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Direito de o servidor acusado apresentar memoriais depois do relatório e antes do julgamento do processo administrativo disciplinar

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4. Violação do contraditório no sistema da Lei federal n. 8.112/1990 pela ausência de razões finais do servidor acusado no processo administrativo disciplinar ou do requerente da revisão

O professor Dr. Romeu Felipe Bacellar Filho [08], em sua obra doutrinária e produto de sua tese de doutorado na Universidade Federal do Paraná, aduz que, na disciplina da Lei federal n. 8.112/1990, o próprio fato de o relatório, que seria as razões finais da comissão de processo administrativo disciplinar, ser apresentado por último, isto é, após a defesa ter se pronunciado, incorre em inconstitucionalidade, pois o servidor teria o direito de falar, com suas razões finais, após a acusação ter formalizado relatório (que assume a natureza de razões finais acusatórias, na hipótese de reprovação da conduta do servidor pelo colegiado processante):

O relatório constitui as alegações finais do órgão instrutor e acusador (Comissão de Inquérito) [...] Com efeito, uma Lei que preveja alegações finais da acusação e não preveja alegações finais da defesa, será inconstitucional por quebrar o liame contraditório a unir a atuação dos sujeitos processuais. A situação de inconstitucionalidade é ainda mais grave quando as alegações finais da acusação cumprem um papel decisivo no processo. É o caso da Lei 8.112/1990, ao determinar que imediatamente após o Relatório, o ´processo disciplinar´ seja remetido à autoridade que determinou sua instauração (art. 166).

Tem a mais plena razão o nobre doutrinador, porquanto, se existe uma etapa processual em que a comissão de processo administrativo disciplinar, na hipótese de recomendar a punição do servidor, pode formular as razões finais da acusação, intituladas de relatório no sistema da Lei federal n. 8.112/1990 (art. 166), seria corolário lógico da garantia constitucional do contraditório que o servidor acusado também dispusesse da oportunidade de apresentar suas razões finais, depois da acusação ter se valido de igual prerrogativa.

Se o contraditório envolver a possibilidade de a parte repelir interpretações jurídicas que lhe são desfavoráveis ou críticas sobre a sua conduta, formuladas pelo órgão oficial, seria necessário prever o direito de a defesa ofertar também suas razões finais, depois de o conselho processante ter exercitado essa faculdade.

Daí que a apresentação de memoriais pelo servidor acusado no processo administrativo disciplinar, ou mesmo pelo requerente da revisão do feito disciplinar originário no qual foi imposta punição, vem como instrumento jurídico à guisa de corrigir o desequilíbrio processual e a violação à garantia constitucional de contraditório albergada na disciplina da Lei federal n. 8.112/1990.

Esse juízo foi acolhido pelo colendo Superior Tribunal de Justiça ao sedimentar o juízo de que, se o órgão de consultoria jurídica reenquadrar o fato ou censurar a conduta do servidor, seria nulo, por cerceamento de defesa, o processo administrativo disciplinar se não se oportunizasse ao servidor nova oportunidade de ofertar razões contra as opiniões que lhe são desfavoráveis.

Cumpre assinalar, com efeito, que o acusado tem o direito de se pronunciar acerca do teor de pareceres lançados nos autos após o relatório final da comissão processante, segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o qual só não anulou a demissão imposta, porque o julgamento não se embasou nas conclusões formadas nos opinativos posteriores, mas em outras peças do autuado, colhidas durante a ação disciplinar. [09]

Efetivamente, se promovido o reenquadramento jurídico das infrações para infrações mais gravosas ao indiciado, ou se formuladas acusações novas nos opinativos dos órgãos jurídicos antes do julgamento, cumpre ser previamente aberta vista dos autos ao acusado, sob pena de cerceamento de defesa.

Julgou o Tribunal Regional Federal da 1ª Região:

2. O Professor da Universidade de Brasília - UnB possui direito líquido e certo à reintegração ao seu cargo, com o pagamento dos valores atrasados, em razão de sua demissão ter sido embasada em relatório da Comissão Disciplinar Administrativa que concluiu pela transgressão de normas da Lei n. 8.112/1990 que não foram imputadas ao servidor quando de seu indiciamento. Precedente do STF.  [10]


5. Direito de apresentação de memoriais com fundamento na Lei federal n. 9.784/1999

A Administração Pública está sujeita ao princípio da legalidade, sendo que vigora a Lei federal n. 9.784/1999 (dispõe sobre o processo administrativo em geral na União), a qual estatui expressamente:

"Art.2º............................................................

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

........................................................................

X - garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio;

..........................................................................

Art. 3º O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:

........................................................................

III - formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente;

........................................................................

Art.6º..............................................................

Parágrafo único. É vedada à Administração a recusa imotivada de recebimento de documentos, devendo o servidor orientar o interessado quanto ao suprimento de eventuais falhas.

........................................................................

Art. 38. O interessado poderá, na fase instrutória e antes da tomada da decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligências e perícias, bem como aduzir alegações referentes à matéria objeto do processo.

