4. Interesse
Acerca da matéria Moacyr Amaral Santos ensina que, "os bens da vida se destinam à utilização pelo homem. Sem uns, este não sobreviveria; sem outros, não se desenvolveria, não se aperfeiçoaria. A razão entre o homem e os bens, ora maior, ora menor, é o que se chama interesse. Assim, aquilata-se o interesse da posição do homem, em relação a um bem, variável conforme suas necessidades. Donde consistir o interesse na posição favorável à satisfação de uma necessidade. Sujeito do interesse é o homem; o bem é o seu objeto." [26]
Quanto ao interesse dito público, assim o trata Celso Antonio Bandeira de Mello, "ao se pensar em interesse público, pensa-se, habitualmente, em uma categoria contraposta à de interesse privado, individual, isto é, ao interesse pessoal de cada um. Acerta-se em dizer que se constitui no interesse do todo, ou seja, do próprio conjunto social, assim como acerta-se também em sublinhar que não se confunde com a somatória dos interesses individuais, peculiares de cada qual." [27]
Quanto ao interesse privado, de que pouco trataremos em razão da opção por não nos aprofundarmos em seu conceito, basta-nos a idéia de que materializa-se no interesse individualmente considerado.
4.1 Interesse público primário e interesse público secundário
Estão nas lições de Renato Alessi [28] os estudos desbravadores acerca do Interesse Público chamado primário e daquele dito secundário.
O interesse público primário está ligado à noção de bem geral que pode ser identificado nas palavras do Celso Antonio Bandeira de Mello: "correspondem à dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, que consistem no plexo dos interesses dos indivíduos enquanto partícipes da Sociedade (entificada juridicamente no Estado)". [29]
O interesse público secundário, segundo Hugo Nigro Mazzilli, relaciona-se com o "modo pelo qual os órgãos da Administração vêem o interesse Público". [30]
Quando a Constituição Federal, no parágrafo único de seu art. 1º afirma que, "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição", ela está destacando que este poder deverá ser exercido com vistas a desincumbir-se, a Administração [31], do bem geral, ou seja, do interesse primário.
O exercício da administração pública pelos órgãos da Administração centralizada ou descentralizada deve ocorrer conforme os princípios de que trata o art. 37 da Constituição Federal: legalidade [32], impessoalidade [33], moralidade [34], publicidade [35] e eficiência [36].
Não são todas as vezes que o interesse da coletividade, ou seja, o interesse público primário, coincide com o interesse público secundário, nas palavras de Hugo Nigro Mazzilli, "o interesse do Estado ou dos governantes". [37]
O Estado organizado e seus dirigentes, destinatários da delegação que emana do art. 1º, parágrafo único da Constituição Federal, estão adstritos, no exercício da administração pública, com vistas à realização do interesse primário, a toda uma gama de princípios que podemos chamar de ordem pública, conforme já citamos os mais importantes e donde emanam outros princípios e subprincípios.
4.2 Interesses transindividuais
Contemporaneamente, remontando a um período que abarca os últimos trinta e cinco ou quarenta anos, a partir dos estudos desenvolvidos na Itália por Mauro Cappelletti, vem se desenvolvendo pesquisas que, ao concentrar seus estudos na Teoria Geral do Processo e seus elementos, acabou por apontar particularidades no que respeita ao tratamento jurisdicional dos interesses de grupos, classes, categorias ou contingentes de indivíduos. [38]
Discutia-se sobre as discrepâncias entre aspectos atinentes aos interesses individualmente considerados e os interesses de grupos. As interrogações respeitavam à forma de atuação em juízo ser representação _ conforme os ensinamentos dos Professores Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, "a representação das partes em juízo é pressuposto processual de validade (CPC 267 IV) de sorte que o juiz deve examiná-la de ofício, procedendo da forma determinada pelo CPC 13. Não sanada a incapacidade processual da parte ou sua representação irregular, o juiz deverá extinguir o processo se debitada ao autor (CPC 131 e 267 IV), ou declarar revel o réu, se a este cabia regularizá-la (CPC 13 II). Deve ser examinada pelo juiz ou tribunal de ofício a qualquer tempo e grau de jurisdição, não sendo suscetível de preclusão (CPC 267 IV E § 3º; 301 VIII e §4º)." [39] _ ou substituição processual _ para José Frederico Marques a substituição processual ocorre "quando alguém, em nome próprio, pleiteia direito alheio. Não coincidindo o sujeito da relação processual com o da relação substancial, verifica-se caso de legitimação ad causam extraordinária. Por esse motivo, a substituição processual depende sempre de previsão expressa da lei (...) o substituto processual é parte no processo, tendo, assim, o direito de ação ou o de defesa. Ele atua no próprio interesse, tanto que age em nome próprio, como diz a lei. E isto em virtude da relação entre o direito alheio e o direito do substituído: por intermédio do direito do substituído é que o substituto satisfaz o direito próprio." [40]
Questionamentos eram também comuns sobre a dimensão a ser delegada á coisa julgada _ no que respeita á conceituação de coisa julgada, segundo a doutrina dos Professores Nelson Nery Junior e José Carlos Barbosa Moreira a "coisa julgada material (auctoritas rei iudicatae) é a qualidade que torna imutável e indiscutível o comando que emerge da parte dispositiva da sentença de mérito não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário (art. 467, CPC; art. 6º, §3º, LICC), nem à remessa necessária do art. 475, do CPC." [41]
A própria Constituição Federal em seu art. 5º, XXXVI determina que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".
