Capa da publicação Zambelli e perda de mandato por condenação criminal
Capa: Reprodução
Artigo Destaque dos editores

Perda de mandato parlamentar por condenação criminal.

Regras constitucionais, evolução da jurisprudência do STF e deputada Carla Zambelli (art. 55 da CF/88; AP 565; MS 32.326)

12/12/2025 às 18:05
Leia nesta página:

A condenação criminal de parlamentar gera cassação decidida pela Casa ou extinção automática do mandato? O STF distingue entre a regra geral do art. 55, VI, e a exceção objetiva do regime fechado, com efeitos diretos sobre a separação de Poderes.

1. O Regime Constitucional da Perda de Mandato: Cassação versus Extinção

A Constituição Federal de 1988 estabelece um sistema complexo e detalhado para tratar da perda do mandato de deputados e senadores. Ao contrário do que o senso comum pode sugerir, a perda do cargo eletivo não ocorre sempre da mesma maneira; o procedimento varia fundamentalmente dependendo da causa que originou essa perda. Para compreender a jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal, é essencial primeiro distinguir os dois mecanismos básicos previstos no artigo 55 da Constituição: a cassação e a extinção do mandato.

Essa distinção não é meramente semântica, mas define quem tem a competência para efetivar a perda do mandato (se o Plenário da Casa ou a Mesa Diretora) e qual a natureza desse ato (se é uma decisão política constitutiva ou um ato meramente declaratório).

1.1. A Cassação do Mandato: Decisão Política Constitutiva

A cassação refere-se às hipóteses em que a conduta do parlamentar é submetida ao crivo de seus pares. Trata-se de um julgamento político, no qual a Casa Legislativa (Câmara dos Deputados ou Senado Federal) deve deliberar e decidir se o parlamentar deve ou não perder o cargo.

Conforme a regra fixada no artigo 55, § 2º, da Constituição, este procedimento aplica-se especificamente aos casos previstos nos incisos I, II e VI do caput do artigo:

  • Quebra de decoro parlamentar (inciso II);

  • Infração às proibições estabelecidas no artigo 54 (inciso I);

  • Condenação criminal transitada em julgado (inciso VI).

Nessas situações, a perda do mandato não é automática. Ela depende de uma decisão da Casa respectiva. O ato, portanto, tem natureza constitutiva, ou seja, é a votação em si que constitui a perda do mandato.

"Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa."

(Art. 55, § 2º, da CF/88)

É importante ressaltar a evolução trazida pela Emenda Constitucional nº 76, de 2013. Anteriormente, essas votações poderiam ser secretas, o que muitas vezes blindava parlamentares da opinião pública. Com a emenda, instituiu-se o voto aberto, garantindo maior transparência ao processo de cassação.

1.2. A Extinção do Mandato: Ato Meramente Declaratório

Por outro lado, existem situações em que a perda do mandato decorre de um fato objetivo ou de uma determinação legal que não deixa margem para discricionariedade política. Nestes casos, fala-se em extinção do mandato.

Aqui, não cabe ao Plenário decidir se o parlamentar deve ou não sair; o fato já ocorreu, e cabe à administração da Casa apenas oficializar essa realidade. Este procedimento aplica-se aos incisos III, IV e V do artigo 55:

  • Falta injustificada a terça parte das sessões ordinárias (inciso III);

  • Perda ou suspensão dos direitos políticos (inciso IV);

  • Decretação da Justiça Eleitoral (inciso V).

Nestas hipóteses, regidas pelo § 3º do artigo 55, o ato da Mesa Diretora é meramente declaratório. A Mesa não "cria" a perda do mandato, ela apenas reconhece e declara que a perda já aconteceu por força dos fatos ou da lei.

"Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa."

(Art. 55, § 3º, da CF/88)


2. O Ponto de Tensão: Condenação Criminal

O grande debate jurídico reside no tratamento dado à condenação criminal transitada em julgado. Embora o artigo 15, III, da Constituição determine a suspensão dos direitos políticos em caso de condenação criminal (o que levaria, em tese, à aplicação do procedimento de extinção/declaração previsto no inciso IV do art. 55), existe uma regra específica no inciso VI do artigo 55 que trata da condenação criminal e remete ao processo de decisão política (cassação).

