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Candidaturas itinerantes: direito ou abuso de direito?

11/09/2008 às 00:00
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Uma detida interpretação das disposições insculpidas no art. 14, §§ 5º e 6º, da Constituição Federal, autoriza a candidatura em circunscrição eleitoral diversa daquela em que determinado cidadão exerce o primeiro mandato de Prefeito ou de Governador?

Em sendo positiva a resposta a essa indagação, impõe-se outra: haverá em tal dispositivo uma posição adotada pelo Poder Constituinte, implícita ou explicitamente, acerca da existência ou não de causa de inelegibilidade relativa a terceiro mandato subseqüente em município diverso daquele em que exercidos os dois primeiros?

É sobre esse aparentemente tormentoso tema que se dedicará o presente estudo.

Assim dispõe a Constituição:

"Art. 14. (...)

§ 5º O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subseqüente.

§ 6º - Para concorrerem a outros cargos, o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos devem renunciar aos respectivos mandatos até seis meses antes do pleito.

Fácil ver que a CF/88 é bastante clara ao realmente estabelecer a inelegibilidade para o exercício subseqüente de um terceiro mandato, mas restringe essa limitação ao direito de ser votado apenas no que concerne ao mesmo cargo que foi exercido por dois mandatos consecutivos, tanto que estende essa inelegibilidade para quem houver sucedido ou substituído os respectivos titulares, e é certo que a sucessão ou a substituição são fenômenos que não podem ser levados a efeito em outro cargo, mas necessariamente no mesmo cargo.

O supratranscrito § 6º foi redigido com elogiável clareza. Nele há expressa autorização para que os Prefeitos e Governadores possam concorrer a outros cargos.

A toda evidência, parece que o âmago da controvérsia gravita em torno da exata definição do real sentido da locução "outros cargos".

Certamente o cargo de Prefeito de Matriz de Camaragibe é um, o de São Luís de Quitunde é outro; da mesma forma, o cargo de Prefeito do Município de São Paulo não pode ser confundido com o cargo de Prefeito do Município de Belo Horizonte, pois são cargos absolutamente distintos, tanto que para seus exercícios são necessárias eleições distintas, eleitorado distinto e candidatos distintos, entre outras distinções.

Também o cargo de Governador da Bahia é um, o de Governador de Roraima, do Rio Grande do Sul, da Paraíba etc. são outros.

Pensamos que não existe o cargo de Prefeito, ou de Governador, enquanto vocábulo empregado isoladamente, hipótese em que deve ser compreendido como espécie de cargo; existe, isso sim, o cargo de Prefeito do Município de São Paulo, de Belo Horizonte etc., assim como também não existe o cargo de Governador, mas de Governador de Rondônia, de Alagoas, de Sergipe etc.

O § 6º do art. 14 da CF/88, como visto, expressamente autoriza o deferimento dessa pretensão, e apenas impõe uma condição: a desincompatibilização no prazo de 6 (seis) meses antes do pleito.

Observe-se que não estamos a discorrer sobre ausência de proibição expressa, mas, sim, de expressa permissão, razão por que não se há de falar em abuso de direito sob quaisquer de suas abjetas formas, notadamente porque essa mesma lei, além de não proibir, como visto, expressamente permite a prática da conduta tida como fraudadora!

Discordamos, pois, da doutrina do mestre alagoano Marcos Bernardes de Melo, que prega a inelegibilidade dos denominados "prefeitos itinerantes".

Devemos investigar qual terá sido a vontade dos membros da Assembléia Nacional Constituinte quando, ao permitirem a eleição para outros cargos, impuseram aos titulares dos cargos de Prefeito, Governador e Presidente a prévia desincompatibilização e, ainda, estenderam-na como condição para a candidatura dos seus parentes mais próximos.

Temos como certo e indiscutível que pretendeu evitar o abuso do poder, o desequilíbrio do pleito pela força aterradora do inescrupuloso uso da máquina pública em favor do titular/candidato ou de seus parentes em flagrante detrimento dos demais concorrentes.

