1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal passou por recente alteração quanto ao tema da prescrição qüinqüenal quanto aos créditos decorrentes do trabalho rural, sendo que o inciso XXIX do art. 7º passou a ter a seguinte redação, por força da Emenda nº 28, de 25 de maio de 2000:
"ação, quanto a créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho".
Referida Emenda, segundo anotou o jurista baiano UADI LAMMÊGO BULOS ("Constituição Federal Anotada", Ed. Saraiva, 2000, p. 390), "procurou uniformizar o tratamento conferido aos trabalhadores urbanos e rurais, pois, pela redação originária do preceito, criou-se uma espécie de privilégio para a classe rurícola, em detrimento dos empregadores rurais, os quais reagiram diante da rigorosa disciplina prescricional dos vínculos laborais. É que o constituinte originário, quando da feitura da Carta de 1988, espelhou-se num defasado critério oriundo da legislação infraconstitucional, pelo qual o homem do campo era tido como a ‘parte fraca’".
Tem surgido alguma polêmica quanto à auto-aplicabilidade ou não do conteúdo jurídico daquela Emenda, que pensamos ser de fácil resolução.
Com efeito, parece fora de qualquer dúvida que a Constituição reformada, quanto à nova redação do inciso XXIX do art. 7º, é auto-aplicável, sendo que a norma jurídica ali contida é de EFICÁCIA PLENA e de APLICABILIDADE DIRETA, IMEDIATA e INTEGRAL.
É o que passaremos a revelar.
2. A EFICÁCIA JURÍDICA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
Defendemos, como não poderia deixar de ser, o sentido jurídico da Constituição como único sentido possível e válido de ser estudado pelo jurista dogmático, por ser este o sentido que aproxima o estudioso da característica própria do Direito – e, por conseqüência, das próprias normas constitucionais –, que é a imperatividade, que se traduz na obrigatoriedade do cumprimento dos preceitos normativos por parte daqueles a quem os mesmos são dirigidos.
Esta idéia foi elegantemente desdobrada pelo jovem e já renomado constitucionalista LUÍS ROBERTO BARROSO:
"As normas constitucionais, como espécie do gênero normas jurídicas, conservam os atributos essenciais destas, dentre os quais a imperatividade. De regra, como qualquer outra norma, elas contêm um mandamento, uma prescrição, uma ordem, com força jurídica e não apenas moral. Logo, a sua inobservância há de deflagrar um mecanismo próprio de coação, de cumprimento forçado, apto a garantir-lhe a imperatividade inclusive pelo estabelecimento das conseqüências da insubmissão ao seu comando. As disposições constitucionais não são apenas normas jurídicas, como têm um caráter hierarquicamente superior, não obstante a paradoxal equivocidade que longamente campeou nesta matéria, considerando-se prescrições desprovidas de sanção, mero ideário não jurídico".1
Normas constitucionais, portanto, são típicas normas jurídicas, que por intermédio do respectivo veículo introdutor de normas constitucionais (lei constitucional), introduz no sistema jurídico os preceitos jurídicos fundamentais da comunidade, dentre eles aqueles que consignam temas como o da prescrição para o ajuizamento de reclamações trabalhistas.
Temos que reconhecer, no entanto, a existência daquilo que a doutrina chama de gradualismo eficacial das normas constitucionais. Com isto queremos dizer, juntamente com JOSÉ AFONSO DA SILVA, que não deve ser sustentada a existência de norma constitucional alguma desprovida de eficácia.2 Todas elas têm condições técnicas de irradiar, em menor ou em maior grau, efeitos jurídicos. "O que se pode admitir", ainda segundo a lição clássica de JOSÉ AFONSO DA SILVA,3 "é que a eficácia de certas normas constitucionais não se manifesta na plenitude dos efeitos jurídicos pretendidos pelo constituinte, enquanto não se emitir uma normação jurídica ordinária ou complementar executória, prevista ou requerida".
É de ser adotada, pois, a teoria tricotômica da eficácia das normas constitucionais,4 sistematizada pelo mestre JOSÉ AFONSO DA SILVA, que, partindo da premissa de que todas as normas constitucionais são dotadas de eficácia, tendo como elemento de distinção tão somente o grau de seus efeitos jurídicos, passou a discriminá-las em três categorias, a saber:
I - normas constitucionais de eficácia plena;
II - normas constitucionais de eficácia contida;
III - normas constitucionais de eficácia limitada.