Essa aparente antinomia entre a perda automática (via suspensão de direitos políticos) e a necessidade de deliberação da Casa (via condenação criminal) tem sido o cerne das discussões no STF, exigindo uma interpretação sistemática para definir qual regra deve prevalecer em cada caso concreto.1

2.1. A Regra Geral e o Precedente da Ação Penal 565

A definição sobre se a perda do mandato parlamentar decorrente de condenação criminal deve ser automática ou submetida à deliberação da Casa Legislativa não foi pacífica na história recente do Supremo Tribunal Federal (STF). Para compreender o cenário atual, é necessário analisar a mudança de entendimento que ocorreu entre o julgamento da Ação Penal 470 ("Mensalão") e a Ação Penal 565.

2.1.1. A Evolução do Entendimento: Do Mensalão à AP 565

Inicialmente, no julgamento da AP 470, finalizado em dezembro de 2012, o STF sinalizou uma orientação no sentido de que a condenação criminal transitada em julgado acarretaria a perda automática do mandato. O raciocínio baseava-se na ideia de que a condenação criminal gera a suspensão dos direitos políticos (Art. 15, III, da CF/88), e quem não possui direitos políticos não pode exercer mandato eletivo, cabendo à Mesa apenas declarar a perda (Art. 55, IV c/c § 3º).

No entanto, esse entendimento foi superado e refinado pouco tempo depois. No julgamento da Ação Penal 565, ocorrido em 08 de agosto de 2013, o Plenário do STF, por um placar de 6 a 4, estabeleceu a tese que vigora como a regra geral aplicável à maioria dos casos.

Neste julgamento, a Corte entendeu que a Constituição Federal possui normas específicas que não podem ser ignoradas em favor de uma interpretação extensiva.

2.2. A Prevalência da Regra Especial

O fundamento central da decisão na AP 565 é o princípio da especialidade (lex specialis derogat legi generali). O STF interpretou que, embora o artigo 15, inciso III, trate genericamente da suspensão de direitos políticos para todos os cidadãos condenados criminalmente, a Constituição reservou uma regra específica para os parlamentares federais no artigo 55.

O artigo 55, inciso VI, trata expressamente da perda de mandato de Deputado ou Senador "que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado". E, para este inciso específico, o § 2º do mesmo artigo determina que a perda será decidida pela Casa respectiva.

Portanto, o STF concluiu que:

  • O Art. 55, VI e § 2º, funciona como uma norma especial destinada a proteger a autonomia do Poder Legislativo.

  • A perda do mandato não é uma consequência automática da condenação. A decisão final e soberana cabe à esfera política (Câmara ou Senado).

  • A deliberação da Casa não é apenas uma formalidade para "declarar" o que já aconteceu; é uma decisão substantiva que "constitui" a perda do mandato.

2.2.2. O Procedimento de Deliberação

Com base nesse precedente vinculante para a regra geral, quando um parlamentar é condenado criminalmente com trânsito em julgado, o procedimento a ser adotado é o seguinte:

  • A Mesa Diretora não pode declarar a perda de ofício. O caso deve ser submetido ao Plenário da Casa.

  • A cassação exige quórum qualificado, mediante a aprovação da maioria absoluta dos membros (257 votos na Câmara dos Deputados e 41 no Senado Federal).

  • Em consonância com a Emenda Constitucional nº 76/2013, a votação deve ser aberta, permitindo o controle social sobre a decisão dos parlamentares.

Essa interpretação reforça a independência entre os Poderes, permitindo que o Legislativo avalie, politicamente, se a condenação criminal imposta pelo Judiciário é de tal gravidade ou natureza que inviabilize a continuidade da representação popular. Assim, teoricamente, é possível que um parlamentar condenado criminalmente mantenha o seu mandato, caso seus pares decidam não o cassar, desde que isso não configure uma impossibilidade material de exercício do cargo — ponto que introduz a exceção a esta regra, conforme veremos a seguir.


