2. OS CONCEITOS DE SOCIEDADE CIVIL E HEGEMONIA EM GRAMSCI
Gramsci nasceu em 1891, na Sardenha, uma das regiões mais pobres da Itália. Desde cedo militou em partidos de esquerda e foi eleito deputado pelo PCI em 1924. Foi preso em 1926 e libertado em 1937, poucos dias antes de sua morte. É vastíssima sua contribuição intelectual para a ciência política e, especificamente, na evolução do Marxismo.
Neste trabalho, interessa-nos em Gramsci apenas uma breve introdução aos seus conceitos de sociedade civil e hegemonia, relacionando-os aos conceitos de "fatores reais do poder" de Lassalle e a realidade social-histórica-constitucional de Hesse.
Inicialmente, releva salientar a importância do pensamento de Gramsci para os conceitos de Estado e Sociedade Civil para além do marxismo dogmatizado. Por exemplo, estudando o pensamento político de Gramsci, Carlos Nelson Coutinho (1999, p. 125) observou, com muita propriedade, que Marx não teve a oportunidade de vivenciar uma sociedade mais complexa como aquela vivida por Gramsci e não pôde, por conseguinte, captar plenamente as relações de poder em uma sociedade capitalista desenvolvida, principalmente aquilo que Gramsci chamaria de "sociedade civil" e "aparelhos privados de hegemonia."
Sobre o conceito de Estado, em carta transcrita por Carlos Nelson Coutinho na obra citada, Gramsci observa que o Estado, habitualmente, é entendido como o aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção, e não como equilíbrio entre sociedade política e sociedade civil, porém, mais que isso, o conceito de Estado tem sentido mais amplo e comporta duas esferas principais: a sociedade política e a sociedade civil. A primeira acepção, que Gramsci também chama de Estado em "sentido estrito" é formada pelo conjunto dos mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência. A segunda acepção, que nos interessa nesse estudo, inicialmente, a sociedade civil, na interpretação de Carlos Nelson Coutinho, (1999, p. 127) seria formada precisamente pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as Igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa) etc.
É no espaço da sociedade civil, portanto, segundo Gramsci, que as classes buscam exercer sua hegemonia, ou seja, buscam ganhar aliados para suas posições mediante a direção política e o consenso por via dos "aparelhos privados de hegemonia."
Nas palavras do próprio Gramsci:
Podemos fixar dois grandes planos superestruturais: o que podemos chamar sociedade civil, isto é, o conjunto dos organismos vulgarmente chamados privados, e o da sociedade política do Estado, que correspondem, respectivamente, à função de hegemonia que o grupo dominante exerce sobre toda a sociedade e à de domínio direto ou de comando que se exprime no Estado e no governo jurídico. (Q. III, 1518-1519) (apud STACONNE, 1991, p. 77)
Temos até aqui, portanto, um conceito de estado que envolve duas esferas: sociedade política e sociedade civil, sendo esta última o lugar de realização da hegemonia, através dos aparelhos privados de hegemonia. Nesta compreensão, é no âmbito da sociedade civil que as classes buscam exercer sua hegemonia e ganhar aliados para suas posições mediante a direção política e o consenso. De outro lado, é no âmbito da sociedade política que as classes exercem sua dominação através da força jurídica e da coerção.
Nesta compreensão Gramsciana, por fim, onde colocar os "fatores reais de poder", enquanto partes de uma constituição? Estariam presentes no Estado em sentido estrito, definido por Gramsci como a sociedade política, ou no espaço da sociedade civil, onde as classes buscam a hegemonia? Certo, de logo, que a forma de governo (monarquia) e o poder repressivo (exército), sem dúvidas, seriam componentes do Estado em sentido estrito, ou seja, da sociedade política. De outro lado, onde se poderiam localizar as relações e organizações de banqueiros, grandes proprietários e operários, senão no espaço da sociedade civil? Por fim, naquela sociedade prussiana de Lassalle, no âmbito da sociedade civil, quem exercia a hegemonia dos aparelhos privados? Certo que não eram os operários, conforme observado por Lassalle nas entrelinhas de sua obra.