Notável a forma como JOSÉ AFONSO DA SILVA elaborou esta classificação:
"Na primeira categoria, incluem-se todas as normas que, desde a entrada em vigor da constituição, produzem todos os seus efeitos essenciais (ou têm a possibilidade de produzi-los), todos os objetivos visados pelo legislador constituinte, porque este criou, desde logo, uma normatividade para isso suficiente, incidindo direta e imediatamente sobre a matéria que lhes constitui objeto. O segundo grupo também se constitui de normas que incidem imediatamente, e produzem (ou podem produzir) todos os efeitos queridos, mas prevêem meios ou conceitos que permitem manter sua eficácia contida em certos limites, dadas certas circunstâncias. Ao contrário, as normas do terceiro grupo são todas as que não produzem, com a simples entrada em vigor, todos os seus efeitos essenciais, porque o legislador constituinte, por qualquer motivo, não estabeleceu, sobre a matéria, uma normatividade para isso bastante, deixando essa tarefa ao legislador ordinário ou a outro órgão do Estado".5
Como o objeto central de nossa investigação é o tema da PRESCRIÇÃO QÜINQÜENAL TRABALHISTA, compete-nos encontrar o encaixe daquela regra jurídica na classificação acima. Quanto a isto, afigura-se-nos solarmente claro que dita regra é verdadeiro e legítimo exemplo de norma constitucional de eficácia plena, porquanto a mesma possui todas as possibilidades de produzir os seus efeitos jurídicos essenciais, desde o seu efetivo surgimento, pois foi criada normatividade suficiente para que isto venha a ocorrer.
Fato é que as regras jurídicas que tratam do tema da PRESCRIÇÃO já surgem completas no cenário jurídico, sendo-lhes supérfluo qualquer "auxílio supletivo de lei, para exprimir tudo o que intenta, e realizar tudo o que exprime".6 Contendo todos os elementos e requisitos para que possam incidir imediatamente, além de possuirem comando certo e definido, por restar claro qual a conduta que poderá ser realizada, correto é sustentar que regras dessa natureza são de eficácia plena e aplicabilidade direta, imediata e integral.
Sem outros cuidados, dispensáveis para o objeto desse breve estudo, podemos agora verificar que temos condições de alcançar nosso objetivo central, que é o de extrair todo o conteúdo possível de norma jurídica (no caso o inciso XXIX do art. 7º da CF/88), dotada da característica da imperatividade, além de lidarmos com material normativo que, ao menos sob o plano da eficácia jurídica, é de aplicação imediata, razões suficientes para atestarmos que a nenhuma norma constitucional deve ser dada mesmo uma interpretação que diminua ou reduza sua característica de norma jurídica fundamental.
3. A EFICÁCIA PLENA E APLICABILIDADE IMEDIATA DA EMENDA 28/2000
À luz do que restou exposto, somos da opinião de que a Emenda nº 28/2000 inseriu na Constituição norma jurídica de EFICÁCIA PLENA e de APLICABILIDADE IMEDIATA.
Acreditamos, em razão disso, que em reclamações trabalhistas, relativas à relação de emprego do trabalhador rural, somente poderão ser pleiteados créditos relativos aos últimos 05 anos, desde que se observe o limite de 02 anos após a extinção do contrato de trabalho.
Não acreditamos que se possa argumentar que o novel texto do inciso XXIX do art. 7º da CF/88 não possui aplicação imediata, até porque isto iria de encontro àquilo que restou exposto no item anterior.
Fato é que, tendo por objeto a prescrição, que é norma de NATUREZA PROCESSUAL, o texto sob enfoque tem vigência plena e aplicação imediata, como, aliás, ocorreu quando da promulgação da atual Constituição Federal, com relação ao mesmo inciso, que veio a criar, na Justiça do Trabalho, a prescrição qüinqüenal. Foi justamente este o entendimento do TST, que chegou a sumular a matéria, "in verbis":
Súmula TST nº 308 – Prescrição Qüinqüenal: "A norma constitucional que ampliou a prescrição da ação trabalhista para 5 anos é de aplicação imediata, não atingindo pretensões já alcançadas pela prescrição bienal, quando da promulgação da Constituição de 1988"
(RA 6/92 – DJU 05.11.1992).
O TRT da 24ª Região, inclusive, interpretou o tema da mesma forma, como se extrai dos seguintes precedentes:
"PRESCRIÇÃO – NATUREZA JURÍDICA – PRAZO. A norma prescricional é de natureza eminentemente processual e, portanto, o dispositivo constitucional que ampliou de 2 para 5 anos o seu tempo, no processo trabalhista, é de aplicação imediata"
(AC.TP nº 00403/93 – RO-00184/93 – Rel. Juíza GERALDA PEDROSO – DJ/MS 29/06/93).
"PRESCRIÇÃO – PLANO BRESSER – INCIDÊNCIA. De acordo com o disposto no artigo 7º, inciso XXIX, letra ‘a’, da Constituição Federal, foi ampliado para cinco anos a ação quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, até o limite de dois anos após a extinção do pacto laboral, isto para o trabalhador urbano. O aludido preceito constitucional teve aplicação imediata, ressalvadas as verbas anteriores à entrada em vigor da Carta Magna, porque estas já se encontravam fulminadas pela prescrição bienal (Enunciado nº 308 do C. TST). Recurso improvido"
(AC.TP nº 3553/94 – RO-1153/94, Rel. Juiz JOÃO DE DEUS GOMES DE SOUZA, DJ-MS nº 3096, 09/11/94).