Mas essa vontade legislativa restou sobremaneira aniquilada pelo advento da reeleição, essa sim, para o mesmo cargo, já que dispensa a desincompatibilização, sendo lícito que pensemos que, se o próprio titular pode candidatar-se sem se desincompatibilizar do cargo, com muito mais razão tal medida não deveria ser necessária para as candidaturas de seus parentes.

Enfim, se foi criada uma presunção de que o titular/candidato não irá fazer uso indevido da máquina pública que administra para favorecer a si mesmo, decerto também se presume que não favorecerá seus parentes.

Vamos um pouco além da teoria contrária e asseveramos que, se a finalidade da norma é evitar o abuso do poder, é razoável que pensemos que, para concorrer em circunscrição eleitoral diversa, sequer seria necessária a desincompatibilização no prazo de 6 (seis) meses antes do pleito, já que o poder decorrente da Chefia do Executivo num Estado ou Município limita-se ao respectivo território, tanto que a CF/88 é translúcida ao tratar da inelegibilidade dos parentes do Presidente da República, dos Governadores de Estado ou do Distrito Federal e de Prefeitos, quando limita-a ao território de jurisdição do titular.

Vejamos a redação do § 7º do at. 14 da CF/88, verbis:

"Art. 14. (...)

§ 7º - São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição."

Dando-se a devido indulgência à equivocada utilização do vocábulo "jurisdição", que, como é cediço, constitui atributo específico dos magistrados, vemos que não podem pairar dúvidas de que a efetiva vontade do legislador foi realmente impedir que os tentáculos do poder interferissem na lisura das eleições, e é certo que tais tentáculos não vão além do território governado pelo titular do cargo. Nada mais!

Convém atentarmos para o fato de que os parentes que são inelegíveis no mesmo "território de jurisdição do titular" não o são em territórios diferentes, isto é, o Prefeito do Município de Guarabira não precisa se desincompatibilizar do cargo para que seus parentes concorram em município diverso, ainda que circunvizinhos e em áreas contíguas.

Em Alagoas temos um irretorquível exemplo dessa possibilidade, onde dois irmãos são Prefeitos dos Municípios de Piranhas e de Olho D’Água do Casado, ambos eleitos no pleito de outubro de 2004.

Reforçando a intelecção aqui defendida, e dando efetividade ao referido comando constitucional, observamos que foi bastante feliz o c. TSE quando editou Res.-TSE nº 22.717, de 28 de fevereiro de 2008 (que dispõe sobre a escolha e o registro de candidatos nas eleições de 2008), a qual, embora consista em ato normativo secundário, inegavelmente integra a legislação vigente, e dela se depreende que é bem possível a eleição em município diverso daquele em que o candidato tiver exercido um ou mesmo dois mandatos consecutivos, vejamos:

"Art. 14. (...)

Parágrafo único. O Prefeito reeleito não poderá candidatar-se ao mesmo cargo, nem ao cargo de vice, para mandato consecutivo no mesmo município (Resolução nº 22.005, de 8.3.2005)."

Ora, se expressamente impõe que não é possível a candidatura ao mesmo cargo para mandato consecutivo no mesmo município, logicamente está a assegurar que tal candidatura é possível se pleiteada em município diverso.

Ademais, as inelegibilidades configuram exceção à regra da plena elegibilidade, isto é, constituem restrição ao princípio constitucional da plena liberdade de exercício do jus honorum, sendo a interpretação extensiva dos §§ 5º e 6º do art. 14, se perpetrada para impedir candidaturas, um claro exemplo de interpretação ampliativa de norma restritiva de direitos, exegese que não se admite nem por compulsivo apego ao debate.

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Notamos que o colendo Supremo Tribunal Federal já se pronunciou direta e indiretamente sobre o tema.

Explicamos. É que o c. TSE – que tem a questão como definitivamente resolvida, ou seja, é jurisprudência sedimentada –, é integrado por três Ministros que representam a Suprema Corte. Assim, se a Resolução n° 22.717/2008 é fruto de decisão unânime daquela Corte Superior, certamente aqueles três Ministros expressaram suas opiniões sobre o tema.

Naquela ocasião, entretanto, só votaram os Ministros Cezar Peluzo e Carlos Britto.