O Professor Nelson Nery Junior ensina que, "a segurança jurídica, trazida pela coisa julgada material, é manifestação do estado democrático de direito (art. 1º, caput, CF). Entre o justo absoluto, utópico, e o justo possível, realizável, o sistema constitucional brasileiro, a exemplo do que ocorre na maioria dos sistemas democráticos ocidentais, optou pelo segundo (justo possível), que é consubstanciado na segurança jurídica da coisa julgada material." [42]
Também eram comuns as discussões doutrinárias acerca da distribuição do montante indenizatório entre os lesados do produto da sentença, visto serem muitas vezes indivíduos indeterminados, havendo casos em que, não obstante sua determinação, eram ausentes os critérios para a partida do produto auferido.
Outra discussão se deu acerca da legitimidade para a propositura das ações. Como ensinam os Professores Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, a legitimação é ordinária, "quando há coincidência entre a legitimação de direito material e a legitimidade para estar em juízo", e é extraordinária, "quando aquele que tem legitimidade para estar no processo como parte não é o que se afirma titular do direito material discutido em juízo(...)" _ Informam ainda os Professores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo que "a dicotomia legitimação ordinária e extraordinária só tem pertinência no direito individual, no qual existe pessoa determinada a ser substituída. Nos direitos difuso e coletivo o problema não se coloca." [43]
Para Hugo Nigro Mazzilli, valendo-se da doutrina de Mauro Cappelletti, os interesses metaindividuais estão "situados numa posição intermediária entre o interesse público e o interesse privado, (...) compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas (...). São interesses que excedem o âmbito estritamente individual, mas não chegam propriamente a constituir interesse público." [44]
O próprio Mauro Cappelletti em artigo afirma, "os interesses coletivos, se bem que constituam uma realidade inegável e grandiosa da sociedade hodierna, refogem, todavia, à precisa definição, e se furtam aos esquemas tradicionais aos quais nós, juristas, estamos habituados. (...) Trata-se, antes de tudo, de interesses (se posso exprimir com fórmula pirandeliana) a respeito do autor. (...) põe-se, em suma o problema de saber-se quem seria e qual seria a justa parte, ou seja, a parte legitimada a agir em um processo vertente sobre tais interesses." [45]
Chegamos a três categorias de interesses transindividuais: interesses difusos, interesses coletivos stricto sensu e interesses individuais homogêneos, particularizados por três critérios que devem ser analisados concomitantemente: o grupo, o objeto e a origem.
O grupo refere-se à possibilidade de se apontar ou não os titulares de determinado interesse ou direito; o objeto diz respeito ao próprio interesse e à sua condição de ser repartido ou não enquanto valor caro aos indivíduos coletivamente considerados; a origem aponta para a circunstância ou natureza do elo que torna comum o interesse a determinado grupo que o titulariza.
4.2.1 Interesses difusos
Segundo a lição de Celso Antonio Pacheco Fiorillo, "o direito difuso apresenta-se como um direito transindividual, tendo um objeto indivisível, titularidade indeterminada e interligada por circunstância de fato." [46]
Segundo o Código de Defesa do Consumidor em seu art. 81, parágrafo único, inciso I, são "interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato".
Sua natureza é indivisível, pois se trata de um interesse cujo objeto não comporta quantificação entre seus titulares, de maneira que, uma vez lesado, mesmo que posteriormente seja recomposto ou indenizado o dano, ele não poderá ter repartido o produto da indenização entre cada titular, de modo a estabelecer quanto daquele objeto pertencia a cada um. Imagine-se, por exemplo, a contaminação atmosférica em razão dos rejeitos sólido-gasosos decorrentes da combustão dentro dos motores dos veículos automotivos em uma cidade.
