Com a ampla repercussão da “Operação Contenção”, deflagrada pelas Polícias Civil e Militar no Rio de Janeiro, e diante da percepção de que a atuação estatal recebeu forte respaldo social, o Governo Federal apressou-se em encaminhar ao Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 5.582/2025, denominado de “Projeto Antifacção”.
Embora o texto original tenha sido profundamente alterado pelo Substitutivo apresentado pelo Deputado Federal Guilherme Derrite, que o reestruturou sob a rubrica de “Marco Legal de Combate ao Crime Organizado”, o objetivo do presente estudo é examinar criticamente o PL original, especificamente quanto à criação do tipo penal de “Facção Criminosa Privilegiada”. Busca-se demonstrar, por meio dos argumentos expostos, que eventual tentativa de restauração desta figura jurídico-penal representaria grave equívoco legislativo e produziria efeitos contraproducentes, beneficiando, em última análise, o próprio crime organizado.
Cumpre registrar que o PL n. 5.582/2025, na redação inicialmente enviada pelo Poder Executivo, tinha como eixo central a promoção de alterações na Lei 12.850/2013, que disciplina as Organizações Criminosas. Dentre as inovações propostas, incluía-se a criação do crime de Facção Criminosa, mediante acréscimo do §1º-A ao artigo 2º da referida lei. Na fórmula sugerida, instituía-se uma figura qualificada do crime de organização criminosa, rotulada explicitamente como facção criminosa, com pena de 8 a 15 anos de reclusão, aplicável quando o agrupamento estruturado de pessoas tivesse por finalidade o controle de territórios ou de atividades econômicas por meio de violência, coação, ameaça ou outro mecanismo de intimidação.
A leitura atenta da proposta evidencia que o legislador pretendia alcançar diretamente as facções criminosas já consolidadas, em especial aquelas atuantes nas comunidades do Rio de Janeiro, como o Comando Vermelho e o Terceiro Comando Puro. Tais grupos não apenas exploram o tráfico de drogas como fonte de renda, mas também exercem controle armado de atividades econômicas locais, impondo “taxas” a comerciantes situados em áreas dominadas, sempre respaldados pelo uso ou pela ameaça de violência. Esse fenômeno, amplamente documentado, é conhecido como controle territorial armado e configura uma forma madura de governança criminal, na qual a facção assume funções regulatórias típicas do Estado, subjugando a população e estruturando mercados ilícitos e lícitos sob seu domínio.
Nesse cenário, cumpre salientar que a proposta legislativa examinada configurava mais um exemplo do denominado “Direito Penal Simbólico”, fenômeno em que o aparato penal é instrumentalizado como resposta imediata, e muitas vezes meramente retórica, a problemas estruturais de segurança pública. Trata-se de expediente recorrente, por meio do qual legisladores e governantes buscam transmitir à sociedade a impressão de que estão atuando de forma enérgica no combate ao crime organizado, ainda que as medidas propostas careçam de efetividade ou sequer alcancem as causas reais do fenômeno.
Todavia, o enfrentamento qualificado ao crime organizado não pode restringir-se ao endurecimento legislativo ou ao agravamento de penas. A complexidade das facções criminosas exige um conjunto integrado de políticas públicas, especialmente nas áreas de educação, infraestrutura, urbanização e inclusão social, com ênfase nas comunidades historicamente vulneráveis, onde tais grupos exercem domínio territorial e simbólico.
Paralelamente, é indispensável o aprimoramento do regime jurídico das investigações criminais, mediante a criação de instrumentos normativos que ampliem a eficiência das apurações. Isso inclui mecanismos que facilitem a produção de prova, o rastreamento de fluxos financeiros ilícitos e, sobretudo, a identificação, bloqueio e confisco de ativos vinculados às organizações criminosas. Sem a asfixia econômica desses grupos, medida reconhecidamente central para sua desarticulação, qualquer reforma legislativa tende a produzir efeitos limitados, perpetuando a distância entre o discurso político e a efetividade das ações estatais.
Feitas essas breves considerações, reiteramos que o objetivo deste estudo é criticar a proposta legislativa no sentido de criar no §1º-B, acrescentado ao artigo 2º, da Lei 12.850/13, a figura que ora denominamos de “Facção Criminosa Privilegiada”. Vejamos, pois, como foi construído o dispositivo em questão:
§ 1º-B As penas previstas no caput e no § 1º-A poderão ser reduzidas de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), desde que o agente seja primário, tenha bons antecedentes e não se dedique à liderança, à promoção ou ao financiamento da organização criminosa em quaisquer de suas modalidades.
