6. Conclusões
No Brasil e, a cada ano, ocorrem mais de 35 mil mortes no trânsito. Esta criminosa imprudência é censurável e justifica o controle administrativo e penal do poder estatal. Mas, mas não é menos lamentável a ausência de uma Política de Trânsito adequada, estável, bem definida e cumprida com o rigor que o problema exige.
A Lei 11.705/2008 alterou, de forma apenas pontual, dispositivos do CTB que tratam da infração de conduzir veículo automotor "sob a influência do álcool".
O caput do art. 165, do CTB foi objeto de modificação redacional para adequá-lo à linguagem médicojurídica referente às substâncias naturais ou químicas capazes de causar dependência. Agora, a norma refere-se à "qualquer outra substância psicoativa que determine dependência".
O conjunto de penalidades administrativas cominadas no preceito secundário do art. 165, do CTB, representa uma resposta punitiva bastante severa. Principalmente, se considerarmos a natureza de Direito Administrativo e a aplicação de forma cumulativa destas sanções.
O art. 276 foi modificado para adotar uma política de "alcoolemia zero", em termos de uso de bebida alcoólica por condutor de veículo automotor. Esta foi a alteração mais significativa. A lei não exige que o motorista seja portador de embriaguez completa ou plena e a configuração desta infração de trânsito ocorre quando o condutor apresentar qualquer taxa de álcool no sangue. Basta que o mesmo tenha ingerido e se encontre sob influência de qualquer tipo de bebida alcoólica.
A intenção ou a mens legis é a de punir administrativamente o condutor que apresente qualquer concentração de alcoolemia (tolerância zero), mas a redação do caput do art. 165, não sinaliza corretamente neste sentido semântico e nem jurídico.
Significativa foi, também, a alteração introduzida no texto do art. 277, que prescreve a competência do agente de trânsito para aplicar as penalidades previstas no art. 165, do CTB.
A lei prevê duas situações para o agente de trânsito tomar a iniciativa de submeter o motorista a um dos exames ou testes capazes de indicar a taxa de álcool no sangue: a primeira refere-se ao condutor envolvido em acidente de trânsito e a segunda à do motorista abordado numa ação fiscalizatória de trânsito.
A lei dá a entender que o exame de alcoolemia é obrigatório nas duas hipóteses. Mas, no caso blitze de trânsito, o procedimento só deverá ser adotado quando houver evidência ou justificada suspeita de ter o motorista ingerido bebida alcoólica ou, como diz a lei, de estar conduzindo "sob influência do álcool".
Quando houver justificada suspeita de que o condutor tenha ingerido bebida alcoólica, a primeira iniciativa do agente de trânsito é a de submetê-lo ao teste de alcoolemia pelo bafômetro, aparelho de maior funcionalidade e menos invasivo.
Diante da recusa do condutor em se submeter a qualquer outro exame ou teste previsto no caput do artigo 277, do CTB, a constatação pelo agente de trânsito dos sinais de embriaguez ou, ao menos, de ingestão de bebida alcoólica, é procedimento administrativo juridicamente satisfatório, válido e legítimo , por duas razões relevantes: o indício da presença de álcool, decorrente da recusa do motorista em se submeter ao exame pericial capaz de comprovar o seu estado de sobriedade alcoólica e o relato do agente de trânsito acerca dos sinais objetivos ou evidentes do estado de embriaguez.
Em termos de sua legitimidade externa, este procedimento administrativo tem seu fundamento políticojurídico na segurança coletiva do trânsito que é direito de todo o cidadão e dever dos órgãos públicos de controle do trânsito.
Finalmente, do ponto de vista de uma adequada e razoável Política Jurídica de controle do trânsito, ficou evidenciado que o Estado somente deveria intervir para proibir e sancionar o motorista que apresente determinado índice de concentração alcoólica no sangue e que poderia ser fixado em nível igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue (ou 0,3 mg/l de álcool no ar expelido dos pulmões).
7. Bibliografia
BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. 1, t. 2.
DOTTI, Curso de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
GOMES, Antônio Magalhães. O Direito à Prova no Processo Penal. Tese de Livre Docência. Faculdade Direito da USP, 1995.
JESUS, Damásio. Embriaguez ao Volante: Notas à Lei Nº 11.705/08. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal. Ano IV, nº 24, julho/2008.
LEAL, João José. Direito Penal Geral. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2004.
MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1965, v. 2.
