A nova configuração da prisão preventiva no Brasil.

Entre objetividade normativa e a antiga subjetividade jurisprudencial

02/12/2025 às 17:29
Leia nesta página:

Há momentos no Direito em que a lei apenas chega para formalizar o que a jurisprudência já vinha, silenciosamente, praticando. A promulgação da Lei nº 15.272/2025, publicada em 26 de novembro de 2025, é um desses marcos simbólicos.

Não inaugura uma nova era, mas ilumina com holofotes aquilo que, nos bastidores, há muito tempo já estruturava a prática jurisdicional brasileira em sede de audiência de custódia.

O legislador, enfim, positivou critérios objetivos para a conversão da prisão em flagrante em preventiva, alterando o art. 310. do CPP e inserindo os novos §§ 5º e 6º. A promessa é simples: reduzir subjetividades, padronizar decisões e evitar arbitrariedades. A realidade, porém, é mais complexa e merece reflexão cuidadosa.


1. Antes da Lei nº 15.272/2025: A Era dos Conceitos Indeterminados

Até a entrada em vigor desta lei, a conversão do flagrante em preventiva dependia, essencialmente, de conceitos jurídicos abertos, notadamente os do art. 312. do CPP:

  • garantia da ordem pública;

  • garantia da ordem econômica;

  • conveniência da instrução criminal;

  • aplicação da lei penal.

Esses conceitos, por sua própria natureza, sempre entregaram ao julgador uma ampla zona de discricionariedade. A expressão “garantia da ordem pública”, por exemplo, foi ao longo dos anos moldada e preenchida pela jurisprudência — quase nunca pela letra da lei.

A prática judicial se apoiava em dois pilares hermenêuticos:

a) A periculosidade do agente

Avaliada a partir do modus operandi, sobretudo em crimes violentos.

b) A reiteração delitiva

Identificada por meio de inquéritos, processos em andamento, reincidência e histórico criminal.

Esses elementos, ainda que não previstos expressamente no art. 310, eram constantemente utilizados pelo STJ para legitimar prisões preventivas. Exemplos eloquentes incluem:

“A preservação da ordem pública justifica a prisão preventiva quando o agente possuir maus antecedentes, reincidência, ou ações penais em curso, denotando contumácia delitiva.”

(STJ – AgRg no HC 802.593/GO, DJe 26/05/2023)

Ou ainda:

“A gravidade concreta da conduta, evidenciada pelo modus operandi agressivo, revela periculum libertatis apto a manter a custódia preventiva.”

(STJ – AgRg no RHC 198.270/GO, DJe 22/08/2024)

A mensagem era clara: mesmo sem previsão legal expressa, o sistema processual já havia consolidado critérios próprios — e bastante exigentes — para a conversão do flagrante em preventiva.


2. A Lei nº 15.272/2025: A Positivação de um Roteiro Decisório

A nova lei reorganiza a análise judicial, inserindo diretrizes explícitas no art. 310, § 5º, elencando circunstâncias que recomendam a conversão da prisão em flagrante em preventiva:

I. Provas de prática reiterada de infrações penais

II. Violência ou grave ameaça

III. Liberação anterior em audiência de custódia

IV. Crime cometido na pendência de inquérito ou ação penal

V. Fuga ou perigo de fuga

VI. Risco à instrução processual ou à prova

Além disso, o § 6º impõe uma obrigação inédita:

O juiz deverá examinar expressamente essas circunstâncias, sob pena de fundamentação deficiente.

Em outras palavras: a lei criou um roteiro decisório vinculante. O magistrado não pode mais ignorar esses pontos; deve enfrentá-los um por um.


3. O Que Mudou e o Que Não Mudou

A grande pergunta — e ela é sempre sociológica antes de ser dogmática — é: a nova lei realmente transformará o sistema de cautelares penais?

A resposta honesta é: sim e não.

3.1. O que mudou

  • A análise deixou de ser puramente abstrata para se tornar estruturada.

  • A defesa agora tem um checklist legal para contestar prisões mal fundamentadas.

  • A jurisprudência do STJ, antes difusa, agora encontra eco e forma na própria lei.

  • O Ministério Público encontra novo amparo normativo para sustentar preventivas.

3.2. O que não mudou

  • A essência dos fundamentos continua sendo a do art. 312.

  • A subjetividade não desaparece — ela apenas ganha novos contornos.

  • A cultura judicial que valoriza a prisão preventiva como resposta imediata à criminalidade continua, ao menos por ora, intacta.

A lei positivou aquilo que o STJ já fazia. Não se trata de ruptura, mas de consolidação.


4. Comparativo: Antes x Depois

Aspecto

Antes da Lei 15.272/2025

Depois da Lei 15.272/2025

Fundamentos

Art. 312. (conceitos indeterminados)

Art. 310, § 5º + art. 312

Reiteração delitiva

Construção jurisprudencial

Critério legal expresso (incisos I, III e IV)

Periculosidade

Avaliação subjetiva do modus operandi

Critério objetivo (inciso II)

Liberação anterior

Sem previsão expressa

Parâmetro legal (inciso III)

Obrigação de análise

Não existia roteiro obrigatório

§ 6º impõe exame obrigatório

Segurança jurídica

Menor (decisão dependia de elementos difusos)

Maior (checklist legal obrigatório)


5. Reflexão Final: A Obra Continua Sendo do Intérprete

A lei avançou, sim. Mas o processo penal, como todo fenômeno jurídico vivo, não muda apenas pela publicação no diário oficial.

Ele muda quando o intérprete muda.

O que a Lei nº 15.272/2025 realmente faz é transformar em comando legal aquilo que o sistema judicial já praticava há anos, consolidando a prevenção como mecanismo de contenção social.

Cabe agora:

  • à defesa, usar a objetividade legal para delimitar o espaço da exceção;

  • ao Ministério Público, fundamentar melhor suas pretensões;

  • ao Judiciário, garantir que o novo roteiro não se torne uma lista automática de justificativas;

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  • à sociedade, compreender que segurança pública não se constrói com encarceramento irrefletido.

Como sempre digo, o Direito Penal revela mais sobre quem o aplica do que sobre quem o viola.

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Sobre o autor
Gustavo Lopes Pires de Souza

Doutor Honoris Causa pela Emil Brunner World University; Mestre em Direito Desportivo pela Universidade de Lérida (Espanha); MBA em Consultoria e Gestão Empresarial; Especialista em Gestão em Marketing Digital; Ouvidor pela Escola Nacional da Administração Pública; Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo; Colunista; Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior; Professor em instituições de ensino nacionais e internacionais; Palestrante de eventos e conferências no Brasil, América Latina e Europa. - @gustavolpsouza

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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