3. A Proposta de "Exceção Objetiva" à Regra Geral

Embora a Ação Penal 565 tenha estabelecido a regra geral da soberania do Plenário da Casa Legislativa, a complexidade dos casos concretos levou o Supremo Tribunal Federal a desenvolver uma importante distinção. Trata-se da tese da "exceção objetiva", delineada principalmente a partir do Mandado de Segurança 32.326 e das Ações Penais 694 e 863.

Esta tese busca resolver um impasse lógico: o que acontece quando a pena imposta ao parlamentar é tão severa que torna fisicamente impossível o exercício do mandato?

3.1. A Impossibilidade Física e Jurídica

A regra geral pressupõe que o parlamentar condenado ainda teria, em tese, capacidade de exercer suas funções enquanto aguarda a deliberação de seus pares. No entanto, o Ministro Luís Roberto Barroso, em decisão monocrática no MS 32.326 (confirmada posteriormente pela Primeira Turma), introduziu um critério de razoabilidade baseado na compatibilidade entre a pena e o mandato.

A "exceção objetiva" aplica-se quando a condenação criminal determina o cumprimento de pena em regime inicial fechado e por tempo superior ao prazo remanescente do mandato parlamentar.

Neste cenário, ocorre uma impossibilidade jurídica e física:

  • O parlamentar encarcerado em regime fechado não pode comparecer ao Congresso Nacional.

  • A Constituição exige o comparecimento às sessões como dever funcional.

"Esta regra geral [da decisão pela Casa], no entanto, não se aplica em caso de condenação em regime inicial fechado, por tempo superior ao prazo remanescente do mandato parlamentar. Em tal situação, a perda do mandato se dá automaticamente, por força da impossibilidade jurídica e física de seu exercício."

(Ministro Luís Roberto Barroso, MS 32.326)

3.2. O Deslocamento do Fundamento Legal (Do Inciso VI para o Inciso III)

O grande "pulo do gato" jurídico desta tese é a mudança do dispositivo constitucional aplicado.

Enquanto a regra geral foca no Inciso VI (perda por condenação criminal -> exige decisão da Casa), a exceção objetiva foca nas consequências fáticas da prisão, atraindo a incidência do Inciso III do artigo 55.

O Inciso III determina a perda do mandato do parlamentar que "deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa".

A lógica é a seguinte:

  • Se o parlamentar está preso em regime fechado, ele inevitavelmente faltará às sessões.

  • Ao faltar a mais de um terço das sessões, ele incide na regra do Inciso III.

  • A regra do Inciso III (faltas) é regida pelo § 3º do Art. 55, que determina que a perda será declarada pela Mesa, e não decidida pelo Plenário.

3.3. Consequência: Perda Automática e Declaratória

Sob a ótica dessa exceção, a perda do mandato deixa de ser uma decisão política discricionária e torna-se um resultado "direto e inexorável" da condenação. A Mesa Diretora da Câmara ou do Senado não tem escolha senão declarar a extinção do mandato, visto que a condição material para o seu exercício (a liberdade de ir e vir para comparecer às sessões) foi suprimida pela sentença judicial.

Portanto, cria-se um sistema híbrido na jurisprudência:

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos
  • Regra Geral (AP 565): Condenação que permite regime aberto ou semiaberto (com possibilidade de trabalho externo) -> A Casa decide se cassa ou não.

  • Exceção Objetiva (MS 32.326 / 1ª Turma): Condenação em regime fechado (incompatível com o mandato) -> A Mesa apenas declara a perda.


4. A Atualidade do Tema e a Interpretação Lógica nas Decisões Recentes

A discussão sobre a perda de mandato não é apenas um debate acadêmico sobre hermenêutica constitucional; ela possui repercussões práticas imediatas na política nacional. Casos recentes submetidos ao Supremo Tribunal Federal, como as situações envolvendo parlamentares condenados a penas privativas de liberdade, reacenderam a tensão entre a regra geral da soberania do Plenário (AP 565) e a tese da exceção objetiva (MS 32.326).