§ 1o Os elementos probatórios deverão ser considerados na motivação do relatório e da decisão.

Da transcrição dos dispositivos legais, nota-se que o Estatuto do Processo Administrativo federal, que se aplica subsidiariamente ao processo administrativo disciplinar e com maior propriedade ainda na revisão do processo administrativo disciplinar (art. 69, Lei federal n. 9.784/1999), alberga, inequivocamente, o princípio do direito à comunicação, direito de aduzir alegações e apresentar documentos antes da decisão referentes à matéria objeto do processo (art. 3º, III, e 38, caput, L. 9.784/1999), sendo ainda vedado à Administração Pública a recusa ao recebimento de petições e documentos (art. 6º, par. único, Lei federal n. 9.784/1999).

Isso porque o processo administrativo representa avanço emanado do Estado democrático de Direito, com o efeito de que o cidadão tem o direito de influenciar a formação de vontade estatal, formulando alegações e carreando provas nos feitos de interesse do indivíduo, de sorte que não se tolera mais que o feito administrativo se transforme num monólogo dos agentes e órgãos públicos acusadores, ou instrutores e decisores no caso do processo revisional, mas, sim, que o ato administrativo final, resultado da tramitação anterior de um processo contraditorial e democrático, deve espelhar uma decisão mais acertada, com a oitiva e participação ativa dos que podem ter suas esferas jurídicas afetadas pelo ato decisório.

Ora, o processo administrativo nada mais é que a forma que a Administração Pública deve observar na sua atuação e constitui reflexo da submissão do próprio Estado ao ordenamento jurídico, com o império do Estado de Direito ("rule of law, not rule of men: governo da lei, não dos homens), reconhecidamente firmado após o advento da Revolução Francesa e da queda do Absolutismo. Com efeito, outrora com a monopolização das três funções estatais básicas de legislar, julgar e administrar na pessoa do monarca, o cidadão não tinha como exercer o controle dos atos administrativos praticados em seu desfavor, época em que sagrados os ditados de que "The King can do no wrong" (o rei não pode errar) e "Le roi ne pêut mal faire" (o rei não pode fazer mal a alguém), de sorte que o súdito não podia senão assistir, impassível, as determinações estatais refletidas sobre sua pessoa.

Na quadra vigente, com o estabelecimento do direito administrativo ante a construção do Estado de direito democrático, firmou-se a atuação em processo do Estado quando no exercício de sua função administrativa, com vistas a assegurar o efetivo controle de legalidade dos atos administrativos pelo cidadão e, mais, para permitir que o administrado influencie e possa participar das determinações estatais que serão adotadas sobre sua pessoa, podendo externar suas razões para convencimento do órgão estatal decisor.

Sendo assim, longe de constituir um suposto procedimento irregular ou supostamente abusivo, o fato de um cidadão, por seu advogado, apresentar razões perante a autoridade julgadora ou os órgãos de consultoria jurídica, antes da decisão do processo administrativo revisional de seu interesse, representa o mais límpido e legítimo exercício do direito constitucional de petição, com amplo respaldo em diversos preceptivos da Lei federal de Processo Administrativo (Lei n. 9.784/1999).

José dos Santos Carvalho Filho [11], por sinal, destaca, ao comentar o art. 3º, III, da Lei federal n. 9.784/1999:

O direito a formular alegações é inerente também ao princípio da ampla defesa e contraditório. No sistema do devido processo legal (due process of law), a possibilidade de expor razões, invocar fundamentos e requerer decisões em certo sentido reflete o pleno exercício do direito de defesa com vistas à satisfação dos interesses do indivíduo. Note-se, por oportuno, que nem sempre uma alegação tem em mira rebater fatos e alegações outras; em certas ocasiões, a alegação é uma informação nova a ser apreciada. Distinguem-se, portanto, as alegações constitutivas de direito das impeditivas, modificativas e extintivas. Todas são, no entanto, alegações pelo fato de exibirem informações e argumentos no processo administrativo.

Não é verdade que, após o relatório da comissão revisora ou mesmo do colegiado do processo administrativo disciplinar originário, o interessado ou acusado não possa expor suas razões, seja perante a autoridade julgadora, seja perante o órgão de consultoria jurídica que orientará, decerto, a decisão a ser adotada pela autoridade administrativa decisora. A participação ativa do interessado, reafirme-se, não consubstancia nenhum estorvo ao direito de punir estatal ou ao exercício do poder decisório da Administração Pública, mas serve, ao contrário, para trazer mais reflexões, com vários pontos de vista, o que só vem em auxílio de uma melhor decisão final.

A Administração Pública já aplicou a demissão ou pena mais branda ao servidor requerente da revisão. Admitindo-se apenas para argumentar que não houvesse estrita previsão legal deferitória do direito de apresentar razões ao administrado antes da decisão final, quando na verdade há (art. 3º, III, L. 9.784/1999), qual seria, ainda assim, o prejuízo experimentado pelo Estado pelo fato de o ex-funcionário público apresentar um memorial perante os órgãos de consultoria jurídica ou a autoridade julgadora previamente à decisão do processo administrativo revisional?

