4. IMPOSTOS INDIRETOS
Avaliada uma porção do tema que ora se propôs investigar, pertinente gizar os parâmetros a serem relacionados com a imunidade tributária recíproca. Como visto, o instituto fundamenta-se na forma federalista de Estado, como também no princípio da capacidade contributiva, objetivando a preservação da autonomia e igualdade entre os entes federados a fim de que possam perseguir os interesses coletivos.
Nesse passo, resta examinar a questão específica dos impostos indiretos e sua relação com a imunidade tributária recíproca. Seguem-se tópicos próprios destinados a demarcar a citada espécie tributária, com suas peculiaridades, a fim de que se possa relacioná-la com a imunidade tributária recíproca.
4.1. IMPOSTOS INDIRETOS – CONCEITO
A classificação dos impostos em diretos e indiretos é muito criticada por parte doutrina, vez que leva em consideração aspectos econômicos que refletem na exação.
Juristas do escol de Geraldo Ataliba [29] a repelem veementemente. Apoiado nas opiniões de A.D Giannini, autor de Instituzioni di Diritto Tributário, o professor paulista aduz que as classificações dos tributos devem levar em consideração tão somente os fundamentos jurídicos do objeto a ser investigado, de modo que os elementos econômicos que porventura interfiram devem ser desprezados.
Entretanto, vale ressaltar que mesmo Geraldo Ataliba, fazendo coro com Cleber Giardino e dizendo que tal classificação, "no Brasil, não tem aplicação [30]", em outra passagem de sua obra tempera sua posição ao informar que: "para os juristas, essa classificação é irrelevante, salvo para interpretar certas normas de imunidade ou isenção, pela consideração substancial sobre a carga tributária, em relação à pessoa que a suportará" [31]
Não obstante a crítica de doutrinadores notáveis, denota-se a consagração dessa classificação pela doutrina e jurisprudência, estando ela umbilicalmente ligada à própria evolução dos impostos, conforme informa Bernardo Ribeiro de Morais:
Do ponto do vista histórico, podemos distinguir três fases sobre a evolução do imposto direto: a) inicialmente, os impostos diretos eram gravames pessoais, que atingiam o indivíduo, a família ou a classe; b) posteriormente, ao abolir-se os impostos pessoais, o gravame passou a recair sobre bens (casa, terra, etc); c) por fim, ao aplicar-se o gravame sobre o consumo ou a circulação, tem-se, também, o imposto indireto. [32] Posto isto, resta esclarecer definitivamente a distinção entre impostos diretos e indiretos. Nesse sentido, pela clareza na exposição, optamos por fazer referência à lição de Luciano Amaro sobre a questão:
Um classificação, de fundo econômico, mas com reflexos jurídicos, é a que divide os tributos em diretos e indiretos. Os primeiros são devidos, "de direito", pelas mesmas pessoas que de "fato", suportam o ônus do tributo; é o caso do imposto de renda. Os indiretos, ao contrário, são devidos, "de direito", por uma pessoa (dita "contribuinte de direito"), mas suportados por outra ("contribuinte de fato"): o "contribuinte de direito recolhe o tributo, mas repassa o respectivo encargo financeiro para o "contribuinte de fato"; os impostos que gravam o consumo de bens ou serviços (IPI, ICMS, ISS) estariam aqui incluídos. [33]
Nesse passo, especificamente em relação ao imposto indireto, que é a espécie que ora nos interessa, observa-se que o contribuinte de jure realiza o fato gerador, mas quem suporta o imposto de modo indireto é o contribuinte de fato. Sobressai, no caso, o fenômeno da repercussão econômica, havendo, portanto, a transferência do encargo para o sujeito que ocupa a fase seguinte da cadeia.
Consagrando a referida espécie, o legislador infraconstitucional dispôs acerca dela no art. 166 do Código Tributário Nacional, segundo o qual:
Art. 166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.
Tal norma permite sejam adotados instrumentos de natureza econômica a fim de aferir quem efetivamente suportou o encargo financeiro. Nesse passo, quem, porventura tenha seu patrimônio atingido injustamente, desde que comprove, pode requerer o ressarcimento. Cria-se um óbice ao locupletamento sem causa do produtor-vendedor, por exemplo, que, só poderá solicitar a restituição do indébito nos termos do art. 166, provando que não repassou o ônus ao consumidor final.
