chance de que a justiça climática deixe de ser promessa e se torne experiência concreta na Amazônia e além.
Referências
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Abstract: This article argues that the effectiveness of climate justice depends on a multi-level enforcement architecture that links the Paris Agreement’s international machinery—especially the Implementation and Compliance Committee (PAICC, Art. 15) and Article 6 cooperation mechanisms—to domestic instruments capable of turning commitments into verifiable outcomes. It reviews the operationalization of the Loss and Damage Fund and examines emerging Amazon-focused finance, notably the Tropical Forests Forever Facility (TFFF), in the run-up to COP30 in Belém (November 2025). The conclusion is straightforward: without robust indicators, predictable finance, and consequences for non-compliance, climate justice remains rhetorical.
Keywords: Climate justice; Enforcement; Paris Agreement; PAICC; Article 6; Loss and Damage; Amazon; COP30.