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Ora, aboliu-se, porventura, a garantia constitucional do direito de petição (art. 5º, XXXIV, "a", Constituição Federal de 1988)? Há com isso uma "ameaça" de que a pena imposta possa ser eventualmente revista? Não é exatamente para eventual reapreciação dos motivos fáticos e jurídicos do feito e da sanção imposta, que o ordenamento jurídico criou o instituto da revisão do processo administrativo disciplinar, na hipótese de reparar um possível erro decisório anterior, se for o caso?


6. Dever legal de os órgãos de consultoria jurídica e a autoridade julgadora examinarem o teor dos memoriais apresentados pelo acusado ou pelo requerente da revisão do processo administrativo disciplinar

Ademais, irregularidade alguma haveria no fato de o órgão de consultoria jurídica ou a autoridade julgadora considerarem o teor do memorial apresentado pelo servidor interessado, apreciando as alegações do servidor para fins de formação do convencimento dos agentes públicos opinantes ou decisores. Na verdade, trata-se de estrito cumprimento do dever legal, pois, depois de assegurar o direito do administrado de apresentar razões antes da decisão final, o Estatuto do Processo Administrativo da União (Lei federal n. 9.784/1999) determina:

Art. 3º O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:

..........................................................................

III - formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente."

Portanto, ilegalidade haveria, sim, se os órgãos de consultoria jurídica ou a autoridade julgadora ignorassem, sem levar em consideração, o teor de memoriais apresentados pelos interessados, violando-se o disposto no art. 3º, III, da Lei federal n. 9.784/1999. Seria, no caso, conduta arbitrária, ditatorial, rechaçadora do postulado fundamental de ouvir as razões do administrado, ainda mais em se cuidando de processo administrativo, no qual se sabe que até novas provas podem ser produzidas em grau recursal, dado o princípio da verdade material.

É preciso trazer a lume que os órgãos competentes de consultoria jurídica da advocacia pública zelam pela legalidade e justiça em todos os processos administrativos que lhes são submetidos à apreciação, independentemente da parte interessada.

Os órgãos competentes de consultoria jurídica da advocacia pública, no exame de autos de processos administrativos disciplinares e sindicâncias, antes do consentâneo julgamento pela autoridade decisora competente, agem movidos por sua postura essencialmente técnica, de isenção e independência, na qual não perseguem administrados, nem funcionam como órgãos acusadores, mas, ao contrário, agem cobertos com o manto da justiça e do direito, irradiando luzes para que o administrador público possa agir e melhor julgar.

Não seria, portanto, de se esperar que os órgãos competentes de consultoria jurídica da advocacia pública, tutores da legalidade na Administração Pública, descumprissem a lei, paradoxalmente, negando vigência à norma legal que assegura ao interessado o direito de apresentar razões antes da decisão e veda a recusa do recebimento do memorial.

Destarte, em vez de pretenso procedimento irregular, o que sucede, quando os órgãos competentes de consultoria jurídica da advocacia pública recebem e apreciam memoriais dos interessados ou acusados é o estrito e mais legítimo cumprimento da lei quando, nos termos do art. 6º, par. único, da Lei federal n. 9.784/1999, não se recusam a receber um memorial apresentado pelo ex-servidor interessado no processo de revisão.

A bem da verdade, a intervenção do advogado do acusado, previamente ao julgamento, em vez de atrapalhar a Administração Pública, antes contribui para a elaboração de melhores pareceres dos órgãos de consultoria jurídica, os quais normalmente não participaram do curso do processo administrativo disciplinar ou do feito revisional, ainda que os opinativos, independentes e imparciais, venham a refutar as teses defensórias e alvitrar a punição, mesmo a demissória, se for o caso.

Mas, com a consideração das alegações do servidor, o cidadão terá sido respeitado em sua garantia constitucional de petição, a qual compreende, inequivocamente, também a prerrogativa de peticionar junto aos órgãos competentes de consultoria jurídica da advocacia pública ou à autoridade julgadora, apontando falhas procedimentais ou questões meritórias presentes nos feitos disciplinares. Ouvir o interessado no processo administrativo não prejudica a Administração Pública, enobrece-a e legitima seu poder punitivo ainda mais, conferindo-lhe inspiração democrática e justa.

Por isso que, mesmo depois de apresentado o relatório pela comissão de processo administrativo disciplinar, é lícita e legítima a apresentação de memorial pela defesa, antes do julgamento, não havendo no recebimento da petição pelo órgão administrativo qualquer procedimento irregular, mas estrito cumprimento da lei.

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Sobre o autor
Antonio Carlos Alencar Carvalho

Procurador do Distrito Federal. Especialista em Direito Público e Advocacia Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Direito de o servidor acusado apresentar memoriais depois do relatório e antes do julgamento do processo administrativo disciplinar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1912, 25 set. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11738. Acesso em: 18 nov. 2024.

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Título original: "Direito de o servidor acusado apresentar memoriais depois do relatório da comissão e antes do julgamento do processo administrativo disciplinar original ou da sua revisão".

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