MIRABETE; Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2004, p. 221
RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
Notas
- Estes são números referentes ao ano de 2005 e constam da pesquisa sobre mortalidade por acidentes de transporte terrestre, divulgada em 25.04.2007, na Primeira Semana Mundial das Nações Unidas de Segurança no Trânsito promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) ,http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/04/25/materia.2007-04-25.4628403790/view. Acesso em 21.07.2008.
- Quanto ao número dos mortos e feridos do violento trânsito brasileiro, é preciso reconhecer que as estatísticas são divergentes. Nos meios de comunicação social, é comum a informação de que o número de morto é superior a 35 mil. Veja-se, por exemplo, o editorial do jornal a Folha de S. Paulo: "A embriaguez ao volante responde por parte significativa dos 35 mil óbitos anuais provocados por acidentes de trânsito no país". Entretanto, o Anuário Estatístico do Denatran – RENAEST informa os seguintes números referentes ao ano de 2006: 19.752 vítimas fatais e 404.385 vítimas não fatais. De qualquer modo, o número e elevado e assustador e explica o interesse e a freqüência com que a mídia trata deste grave problema.
- Não é apenas a tragédia humana dos mortos e feridos nas estradas brasileiras. Os prejuízos econômicos são também consideráveis. Segundo dados divulgados na acima referida Semana Mundial das Nações Unidas de Segurança no Trânsito promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), realizada no período de 23 a 27 de abril de 2007, "os acidentes de trânsito causam prejuízos da ordem de R$ 24,6 bilhões" anuais à economia de nosso país.
- Vejam-se apenas algumas manchetes das duas primeiras semanas que se seguiram à publicação da Lei 11.705/08, de jornais de duas cidades e Estados diferentes. Tais manchetes noticiosas nos dão uma idéia da importância ou da forma sensacionalista com que a mídia tratou da nova lei, na parte que disciplina o uso de bebida alcoólica por motoristas ao volante: Jornal Folha de S. Paulo: "PM vai colocar ‘espiões’ em bares, diz major" (Cotidiano, 26.06.2008, C1); "Lei Seca", Editorial da edição de 05.07.2008, A2; "Lei seca já reduz acidentes, diz polícia (Cotidiano, 05.07.2008, C1); "86% dos moradores de SP e do Rio aprovam a lei seca" (06.07.2008, Cotidiano C3). Ver, ainda, nesse mesmo jornal o artigo do filósofo José Arthur Giannotti: A lei seca e a secura do Estado", Caderno Mais, p. 3). O autor desviou o foco de suas preocupações filosóficas para, também, tecer interessantes comentários a respeito desta polêmica lei. E é severo em sua critíca ao critério da tolerância zero adotado pela nova lei:: "No Brasil, esse exagero simplesmente repete o espetáculo de violência de um Estado fraco, que encena uma força desproporcional a seus recursos simplesmente para atemorizar. Isso equivale a legislar para que a lei não pegue, obviamente depois de saciar a boa consciência dos bem pensantes". O jornal A Notícia, de Joinville, SC: não deixa de ser menos apelativo: "Zero de álcool na ponta da língua e ao volante" (21.006.2006, p. 12, e "Nove presos em SC por beber antes de dirigir" (07.07.2008, p. 16. Cabe ressaltar que, passados dois meses de sua publicação, a lei em estudo continuou repercutindo nas manchetes dos meios de comunicação social, principalmente, por causa de sua opção por uma política de "tolerância zero", em relação ao motorista que tenha feito uso de bebida alcoólica. A manchete estampada na primeira página do jornal Folha de S. Paulo, de sua edição de 26.07.2008, "Lei Seca poupa a hospitais de SP R$ 4,5 mi em 1 mês", nos dá uma idéia do interesse e importância com que a mídia ainda tratava o assunto um mês após a edição da Lei 11.705/08.
- Para um estudo desta infração de trânsito, ainda na vigência do texto original do art. 165, do CTB, ver: RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 480-3.
- Por sua vez, o art. 66, da Lei Antidrogas, é taxativo ao definir como "drogas as substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maior de 1998."
- O estado de embriaguez pelo álcool ou substâncias entorpecentes ou psicotrópicas em geral pode ser considerado como um processo agudo de intoxicação, resultante da ação do álcool sobre o sistema nervoso, capaz de causar perturbação mental e de comprometer a capcidade normal de entender e de querer de seu portador. LEAL, João José. Direito Penal Geral. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2004, p. 369. Cabe ressaltar que Aníbal Bruno entende que a embriaguez, como um estado de intoxicação grave, "deveria incluir-se na categoria de doença mental, do nosso Código". Para o autor, esse estado de intoxicação é "capaz de levar as funções da mente a perturbações profundas, até a letargia, alterando desde logo o psiquismo superior e privando o sujeito da capacidade normal de entendimento e vontade". Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. 1, t. 2, p. 147. Sobre o conceito médicolegal de embriaguez, ver ainda: MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1965, v. 2, p. 181; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 203; MIRABETE; Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2004, p. 221; DOTTI, Curso de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 423.