"SUPLEMENTAÇÃO DA APOSENTADORIA – ALTERAÇÃO CONTRATUAL LESIVA – ATO ÚNICO – PRESCRIÇÃO TOTAL – ART. 11. DA CLT. (...) Entendo que o art. 7º, inciso XXIX, da CF, é norma de eficácia imediata, devendo ser aplicado o prazo prescricional de 5 anos durante a vigência do contrato de trabalho, contados da data da referida alteração. (...) Recurso desprovido por unanimidade"
(AC.TP nº 0002186/97 – RO-0000805/97 – Rel. Juíza GERALDA PEDROSO – DJ/MS nº 004639, 23/10/97).
A doutrina atual e especializada de UADI LAMMÊGO BULOS é no mesmo sentido:
"O inciso XXIX do art. 7º tem eficácia plena e aplicabilidade imediata às controvérsias surgidas após 25 de maio de 2000, data de promulgação da Emenda Constitucional nº 28/2000, não afetando prescrições consumadas antes da edição da mencionada emenda. Esse entendimento, aliás, remonta à época em que a Carta de outubro foi promulgada, quando os Tribunais se manifestaram nesse sentido (TST, RR 21.800/91.7, rel. Min. Almir Pazzianotto Pinto, Ac. 4ª Turma), sumulando a matéria (Súmula 308 do TST). Com efeito, chegou-se ao entendimento de que a norma constitucional que ampliou a prescrição da ação trabalhista para cinco anos era de aplicação direta, não atingindo pretensões já alcançadas pela prescrição bienal, quando da promulgação do Texto de 1988"
("Constituição Federal Anotada", p. 391).
O que restou exposto parece ser suficiente para chegar à conclusão que segue adiante.
4. CONCLUSÃO
Diante de tais argumentos jurídicos, nossa conclusão é no sentido de que a norma jurídica contida no inciso XXIX do art. 7º da Constituição Federal é de APLICAÇÃO IMEDIATA, sendo de EFICÁCIA PLENA, DIRETA, INTEGRAL e IMEDIATA, alcançando as situações em curso, à exceção daquelas em que ocorreu o trânsito em julgado.
Com o advento da Emenda 28/2000, o prazo prescricional dos créditos decorrentes das relações de trabalho dos empregados rurais foi equiparado ao dos trabalhadores urbanos, ficando REVOGADOS o art. 11. da CLT, na redação dada pela Lei 9.658/98, o art. 10. da Lei 5.889/73 e o art. 27. do Regulamento das Relações Individuais e Coletivas de Trabalho Rural, aprovado pelo Decreto 73.626/74. Também ficou sem efeito jurídico a regra estabelecida no art. 233. da Carta Magna.
O resultado, portanto, de nossa tarefa interpretativa da Constituição, no aspecto que interessa ao presente estudo, revela-se como um resultado apenas possível, nunca um resultado que seja o único correto, por não ser permitido ao cientista do Direito valorar a norma a ponto de sustentar ser esta ou aquela interpretação a única aplicável ao caso sob análise. Isto decorre da convicção de que o Direito a aplicar forma "uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo o ato que mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível".7
Notas
1 O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, Ed. Renovar, 2ª ed., 1993, p. 72.
2 A eficácia de que estamos a tratar é a eficácia jurídica, "que corresponde às condições técnicas de atuação da norma, ou seja, apresenta eficácia jurídica a norma que tiver condições de aplicabilidade. Eficácia jurídica significa, assim, a possibilidade de aplicação da norma. Já a eficácia social significa a efetiva aplicação da norma a casos concretos" (Flávia Piovesan, Proteção Judicial contra Omissões Legislativas, Ed. RT, 1995, p. 49).
3 Aplicabilidade das Normas Constitucionais, Ed. RT, 1982, pp. 71-72.
4 Existem outras classificações das normas constitucionais quanto à sua eficácia jurídica, tal como a que foi elaborada por Maria Helena Diniz (Norma Constitucional e Seus Efeitos, Ed. Saraiva, 1992, p. 98): a) normas supereficazes ou com eficácia absoluta; b) normas com eficácia plena; c) normas com eficácia relativa restringível; d) normas com eficácia relativa complementável ou dependente de complementação legislativa. Sobre este tema, importante é a leitura da obra de José Horácio Meirelles Teixeira (Curso de Direito Constitucional, pp. 295-361, organizado por Maria Garcia), que é considerado o primeiro autor a tratar do assunto em território pátrio.
5 ob. cit., p. 73.
6 José Afonso da Silva, ob. cit., p. 87.
7 Hans Kelsen, "Teoria Pura do Direito", Coimbra: Armênio-Amado, 1979, pp. 466-467.