Nesta lógica, portanto, será que podemos admitir que a Constituição de um país será o reflexo da hegemonia exercida por determinada classe na sociedade civil, ou mesmo o resultado da luta pela hegemonia, ou seja, as conquistas de cada grupo social seriam exatamente os limites de sua hegemonia, como se fora um consenso inevitável?
Poderia, então, Lassalle nos dizer, agora sob a ótica Gramsciana, que uma Constituição de fato será a Constituição real quando corresponder ao conflito e ao consenso presentes em sua sociedade civil, dialeticamente, em dinamismo constante. Foram disso, conforme escreveu Lassalle, a Constituição não passará de um "pedaço de papel".
Dessa forma entendendo, podemos então afirmar, como Hesse (1991, p. 24), que "a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta do seu tempo."
O que seria, por conseguinte, "a realidade histórica" senão as relações econômicas, sociais, políticas e culturais, presentes das esferas política e civil de uma sociedade, senão o conflito e o consenso estabelecido pela hegemonia de uma classe?
No caso brasileiro, por exemplo, diante dessa compreensão, a Constituição Federal de 1988 seria o reflexo exatamente do conflito e do consenso de uma determinada época: final de um regime militar, reaparecimento do movimento popular e sindical, pluripartidarismo, novos meios de comunicação de massa sem censura, ou seja, sociedade civil atuante e em conflito pela hegemonia.
3. CONCLUSÃO
Vimos, resumidamente, que Lassalle, palestrando a operários da Berlim prussiana de 1862, entende a Constituição real de um país como sendo aquela resultante dos fatores reais do poder que regem aquele país. Esses seus fatores reais do poder, como vimos, podem ser vistos alguns, na compreensão de Gramsci, como componentes da sociedade política e outros como componentes da sociedade civil, local de luta pela hegemonia. Sendo assim, a Constituição real de um país não poderia ser limitada e instrumentalizada por fatores independentes do conflito e do consenso alcançado na sociedade civil.
Para Hesse, de outro lado, bem mais perto de Gramsci, a Constituição é condicionada pela realidade histórica e terá pretensão de eficácia somente se levar em conta essa realidade. Sua possibilidade e limites normativos, por fim, resultam da correlação entre "ser" e "dever-ser."
A Constituição, portanto, é mais do que simplesmente os fatores reais do poder de Lassalle e pode sim, sem dúvidas, dependendo da força política dos grupos sociais menos favorecidos – mesmo que ainda não hegemônicos, planejar o "dever-ser" programaticamente e, como defende Hesse, ter vontade e caráter normativo.
Não encerramos esta discussão, mas podemos de já concluir que Lassalle, Hesse e Gramsci não são incomunicáveis.
REFERÊNCIAS:
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em http://jus.com.br/artigos/7547. Acesso em 16.06.2008.
BOBBIO, Norberto. Ensaios sobre Gramsci e o conceito de sociedade civil. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
GIROUD, Françoise. Jenny Marx. Rio de Janeiro: Record, 1996.
GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1991.
KONDER, Leandro. Marx vida e obra. 7 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
LASSALLE, Ferdinand. Que é uma Constituição? Porto Alegre: Editorial Villa Martha, 1980.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. Vol. 2. São Paulo: Alfa-Omega, s/d.
STACCONE, Giuseppe. Gramsci, 100 anos revolução e política. Petrópolis: Vozes, 1991.
Notas
- Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em http://jus.com.br/artigos/7547. Acesso em 16.06.2008.
- A Universidade de Freiburg foi fundada em 1457 pelos Habsburgos. Dentre outros, estudaram ou lecionaram em Freiburg: Hannah Arendt, Walter Benjamin, Edmund Husserl, Martin Heidegger, Karl Jaspers, Niklas Luhmann, Karl Mannheim, Herbert Marcuse e Max Weber.