Nessa esteira, a jurisprudência também é pacífica em relação à admissão da sistemática dos impostos indiretos, conforme se infere da súmula seguinte:
Súmula 546 STF. Cabe restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão que o contribuinte de jure não recuperou do contribuinte de facto o quantum respectivo.
Desse modo, os impostos indiretos, são construídos juridicamente para repercutirem esfera econômica de terceiro, não previsto da relação jurídica base.
Conforme explanação de Igor Mauler Santiago [34], cediço que todos os tributos, vez que são considerados como custo na composição dos preços de mercadorias e serviços, repercutem economicamente sobre esses. Entretanto, nos impostos indiretos, tal repercussão não se dá de modo difuso do ponto de vista econômico. Regidos por princípios próprios, quais sejam o da não-cumulatividade e o da seletividade, tais tributos têm sua translação determinada pelo próprio legislador.
4.2. PRINCÍPIOS QUE INTERFEREM NOS IMPOSTOS INDIRETOS – NÃO CUMULATIVIDADE E SELETIVIDADE
Encontra-se expresso em nossa Constituição, em seus arts. 153 e 155, a determinação de se aplicar a não-cumulatividade em relação ao IPI e ao ICMS, respectivamente.
Nesses termos, tem-se que:
Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
(...)
IV – produtos industrializados;
§3º O imposto previsto no inciso IV:
(...)
II – Será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores.
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
(...)
II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
§2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
(...)
I – será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestações de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou Distrito Federal.
A técnica referente à aplicação da não-cumulatividade surgida na França com a Taxe sur la Valeur Ajoutée (TVA), em 1954, foi o principal meio encontrado para solucionar os tributos que incidiam "em cascata", no qual o tributo é cobrado de forma cumulativa. Tal forma perniciosa de tributação implica na cobrança em separado (autonomamente) de cada operação relacionada ao processo de produção, sem se levar em conta o que fora tributado nas fases anteriores.
A não-cumulatividade visa precipuamente os tributos plurifásicos, isto é, aqueles que incidem em várias fases de circulação do bem, como os enunciados IPI e ICMS. Tais tributos diferem dos monofásicos, que são os que recaem apenas sobre um fase do processo produtivo.
Por meio da não-cumulatividade permite-se o ingresso do sujeito ativo "em cada uma das etapas do processo econômico de produção, distribuição e comercialização, na proporção que cada uma delas incorpora, agrega ou adiciona ao valor do produto" [35]. Desse modo, o tributo, ao ser transferido economicamente pelo mecanismo de preços, será suportado, apenas, pelo ocupante final da cadeia de produção, qual seja o adquirente do produto.
Obsta-se, desse modo, a oneração cada vez maior do imposto que atua em várias fases ao longo da operação de circulação. Através de um mecanismo de compensação previsto na legislação, compreendido pela melhor doutrina como direito público subjetivo do contribuinte, o promotor da operação tributada recolhe aos cofres públicos apenas a diferença que lhe é devida, compensando o crédito concernente ao imposto que incidiu na operação anterior.
Inúmeras vantagens são evidenciadas na adoção da não- cumulatividade, conforme elenca Misabel Derzi em relação à sua aplicação no ICMS:
- é neutro, devendo ser indiferente tanto na competitividade e concorrência, quanto na formação de preços de mercado;
- onera o consumo e nunca a produção ou o comércio, adaptando-se às necessidades de mercado;
- oferece vantagens ao Fisco, pois, sendo plurifásico, o ICMS permite antecipar o imposto que seria devido apenas no consumo (vantagens financeiras), e coloca, ademais, todos os agentes econômicos das diversificadas etapas de circulação como responsáveis pela arrecadação (vantagens contra o risco de insolvência) [36] Para calcular o montante devido por cada contribuinte em cada fase da operação de circulação da mercadoria, a nossa Constituição adota o método imposto-contra-imposto. Aplica-se o princípio da não-cumulatividade tomando-se como parâmetro a técnica da base financeira.
Desse modo, por um mecanismo de compensação, que implica na contraposição de créditos e débitos devidos reciprocamente pelos sujeitos envolvidos em determinada operação, desconta-se o valor do tributo recolhido na operação anterior para que a exação incida apenas sobre o valor adicionado na nova operação. Desconta-se o valor que pesou sobre a fase anterior, numa manifestação equânime que intenta atingir somente o fato gerador efetivamente praticado pelo contribuinte.