Contudo, procedendo a uma minuciosa análise dos precedentes sobre o tema, e observando detidamente a composição do e. TSE em cada julgamento, pudemos verificar que, além dos Ministros supra-referidos, outros 04 (quatro) já perfilharam o entendimento ora defendido.

São eles: 1°) Ministro Marco Aurélio (CTA n° - Res. n° 19490; CTA n° 1015 – Res. n° 21696); 2ª) Ministra Ellen Gracie (CTA n° 879 – Res. n° 21420; CTA n° 936 – Res. n° 21487; CTA n° 946 – Res. n° 21521; CTA n° 1016 – Res. n° 21706; CTA n° 990 – Res. n° 21876); 3°) Ministro Gilmar Mendes (CTA n° 1015 – Res. n° 21696); e 4°) Ministro Celso de Melo (CTA n° 990 – Res. n° 21876).

Portanto, com base nessas assertivas, é lícito compreendermos que, indiretamente, o c. STF, em sua composição atual, representado pelos votos de seus Ministros quando em atuação no e. TSE, já se manifestou sim sobre a questão, e 06 (seis) deles, maioria absoluta, confirmaram a plena elegibilidade nas condições aqui tratadas.

Mas o entendimento do c. STF não se resume ao posicionamento de seus Ministros quando em atuação no e. TSE.

Embora sob a égide do sistema constitucional anterior, o Pretório Excelso já teve a oportunidade de se pronunciar sobre questão bastante similar, tanto no que concerne aos fatos quanto ao direito aplicável. Vejamos:

(...) E A IRREELEGIBILIDADE PREVISTA NA LETRA "A", AINDA DO PAR-1. DO ART-151, HÁ DE SER COMPREENDIDA COMO DESCABENDO A REELEIÇÃO PARA O MESMO CARGO QUE O CANDIDATO JÁ VINHA OCUPANDO, OU SEJA, O DE PREFEITO DE CURIUVA. COM ESTE NÃO PODE SER CONFUNDIDO O CARGO DE PREFEITO DE UM NOVO MUNICÍPIO, POIS AI, EMBORA SE TRATE DE CARGO DA MESMA NATUREZA E RESULTANTE DO DESMEMBRAMENTO DO ANTIGO MUNICÍPIO, É UM OUTRO CARGO. (STF. RE 100825 / PR – PARANÁ. Rel. Ministro Francisco Rezek. DJ de 07/12/1984)

Desse precedente extraímos a seguinte lição: os cargos de prefeito dos municípios brasileiros possuem a mesma natureza, mas são cargos distintos e, portanto, a eleição ou a reeleição para exercício do cargo de prefeito em um não implica a incidência do art. 14, § 5, da CF/88, mas, sim, do § 6° do mesmo dispositivo, o qual, ao contrário do que afirma o eminente doutrinador referido, permite a eleição ou a reeleição de cidadão que já fora eleito ou reeleito em município diverso, mesmo que sem solução de continuidade, ou seja, em mandatos consecutivos, já que são cargos distintos e a inelegibilidade se limita ao "mesmo cargo".

Com arrimo nos fundamentos aqui aduzidos, pensamos que, independentemente de estar o cidadão no exercício do primeiro ou do segundo mandato consecutivo, seja de Prefeito, seja de Governador, pode ele, sim, pleitear candidatura a qualquer cargo, inclusive da mesma espécie ou, na dicção do Pretório Excelso, da mesma natureza, daquele que exerce em primeiro ou segundo mandato, desde que preencha satisfatoriamente todas as condições de elegibilidade em seu desfavor não pese nenhuma causa de inelegibilidade.

Em derradeiras linhas, salientamos que a interpretação dada pelo brilhante jurista Marcos Bernardes de Melo, citado alhures, serve como uma majestosa sugestão de medida moralizadora a ser adotada, mediante Emenda Constitucional, por quem para tanto recebeu a devida parcela de competência pelo Poder Constituinte: o Poder Legislativo.7

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Sobre o autor
David Magalhães de Azevedo

analista judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Alagoas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AZEVEDO, David Magalhães. Candidaturas itinerantes: direito ou abuso de direito?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1898, 11 set. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11707. Acesso em: 4 nov. 2024.

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