Observe-se que a inovação proposta criava uma causa de diminuição de pena de até 2/3 tanto para integrantes de organização criminosa (art. 2º, caput) quanto para membros de facção criminosa (art. 2º, §1º-A), desde que fossem primários, possuíssem bons antecedentes e não exercessem funções de liderança, promoção ou financiamento das atividades ilícitas.
Não parece haver qualquer fundamento, nem fático, nem jurídico, que sustente a introdução de um privilégio dessa amplitude em um Projeto de Lei que, ao menos em tese, buscava endurecer o tratamento jurídico conferido aos crimes associativos. A proposta revela uma evidente incongruência interna: ao mesmo tempo em que eleva o patamar punitivo das organizações criminosas, simultaneamente o neutraliza ao permitir drástica redução de pena para seus integrantes.
A desproporcionalidade torna-se ainda mais evidente quando analisamos as consequências práticas do dispositivo. A título ilustrativo, um integrante do PCC ou do Comando Vermelho, se condenado nos exatos termos do art. 2º, caput, da Lei 12.850/13, conforme previsto na redação original do PL n. 5.582/2025, poderia receber pena final de 1 ano e 8 meses de reclusão, potencialmente cumprida em regime aberto. Tal resultado evidencia o absurdo da proposta e aponta, inclusive, para sua inconstitucionalidade por deficiência protetiva, na medida em que viola o dever estatal de proteção adequada frente a organizações responsáveis por ameaças sistêmicas à ordem pública.
É preciso lembrar que facções como PCC e CV figuram entre os grupos responsáveis pelas mais graves práticas delitivas existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Seus membros, independentemente de primariedade, de antecedentes ou da posição ocupada na estrutura, concorrem direta ou indiretamente para a prática de homicídios, extorsões, sequestros, controle territorial armado, lavagem de capitais e intimidação coletiva, condutas que, sob diversas perspectivas criminológicas e político-criminais, causam intenso terror social.
Não há, portanto, qualquer racionalidade na previsão de uma causa de diminuição de pena aplicada a delitos associativos dessa natureza. Nas estruturas mafiosas contemporâneas - e as facções brasileiras guardam características do modelo mafioso de atuação (Lima, 2025), não existem funções irrelevantes. Cada integrante desempenha papel indispensável para a manutenção do aparato criminoso, seja no varejo de drogas, na coleta de “taxas”, no armazenamento de armas, na vigilância territorial, na comunicação interna ou em funções administrativas.
Ademais, as circunstâncias de primariedade, bons antecedentes e ausência de liderança ou financiamento já são plenamente consideradas pelo magistrado na fase de dosimetria da pena, nos termos do art. 59. do Código Penal. Logo, a criação de uma causa específica e automática de redução de pena revela-se redundante, além de abrir espaço para distorções. Pretendendo supostamente beneficiar o faccionado recém-ingresso em funções subalternas, a redação proposta acabaria por favorecer também aqueles que, sem ocupar postos visíveis de liderança, desempenham funções estratégicas para o êxito das atividades da facção.
Há ainda outra consequência que não pode ser ignorada: a criação dessa figura privilegiada implicaria novatio legis in mellius, permitindo sua retroatividade para alcançar fatos anteriores à vigência da lei. Assim, centenas ou milhares de condenados por crimes previstos no art. 2º da Lei 12.850/13 poderiam pleitear revisão de suas penas, caso preenchessem os requisitos estabelecidos no então §1º-B. O impacto sobre o sistema de justiça criminal seria profundo e imediato, com potencial de comprometer políticas já consolidadas de enfrentamento ao crime organizado.
Por fim, à luz da experiência jurisprudencial com o tráfico privilegiado (art. 33, §4º, da Lei 11.343/06), é razoável projetar que o reconhecimento de um crime de “organização ou facção criminosa privilegiada” acarretaria a descaracterização do regime de hediondez, afastando, portanto, os rigores da Lei 8.072/90. Tal consequência tornaria inócua a previsão constante do art. 5º do próprio PL n. 5.582/2025, que pretendia rotular como hediondo o crime descrito no art. 2º, §1º-A, da Lei 12.850/13. Em outras palavras: o privilégio legal produziria um efeito colateral destrutivo, incompatível com os objetivos declarados do projeto e frontalmente oposto ao discurso de endurecimento legislativo que o acompanhava.
Referência
LIMA, Murillo Ribeiro de. O Primeiro Comando da Capital (PCC) e a identificação de características do modelo mafioso de atuação. In: IBRAHIN, Francine Imene Dias (org.); LEITÃO JUNIOR, Joaquim (org.). Organizações Criminosas, Leme/SP: Mizuno, p. 211221, fev. 2024.