Um exemplo emblemático dessa aplicação prática pode ser observado nas análises jurídicas sobre decisões da Primeira Turma do STF — como ilustrado no cenário envolvendo a Deputada Federal Carla Zambelli. Nestas situações, a defesa dos parlamentares invariavelmente recorre ao precedente do Plenário na AP 565, argumentando que a Constituição garante à Casa Legislativa a última palavra sobre o mandato (Art. 55, § 2º).

Contudo, a tendência observada nas decisões mais recentes das Turmas do STF é a validação da tese da "exceção objetiva" pela via da lógica.

4.1. A Lógica da Incompatibilidade

A aplicação da perda automática em casos de regime fechado não se baseia em um "ativismo judicial" que ignora a Constituição, mas sim em uma interpretação lógica da realidade fática. Se a decisão judicial impõe o encarceramento total, o parlamentar perde a capacidade de cumprir o requisito mais básico de sua função: a presença física.

Ao aplicar o dispositivo da falta às sessões (Art. 55, inciso III), o Judiciário e a Mesa Diretora não estão usurpando a competência do Plenário para julgar politicamente o conduta (inciso VI), mas estão reconhecendo uma situação administrativa de vacância funcional.

"A perda se dá como resultado direto e inexorável da condenação, sendo a decisão da Câmara dos Deputados vinculada e declaratória." (Trecho da decisão no MS 32.326)

4.2. O Estado Atual da Jurisprudência: Insegurança ou Evolução?

É fundamental notar que, até o presente momento, o Plenário do STF ainda não revisitou o tema para consolidar, em sede de Repercussão Geral ou nova Ação Penal julgada pelo colegiado completo, a tese da "exceção objetiva" como superação formal da AP 565.

O que existe é:

  • Precedente do Plenário (AP 565): Estabelece que a regra é a decisão da Casa.

  • Precedentes das Turmas (1ª Turma e Decisões Monocráticas): Estabelecem que, no regime fechado ou quando a prisão excede o tempo de mandato, a perda é automática/declaratória.

Essa dualidade exige cautela. Embora a proposta do Ministro Barroso (exceção objetiva) seja dotada de alta razoabilidade e pareça ser o caminho natural da Corte, a decisão da AP 565 ainda é tecnicamente válida.


5. Conclusão

O sistema constitucional de perda de mandato parlamentar no Brasil vive um momento de refinamento interpretativo. A dicotomia entre Cassação (decisão constitutiva política) e Extinção (ato declaratório administrativo) permanece como a base estrutural do Artigo 55.

No entanto, para o operador do direito e para o observador da cena política, a lição central é que não existe uma resposta única para "condenação criminal gera perda de mandato?". A resposta correta depende da natureza da pena:

  • Se a pena permite o exercício do mandato (regime aberto/semiaberto): Prevalece a soberania política da Casa (Art. 55, § 2º).

  • Se a pena inviabiliza o mandato (regime fechado): Tende a prevalecer a realidade fática e a declaração de extinção pela Mesa (Art. 55, § 3º, c/c inciso III).

Acompanhar se o Plenário do STF irá ratificar formalmente essa distinção é o próximo capítulo aguardado nessa evolução jurisprudencial.


Fonte

1 Pedro Lenza, https://www.instagram.com/p/DSJWWaOkUHR/ e https://www.instagram.com/p/DSIftKCEcDw/

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Diego Vieira Dias

Funcionário Público, ex-advogado e eterno estudante...

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Diego Vieira. Perda de mandato parlamentar por condenação criminal.: Regras constitucionais, evolução da jurisprudência do STF e deputada Carla Zambelli (art. 55 da CF/88; AP 565; MS 32.326). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8199, 12 dez. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/116485. Acesso em: 13 dez. 2025.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos