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Artigo 745-A do CPC: a natureza jurídica do parcelamento da dívida e outras polêmicas

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10/09/2008 às 00:00
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5. A HIPOSSUFICIÊNCIA DO DEVEDOR COMO REQUISITO DE ADMISSIBILIDADE DO PARCELAMENTO E OS LIMITES DA DISCRICIONARIDADE DO MAGISTRADO

Alguns juristas entendem que a hipossuficiência do exeqüente é requisito essencial à concessão do benefício do parcelamento [22].

Assim, caso o executado disponha de patrimônio suficiente para adimplir a obrigação em uma única parcela, não deve o juiz permitir que o pagamento se faça de outro modo, a não ser que o próprio credor manifeste sua concordância. Isso porque o pagamento em prestações, em tais circunstâncias, seria injustificada procrastinação do adimplemento.

Entretanto, há que se ter em conta que o artigo 745-A do Código de Processo Civil regula um direito subjetivo heterogêneo potestativo, sem condicionar, expressamente, seu exercício à má situação financeira do devedor.

Ora, só a lei pode impor restrições ao exercício de direitos subjetivos individuais. O juiz não pode inovar para submeter a concessão do parcelamento ao preenchimento de requisito inexistente no texto legal, sob pena de incorrer em claro desrespeito ao princípio da legalidade, consagrado no artigo 5º, inciso II da Carta Magna.

Poder-se-ia até aceitar o argumento de que o legislador andou mal ao omitir a previsão do aludido critério. Contudo, tal vício somente poderia ser sanado pelo próprio Poder Legislativo, por ser a limitação de direitos subjetivos matéria reservada à lei. A interferência do Poder Judiciário vilipendiaria, além do já referido princípio da legalidade, também o princípio da separação dos poderes (CF, art. 2º).

Aliás, é por essa razão que se aceita que o direito do credor ao pagamento "à vista" seja modificado pelo parcelamento do artigo 745-A. O sujeito ativo da relação obrigacional não poderia ser compelido a suportar tal imposição se ela não tivesse suporte legal.

Vale ressaltar que não se ignora o poder atribuído ao magistrado para adequar a execução às peculiaridades do direito material tutelado. A doutrina mais atual e as recentes reformas da legislação processual tendem a consagrar a mitigação do princípio da tipicidade da execução, para reconhecer certa discricionariedade ao julgador na direção dos atos executórios.

Contudo, a discricionariedade do magistrado precisa ser exercida com respaldo nos princípios que regem a execução.

É cediço que referidos princípio são normalmente sopesados em face do caso concreto, devendo o juiz sempre buscar a proporcionalidade nas medidas adotadas. Entretanto, no que se refere ao parcelamento requerido nos moldes da lei, por ser tema que envolve somente questões de direito, pode-se afirmar que o seu indeferimento sempre trará prejuízo desproporcional ao devedor, independentemente do caso concreto.

Repise-se que, indeferido o beneplácito legal, o executado será duplamente penalizado pela tentativa de parcelar sua dívida, sendo impedido de discutir o valor exeqüendo e ainda perdendo o montante previamente depositado. A imposição de punição tão severa é flagrantemente desproporcional, pois não há ofensa suficientemente grave ao complexo de direitos do credor que a justifique. Na realidade, pode-se até mesmo identificar benefícios para o sujeito ativo da relação obrigacional, como já explanado.

Portanto, não há razão suficiente para que o magistrado, no exercício do seu poder de direção da execução, indefira o pedido formulado dentro dos limites fornecidos pela legislação processual.

Nem as peculiaridades do caso concreto, como a boa condição financeira do devedor, podem justificar uma intervenção do juiz tendente a promover o desequilíbrio na relação entre as partes, já igualada juridicamente.

O magistrado, portanto, não tem poder para exigir a hipossuficiência do devedor.