Quanto ao grupo que titulariza o interesse difuso, mais uma vez, a quantificação é impossível. Seus titulares são indetermináveis. Tome-se o exemplo da contaminação atmosférica em razão dos rejeitos sólido-gasosos decorrentes da combustão dentro dos motores dos veículos automotivos em uma cidade. Todos os indivíduos são vítimas da ofensa a este interesse ou direito, que é o de ter um meio ambiente sadio e respirarem ar puro, condição essencial de uma boa saúde: os moradores das áreas com maior concentração de poluição, aqueles que moram em áreas mais afastadas, mas que não são por esta razão menos interessados, os motoristas dos veículos automotores que despejam na atmosfera as substâncias, os visitantes eventuais da cidade, etc. Materializa-se em uma coletividade incontável.
Os titulares indetermináveis deste interesse difuso cujo objeto é indivisível são ligados por uma situação de fato. Vem de Hugo Nigro Mazzilli a lembrança de que "essa relação fática também se subordina a uma relação jurídica (como, de resto, ocorre com quaisquer relações fáticas e jurídicas)." [47]
Mais uma vez nos valemos do exemplo da poluição por rejeitos sólido-gasosos resultantes da combustão ocorrida em veículos automotores: o que une as vítimas desse dano é o fato de os veículos automotores produzirem substância resultante do processo químico que permite seu funcionamento, que é danosa à saúde das pessoas e ao meio ambiente.
4.2.2 Interesses coletivos
Quanto aos interesses coletivos stricto sensu, Alcides A. Munhoz da Cunha explica que "antes do Código de Defesa do Consumidor, através da Lei da Ação Civil Pública, com a abrangência conferida pela Constituição de 1988, já se podia exercer indistintamente e de modo amplíssimo a defesa de interesses hoje qualificados como difusos ou coletivos. Aliás, na literatura estrangeira encontram-se posições doutrinárias contrárias às tentativas de se distinguir interesses coletivos de interesses difusos. Seja como for, a distinção estabelecida no Código do Consumidor teve por escopo principal explicitar a extensão subjetiva dos efeitos da coisa julgada em cada caso." [48]
O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 81, parágrafo único, inciso II destaca que são "interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base."
A exemplo dos interesses difusos, também os interesses coletivos cuidam de objeto cuja natureza é indivisível. É certo que este objeto mesmo sendo de interesse de grupo particularizado ou particularizável, não pode ser repartido entre seus titulares em razão de sua natureza.
Enquanto os titulares do objeto indivisível não podem ser determinados quando se trata de interesse difuso, no que respeita ao interesse coletivo stricto sensu é possível a determinação do grupo, classe ou categoria a quem interessa a preservação do direito coletivo, uma vez que os titulares de um interesse coletivo stricto sensu têm como elo entre si, uma relação jurídica.
Tome-se o exemplo, muito comum na doutrina, da cláusula abusiva em contrato de adesão.
Indivíduos firmam um contrato com empresa segundo o qual a contratada, mediante o pagamento de preço mensal, se obriga a facultar-lhes o acesso a um elenco de médicos, hospitais, clínicas, laboratórios, exames e cirurgias. Trata-se dos notórios planos de saúde. Em determinado momento um contratante constata a existência de uma cláusula que estabelece uma obrigação unilateral de natureza bastante severa, eivada de ilegalidade. Seja pelo Ministério Público, por associação civil ou outro co-legitimado, a provocação jurisdicional dar-se-á com vistas à que se declare a nulidade da cláusula abusiva. Todos os contratantes ainda que não sejam identificados imediatamente, poderão sê-lo mediante a comprovação da relação jurídica que têm entre si. Todos sofreram a mesma lesão, que não poderá ser quantificada por cada vítima.
4.2.3 Interesses individuais homogêneos
A última categoria de interesses transindividuais respeita aos individuais homogêneos, nos termos do Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 81, inciso III, os "interesses individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum."
Para Kazuo Watanabe, "a homogeneidade e a origem comum são, portanto, os requisitos para o tratamento coletivo dos direitos individuais." [49]
O objeto dos interesses individuais homogêneos, diferentemente do que ocorre com os interesses difusos e os coletivos stricto sensu pode ser cindido e os titulares deste interesse podem ser identificados em classes, categorias ou grupos bastante distintos. A origem do dano ou prejuízo é comum, oriunda do mesmo evento fático, mas a cada um cabe uma titularidade quantificável. Em outras palavras, são interesses individuais aos quais se atribui a homogeneidade em razão da origem comum.