- Cabe lembrar que o texto original do art. 165, do CTB, exigia a constatação de álcool, "em nível superior a seis decigramas por litro de sangue". Tal exigência foi derrogada pela Lei 11.275/06, que deu nova redação ao artigo em referência. No entanto, o art. 276 havia mantido este patamar mínimo de seis decigramas de álcool, até ser derrogado pela Lei 11.705/08.
- Com a alteração inserida pela Lei 11.705/08, o texto do art. 276 tem agora a seguinte redação: "Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165, deste Código" (Código de Trânsito Brasileiro).
- JESUS, Damásio. Embriaguez ao Volante: Notas à Lei Nº 11.705/08. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal. Ano IV, nº 24, julho/2008, p. 80.
- Idem, p. 81. No artigo em referência, Damásio de Jesus entende que a expressão dirigir veículo automotor, em via pública, "sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa"significa, necessariamente, que o condutor esteja "sofrendo seus efeitos, de forma anormal, fazendo ziguezages, ‘costurando o trânsito’, realizando ultrapassagem proibida, ‘colado’ ao veículo da frente, passando com sinal vermelho, na contramão, com excesso de velocidade, etc.". Ibidem. Concordamos que a expressão "sob a influência do álcool" significa que o condutor deve apresentar taxa de alcoolemia suficiente para comprometer sua capacidade normal de dirigir um veículo automotor, mas não necessariamente que esteja conduzindo em ziguezagues, fazendo ultrapassagens indevidas ou tenha passado com o sinal vermelho, pois estas constituem outras infrações de trânsito, previstas no CTB, de forma autônoma.
- Este foi o critério adotado pela Lei Antidrogas ao sancionar o usuário de drogas por conduta semelhante: "Conduzir embarcação ou aeronave após o consumo de drogas, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem"... É verdade que se trata de dispositivo de natureza criminal, mas que se encontra assentado na mesma política de "tolerância zero".
- HC 2008.041165-4. Em outra liminar, o desembargador substituto Paulo Henrique Moritz Martins da Silva concedeu a ordem para que a impetrante não fosse tolhida da liberdade de ir, de vir, de ficar, de permanecer, por recusar-se ao teste de alcoolemia em diligência policial. E proibiu a aplicação das penalidades previstas na lei, pela simples recusa ao teste do bafômetro. O magistrado, contudo, tem a mesma posição do desembargador Medeiros: "observada a ressalva da direção anormal e perigosa, que coloque em risco a segurança viária" (Habeas Corpus 2008.040712-9).
- HC 2008043055-1. No mesmo sentido: HCs nº 2008.040688-0 e 2008.041150-6).
- É o que dispõe a nova redação do parágrafo único do art. 276, do CTB: "Órgão do Poder Executivo federal disciplinará as margens de tolerância para casos específicos".
- Até a publicação deste artigo, o CONTRAN ainda não havia aprovado Resolução para "disciplinar as margens de tolerância". Notícias divulgadas na imprensa indicam que há uma tendência para ser fixada a taxa de tolerância de 0,2 decigramas de álcool por litro de sangue. Assim, a infração só estaria configurada no caso de motorista que apresente taxa igual ou superior de 0,3 decigramas de álcool por litro de sangue.
- Isto significa que s expressão "Lei Seca" ou "Tolerância Zero" não passa de mais uma falácia.
- Para um estudo deste dispositivo do CTB, em sua versão original, ver: RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro, ob. cit., p. 698-9.
- O texto original do caput do art. 277, do CTB, foi modificado pela Lei 11.275/06.
- Neste sentido: HC 2008.041165-4. No despacho de concessão da liminar requerida, o relator admite, no entanto, a validade de aplicação "das medidas administrativas – independente da negativa do motorista em se submeter ao bafômetro – quando a pessoa demonstrar estar claramente sob a influência de álcool".
- O privilégio contra a auto-incriminação – que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito – traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário (STF, HC Nº 79.812-SP, rel. Celso de Mello, DJU, 16.12.2001, p. 38).
- Ver sobre este princípio constitucional: GOMES, Antônio Magalhães. O Direito à Prova no Processo Penal. Tese de Livre Docência. Faculdade Direito da USP, 1995, p. 113 e segs.