Curiosamente, a Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, assumindo entendimento absolutamente oposto, já proferiu acórdão condicionando a concessão do benefício à comprovação de que o devedor pode arcar com o parcelamento. Exigiu-se não a hipossuficiência, mas a suficiência daquele que requer o benefício, como se constata na ementa do julgado, in verbis:

AGRAVO INTERNO. APLICABILIDADE DO ART. 745-A DO CPC. O magistrado, independente da não-aceitação do credor, pode conceder o parcelamento da dívida. Contudo, o devedor deve comprovar que tem condições de arcar com o parcelamento proposto. Negaram provimento. Unânime. (Agravo Interno nº. 70021142021, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Relator: Des. Luis Felipe Brasil Santos, Julgado em 12/09/2007).

Em que pese a autoridade dos doutos julgadores que assim se manifestaram, tal juízo não resiste a críticas.

Primeiro, por também condicionar a concessão do benefício a requisito não estabelecido pela lei, ferindo de morte o princípio da legalidade.

Segundo, por ignorar o escopo do dispositivo em questão, que é estimular o adimplemento voluntário do devedor, especialmente daquele que atravessa crise financeira. A interpretação adotada no acórdão talha a principal aplicação da lei.

Terceiro, por impor condição evidentemente desnecessária.

Os membros do respeitável colegiado parecem ter se baseado no poder geral de cautela para impedir um parcelamento que, em seu entendimento, não poderia ser cumprido. O próprio artigo 745-A, porém, já traz a medida que o legislador julgou suficiente para desestimular a aventura daqueles que não pretendem ou não podem honrar seu compromisso, qual seja a multa de 10% (dez por cento) sobre o valor das parcelas não pagas. Só ao devedor, ciente da possibilidade de ser penalizado, cabe a decisão quanto à conveniência de correr tal risco.

Ademais, se o executado não pode arcar com o parcelamento proposto, é porque também não dispõe de bens que possam ser objeto de futura constrição. De que adiantaria dar continuidade aos atos executórios, se estes também seriam inócuos em virtude da falta de bens penhoráveis, por exemplo?

Se o prejuízo é aparentemente inevitável, melhor conferir ao devedor uma oportunidade para, esforçando-se, contornar a situação e cumprir sua promessa.

5.1. A LITERALIDADE DA LEI CONFERE PODER DISCRICIONÁRIO AO JUIZ?

Até aqui, a discussão quanto ao poder dos julgadores fundou-se em princípios e na análise do escopo da norma.

Porém, alguns doutrinadores afirmam encontrar na letra da lei a permissão para que o magistrado decida com liberdade em face do pedido do devedor.

Ricardo de Barros Leonel defende a discricionariedade do magistrado com fulcro no texto do parágrafo 1º do artigo 745-A, o qual prevê que a proposta de parcelamento poderá ser deferida ou não pelo juiz [23].

Permissa venia, esta conclusão funda-se em interpretação equivocada. O dispositivo em tela apenas faz alusão à necessária análise dos requisitos do parcelamento, a ser feita pelo julgador. Existentes todos eles, o magistrado não escapa à obrigação de deferir o benefício ao devedor. Faltando algum, como o depósito de pelo menos 30% (trinta por cento) do valor da dívida, aí sim, o pedido deverá ser indeferido.

Seguindo linha de raciocínio semelhante, Costa Machado foca-se na expressão proposta, empregado no parágrafo 2º do artigo 745-A, para defender a mesma posição [24].

Mais uma vez, esta é interpretação que não merece prosperar. A forma verbal empregada visa apenas indicar que o parcelamento deve ser requerido (proposto) pelo executado e deferido pelo juiz, isto é, não pode ser feito ex officio e nem imposto extrajudicialmente pelo devedor.

A exegese aqui defendida não é apenas mais condizente com os princípios processuais que devem nortear a aplicação da norma, como também é a que melhor prestigia o legislador, conferindo efetividade ao dispositivo legal.

Isso porque, se aplicada de outra forma, a regra fatalmente cairia em desuso: quem optaria pelo parcelamento, abdicando da oposição de embargos, sabendo que seu pedido poderia ser discricionariamente indeferido pelo juiz? É um risco que poucos assumiriam.


