Há momentos no Direito em que a lei apenas chega para formalizar o que a jurisprudência já vinha, silenciosamente, praticando. A promulgação da Lei nº 15.272/2025, publicada em 26 de novembro de 2025, é um desses marcos simbólicos.
Não inaugura uma nova era, mas ilumina com holofotes aquilo que, nos bastidores, há muito tempo já estruturava a prática jurisdicional brasileira em sede de audiência de custódia.
O legislador, enfim, positivou critérios objetivos para a conversão da prisão em flagrante em preventiva, alterando o art. 310. do CPP e inserindo os novos §§ 5º e 6º. A promessa é simples: reduzir subjetividades, padronizar decisões e evitar arbitrariedades. A realidade, porém, é mais complexa e merece reflexão cuidadosa.
1. Antes da Lei nº 15.272/2025: A Era dos Conceitos Indeterminados
Até a entrada em vigor desta lei, a conversão do flagrante em preventiva dependia, essencialmente, de conceitos jurídicos abertos, notadamente os do art. 312. do CPP:
garantia da ordem pública;
garantia da ordem econômica;
conveniência da instrução criminal;
aplicação da lei penal.
Esses conceitos, por sua própria natureza, sempre entregaram ao julgador uma ampla zona de discricionariedade. A expressão “garantia da ordem pública”, por exemplo, foi ao longo dos anos moldada e preenchida pela jurisprudência — quase nunca pela letra da lei.
A prática judicial se apoiava em dois pilares hermenêuticos:
a) A periculosidade do agente
Avaliada a partir do modus operandi, sobretudo em crimes violentos.
b) A reiteração delitiva
Identificada por meio de inquéritos, processos em andamento, reincidência e histórico criminal.
Esses elementos, ainda que não previstos expressamente no art. 310, eram constantemente utilizados pelo STJ para legitimar prisões preventivas. Exemplos eloquentes incluem:
“A preservação da ordem pública justifica a prisão preventiva quando o agente possuir maus antecedentes, reincidência, ou ações penais em curso, denotando contumácia delitiva.”
(STJ – AgRg no HC 802.593/GO, DJe 26/05/2023)
Ou ainda:
“A gravidade concreta da conduta, evidenciada pelo modus operandi agressivo, revela periculum libertatis apto a manter a custódia preventiva.”
(STJ – AgRg no RHC 198.270/GO, DJe 22/08/2024)
A mensagem era clara: mesmo sem previsão legal expressa, o sistema processual já havia consolidado critérios próprios — e bastante exigentes — para a conversão do flagrante em preventiva.
2. A Lei nº 15.272/2025: A Positivação de um Roteiro Decisório
A nova lei reorganiza a análise judicial, inserindo diretrizes explícitas no art. 310, § 5º, elencando circunstâncias que recomendam a conversão da prisão em flagrante em preventiva:
I. Provas de prática reiterada de infrações penais
II. Violência ou grave ameaça
III. Liberação anterior em audiência de custódia
IV. Crime cometido na pendência de inquérito ou ação penal
V. Fuga ou perigo de fuga
VI. Risco à instrução processual ou à prova
Além disso, o § 6º impõe uma obrigação inédita:
O juiz deverá examinar expressamente essas circunstâncias, sob pena de fundamentação deficiente.
Em outras palavras: a lei criou um roteiro decisório vinculante. O magistrado não pode mais ignorar esses pontos; deve enfrentá-los um por um.
3. O Que Mudou e o Que Não Mudou
A grande pergunta — e ela é sempre sociológica antes de ser dogmática — é: a nova lei realmente transformará o sistema de cautelares penais?
A resposta honesta é: sim e não.
3.1. O que mudou
A análise deixou de ser puramente abstrata para se tornar estruturada.
A defesa agora tem um checklist legal para contestar prisões mal fundamentadas.
A jurisprudência do STJ, antes difusa, agora encontra eco e forma na própria lei.
O Ministério Público encontra novo amparo normativo para sustentar preventivas.
3.2. O que não mudou
A essência dos fundamentos continua sendo a do art. 312.
A subjetividade não desaparece — ela apenas ganha novos contornos.
A cultura judicial que valoriza a prisão preventiva como resposta imediata à criminalidade continua, ao menos por ora, intacta.
A lei positivou aquilo que o STJ já fazia. Não se trata de ruptura, mas de consolidação.
4. Comparativo: Antes x Depois
Aspecto |
Antes da Lei 15.272/2025 |
Depois da Lei 15.272/2025 |
|---|---|---|
Fundamentos |
Art. 312. (conceitos indeterminados) |
Art. 310, § 5º + art. 312 |
Reiteração delitiva |
Construção jurisprudencial |
Critério legal expresso (incisos I, III e IV) |
Periculosidade |
Avaliação subjetiva do modus operandi |
Critério objetivo (inciso II) |
Liberação anterior |
Sem previsão expressa |
Parâmetro legal (inciso III) |
Obrigação de análise |
Não existia roteiro obrigatório |
§ 6º impõe exame obrigatório |
Segurança jurídica |
Menor (decisão dependia de elementos difusos) |
Maior (checklist legal obrigatório) |
5. Reflexão Final: A Obra Continua Sendo do Intérprete
A lei avançou, sim. Mas o processo penal, como todo fenômeno jurídico vivo, não muda apenas pela publicação no diário oficial.
Ele muda quando o intérprete muda.
O que a Lei nº 15.272/2025 realmente faz é transformar em comando legal aquilo que o sistema judicial já praticava há anos, consolidando a prevenção como mecanismo de contenção social.
Cabe agora:
à defesa, usar a objetividade legal para delimitar o espaço da exceção;
ao Ministério Público, fundamentar melhor suas pretensões;
-
ao Judiciário, garantir que o novo roteiro não se torne uma lista automática de justificativas;
à sociedade, compreender que segurança pública não se constrói com encarceramento irrefletido.
Como sempre digo, o Direito Penal revela mais sobre quem o aplica do que sobre quem o viola.