Além da não-cumulatividade, destaca-se a aplicação do princípio da seletividade em relação aos impostos indiretos. Em função da seletividade, deve-se graduar as alíquotas conforme a essencialidade dos bens sobre os quais incide a cobrança do tributo. Aos menos essenciais aplicam-se alíquotas mais gravosas, enquanto se reserva as menores para os mais essenciais.
A seletividade atua em conjunto com a não-cumulatividade mirando não onerar excessivamente o contribuinte de fato ou consumidor final ou, de outro modo, onerá-lo em demasia, em caso de bens supérfluos. Atenta aos princípios da isonomia e da capacidade contributiva a Constituição determina mecanismos para que os impostos recaiam apenas em função da manifestação de riqueza do contribuinte.
Analisados os impostos indiretos, com seus princípios próprios e atentos ao mecanismo de repercussão ou translação econômica, por meio do qual o contribuinte de fato absorve o impacto da imposição que recai sobre o contribuinte de direito, pertinente cotejar tais impostos em relação aos entes imunes em função da imunidade tributária recíproca. Feitas as considerações pertinentes, seguem, então, parágrafos diretamente relacionados à questão que ora nos propomos a enfrentar.
5 – IMUNIDADE TRIBUTÁRIA RECÍPROCA E OS IMPOSTOS INDIRETOS
A discussão concernente ao alcance da imunidade tributária recíproca nos impostos indiretos não é recente e ainda não foi pacificada pela doutrina e jurisprudência. Sob a égide das Constituições anteriores, especialmente a de 1967, a querela apresentou-se como uma das mais polêmicas que foram colocadas na pauta no Pretório Excelso Brasileiro.
Gigantes do quilate de Aliomar Baleeiro e Bilac Pinto digladiaram-se intelectualmente fincando posturas diametralmente opostas. As teses alternaram-se nas decisões da Suprema Corte, não apresentando, em nenhum momento, unanimidade.
Hodiernamente, verifica-se o reflexo dos julgados anteriores, de modo que se denota a jurisprudência vacilante ao aferir a aplicação do preceito imunitório quando a pessoa política se situa na posição de contribuinte de fato.
Outrossim, a doutrina se divide no tratamento da questão. O fenômeno da repercussão ou translação econômica do tributo, próprio dos impostos indiretos, é concebido de forma diversa pelas correntes de pensamento. Ao repercutir em função da imunidade tributária recíproca, o dissenso resulta em conseqüências práticas variáveis.
Seguem, assim, tópicos próprios que retratam as diferentes correntes doutrinárias, bem como a evolução da jurisprudência no tratamento da questão.
5.1 – ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA DOUTRINÁRIA
Parcela significativa da doutrina pugna não seja levada em consideração a repercussão econômica nos impostos indiretos quando os entes imunes ocupam a posição de contribuintes de fato. Dentre os autores dessa corrente, destacam-se Paulo de Barros Carvalho e Hugo de Brito Machado.
Prendem-se apenas na relação jurídica que se forma em função do disposto na lei acerca do sujeito passivo determinado. Aduzem que, em casos de impostos como o IPI e o ICMS, a norma prescreve que os contribuintes são aqueles que promovem a saída dos produtos industrializados ou as operações de circulação de mercadorias. É com esses que se forma o vínculo jurídico, sendo que o contribuinte de fato é sujeito totalmente estranho à relação.
Sob esse enfoque, qualquer interpretação que leve em consideração o contribuinte de fato, não previsto na norma, seria uma interpretação econômica, repugnada pela Direito.
Nessa perspectiva, vale colacionar a lição de Paulo de Barros acerca do tema:
Problema surge no instante em que se traz ao debate a aplicabilidade da regra que imuniza a impostos cujo encargo econômico seja transferido a terceiros, como no IPI e no ICMS. Predomina a orientação no sentido de que tais fatos não seriam alcançados pela imunidade, uma vez que os efeitos econômicos iriam beneficiar elementos estranhos ao Poder Público, refugindo ao espírito da providência constitucional. A relação jurídica se instala entre o sujeito pretensor e o sujeito devedor, sem que haja qualquer participação integrativa dos terceiros beneficiados. E a pessoa jurídica de direito constitucional interno não pode ocupar essa posição, no setor das exigências tributárias. A tese foi brilhantemente sustentada pelo saudoso Min. Bilac Pinto, em memoráveis acórdãos do Supremo Tribunal Federal. E a formulação teórica não pode ficar conspurcada pela contingência de a entidade tributante, comparecendo como contribuinte de fato, ter de arcar com o peso da exação, pois aquilo que desembolsa não é tributo, na lídima expressão de seu perfil jurídico. [37]
Nos termos da propugnada interpretação formalística, se o contribuinte de jure é uma empresa privada e o contribuinte de fato um ente público, será o caso de incidência tributária. De outro modo, se a pessoa jurídica de direito público ocupa a posição de contribuinte de jure prevista na norma e a empresa privada é o contribuinte de fato, será hipótese de não-incidência, prevalecendo a imunidade do sujeito previsto como contribuinte.