6. A CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 745-A DO CPC

O advogado Eduardo Yoshikawa, em estudo dedicado ao tema [25], faz crítica veemente ao artigo 745-A do CPC.

Partindo da premissa de que o parcelamento é um favor concedido pelo juiz, o jurista afirma ser inconstitucional o dispositivo em análise, já que este permitiria ao magistrado dispor do direito da parte, concedendo o parcelamento da dívida contra a vontade do credor.

Nessa linha de pensamento, haveria ofensa à garantia do devido processo legal (C F, art. 5º, LIV e LV), pois o exeqüente estaria sendo privado pelo juiz, no bojo de um processo, da sua liberdade de dispor do seu direito material.

Impecável a conclusão de Yoshikawa quanto à impossibilidade de um julgador, ao seu talante, interferir no direito das partes, principalmente no âmbito de um procedimento que busca justamente efetivar direito já reconhecido. A falha, data venia, está na premissa utilizada, pois o parcelamento é um direito do devedor estabelecido pela lei, e não um favor judicial.

O artigo 745-A não padece do vício da inconstitucionalidade porque a interferência no direito subjetivo do credor é imposta pelo próprio texto legal, e não pelo magistrado. Este último realiza mero juízo de admissibilidade, reconhecendo ou não a obediência aos requisitos legais. Trata-se de concessão ope legis, e não ope iudicis.

Frise-se que não há impedimento para que a lei imponha limites aos direitos do credor, sobretudo porque tal interferência está restrita a uma situação específica, qual seja a execução de título executivo extrajudicial não embargada. As peculiaridades desta situação justificam a limitação, pois, em seu contexto, a lei prestigia a celeridade e a efetividade da execução, assim como o respeito às condições do devedor.


7. QUESTÕES RELATIVAS AO PRAZO DE VIGÊNCIA DA LEI Nº. 11.382/2006

A Lei nº. 11.382, promulgada em 06 de dezembro de 2006, teve sua primeira publicação oficial no dia seguinte (D.O.U. de 07 de dezembro de 2006).

O texto inicialmente aprovado continha, em seu artigo 6º, a previsão de vacatio legis de seis meses. Contudo, tal dispositivo foi vetado sob o argumento de que a reforma já havia sido suficientemente discutida, passando a lei a vigorar 45 (quarenta e cinco) dias após sua publicação, conforme a regra do art. 1º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/42).

A existência de erro meramente ortográfico no art. 2º da Lei nº. 11.382, que alterou a redação do art. 656, III do CPC, deu azo à republicação deste último dispositivo no dia 10 de janeiro de 2007, desta vez corretamente redigido [26].

Assim, surge a dúvida ao momento a partir do qual se conta o prazo de 45 (quarenta e cinco) dias para o início da vigência da lei.

Uma leitura rasa do parágrafo 3º do art. 1º da LICC [27] poderia ensejar a conclusão de que, em virtude da nova publicação ter ocorrido antes da vigência do texto inicial, o prazo deveria ser contado a partir do dia 10 de janeiro de 2007. Por conseqüência, a Lei nº.11.382 somente vigoraria a partir de 26 de fevereiro de 2007.

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Não é razoável, porém, que a mera correção ortográfica de um único dispositivo interfira na vigência de todo o corpo normativo.

A vacatio legis visa conferir à sociedade o tempo necessário para conhecer e se adaptar às novas regras. Logo, o prazo deve ser contado a partir da primeira publicação do texto inteligível, isto é, do momento a partir do qual os destinatários da lei tornam-se capazes de entender corretamente seu sentido e portar-se de acordo com tal entendimento.

É aceitável dizer que o inciso III do art. 656 do CPC, especificamente, teve sua compreensão alterada pela redação corrigida. Por isso, a vacatio legis deste dispositivo em particular deve ser contada a partir de sua republicação.

Quanto ao restante da lei, porém, constata-se que seu significado não sofreu qualquer mudança. Deste modo, o prazo de vigência deve ser contado a partir do dia 07 de dezembro de 2006, razão pela qual o artigo 745-A vigora desde a data de 21 de janeiro de 2007.

Explanado este primeiro ponto, surge um segundo questionamento: o parcelamento compulsório do débito pode ser deferido no seio de processos que já estavam em andamento no dia 21 de janeiro de 2007? Aplica-se ao caso o princípio tempus regit actum, consagrado no art. 1.211 do Código de Processo Civil?

O emérito doutrinador Athos Gusmão Carneiro entende que sim, defendendo a aplicação do art. 745-A às ações ajuizadas antes da vigência da Lei nº. 11.382 [28]. A professora e advogada Sandra Aparecida dos Santos também é partidária deste pensamento, como se depreende de sua preleção:

[...] essa Lei já se aplica a todos os novos processos de execução de título extrajudicial, e aos que estão em curso, por força do sistema do isolamento dos atos processuais, adotado pela legislação brasileira, consagrando o princípio "tempus regit actum", o tempo rege o ato (Código de Processo Civil, art. 1.211). [29] (grifos no original)

Pede-se vênia para discordar.

Os respeitáveis estudiosos que assim se manifestam atentam unicamente para a faceta processual do instituto em análise, ignorando que o parcelamento compulsório tem natureza heterogênea, com predominância do aspecto material.

O artigo 745-A cria nova forma de adimplemento da obrigação, interferindo na relação jurídica travada entre credor e devedor. Está em jogo a liberdade de escolha das partes, que só pode sofrer as restrições impostas pela lei vigente à época em que a obrigação foi constituída.

Veja-se, nesta senda, a irretorquível assertiva do professor Fábio Lima Quintas:

Em outros termos, nos direitos que se formam com base obrigacional, a manifestação de vontade é, geralmente, o marco para definir o ato jurídico perfeito e o direito adquirido. E, como expressão da garantia do ato jurídico perfeito, tem-se que as obrigações serão regidas pelas normas vigentes no momento de sua constituição. [30]

O parcelamento compulsório não pode ser aplicado às relações materiais anteriores à Lei nº.11.382, pois desta forma o direito adquirido do credor ao pagamento imediato, consolidado quando do nascimento da obrigação, estaria sendo vilipendiado por norma posterior. Haveria igual ofensa ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, em razão do desrespeito à autoridade de título executivo extrajudicial já constituído.

Enfim, a interferência na relação jurídica estabilizada representaria grave afronta ao princípio maior da segurança jurídica, consagrado no art. 5º, XXXVI da Carta Magna de 1988.

Note-se que o posicionamento aqui defendido não condena apenas a aplicação do instituto aos processos que estavam em andamento no dia em que a lei passou a viger. A vedação também atinge os processos que, mesmo iniciados após aquela data, estejam fundados em títulos formados antes do dia 21 de janeiro de 2007.

Infelizmente, constata-se facilmente que este entendimento foi rejeitado pelos magistrados de primeira e segunda instância. O parcelamento não apenas foi normalmente concedido nos processos que estavam em andamento à época, como tem sido deferido nos processos que, mesmo iniciados posteriormente, baseiam-se em títulos formados antes da concepção do parcelamento compulsório.

Fica o alerta quanto ao equívoco desta posição, que, se revista, pode ainda poupar o direito subjetivo de muitos credores que só agora resolveram executar seus títulos extrajudiciais formados antes do termo inicial de vigência da lei.

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Sobre o autor
Bruno Ítalo Sousa Pinto

Especialista em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG, em Direito do Trabalho e Previdenciário na Atualidade pela PUC-MG e em Direito Civil e Processual Civil pela UCDB-MS. Bacharel em Direito (UFPI). Analista Judiciário, desempenhando a função de Assistente de Juiz no TRT da 16ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Bruno Ítalo Sousa. Artigo 745-A do CPC: a natureza jurídica do parcelamento da dívida e outras polêmicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1897, 10 set. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11704. Acesso em: 18 abr. 2024.

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