Divergindo da concepção exposta, posiciona-se outra parcela da doutrina. Nas trilhas de Aliomar Baleeiro, principal defensor da tese que destrincharemos, tem-se Misabel Derzi, Regina Helena Costa, Werther Botelho Spagnol e Sacha Calmon, que, ressalta-se, integrava o coro dos que defendiam as idéias dispostas nos parágrafos anteriores e modificou seu pensamento, convencido dos argumentos que serão analisados.
Essa corrente informa que não se deve desconsiderar o contribuinte de fato na relação jurídica tributária. A própria legislação tributária o reconhece, ao explicitá-lo no art. 166 no Código Tributário Nacional.
Ao se tratar de avaliar a questão da imunidade tributária incidindo em relações envolvendo impostos indiretos, deve-se investigar quem será efetivamente atingido pela exação. O ente imune não pode ser atingido, sob o risco de ofensa aos preceitos constitucionais que fundamentam o instituto da imunidade.
Propõe-se, desse modo, uma ampla investigação, a fim de que a imunidade constitucional recíproca não seja amesquinhada por uma interpretação estrita e formal da norma infra-constitucional, desconsiderando os efeitos da necessária exoneração.
Deve-se considerar as particularidades dos impostos indiretos concernentes à aplicação da não-cumulatividade e da seletividade, sem desprestigiar a capacidade contributiva e o federalismo, reitores que fundamentam a imunidade tributária recíproca.
A repercussão econômica não pode ser abstraída da questão e aferida apenas como afeita às ciências das finanças. Não se trata, no caso, de realizar uma interpretação econômica, como propugnam os defensores da primeira corrente. O contribuinte de fato foi contemplado pela norma constitucional. Interpretação contrária, no caso dos impostos indiretos, incorreria em ofensa ao princípio da capacidade contributiva. Isso por que, pelo fenômeno na translação econômica, o ente imune, ao ocupar a posição de contribuinte de fato, teria seu patrimônio afetado, sendo prejudicado na consecução de seus fins públicos.
Se a norma imunizante objetiva proteger a pessoa de direito público para que satisfaça o interesse da coletividade, incabível ter o seu patrimônio desfalcado, seja por imposto direto ou indireto. Esse é o magistério de Regina Helena Costa:
Em nosso pensamento, a imunidade recíproca deve abarcar quaisquer impostos, sejam diretos ou indiretos, que possam afetar o patrimônio, a renda ou os serviços do ente dela beneficiário. É preciso relembrar – para melhor compreender tal assertiva – que o caráter ontológico dessa imunidade advém não somente da adoção da forma federativa do Estado, mas também da ausência de capacidade contributiva desses entes. [38]
Misabel Derzi também reforça a tese de Baleeiro. Alega que os impostos indiretos devem ser compreendidos em sua inteireza e que não se pode desconsiderar o fenômeno da repercussão econômica, inerente a essas espécies de tributos em função da aplicação da não-cumulatividade e da seletividade.
A melhor interpretação deve se pautar pelos ditames constitucionais. O ônus advindo dos impostos indiretos não pode atingir a pessoa jurídica de direito público quando ocupa a posição de contribuinte de fato, sob risco de ofensa à imunidade tributária recíproca.
Sacha Calmon, convencido da tese de Baleeiro, modificou sua posição acerca do entendimento do tema e assim se manifesta: Nas primeiras edições dos nossos comentários à Constituição, não advogamos as teses de Baleeiro, delas fazendo apenas registro. Agora, contudo, urge meditar mais intensamente sobre elas. Alguns casos concretos parecem dar razão ao grande mestre baiano, senão vejamos: a) quando a Usiminas vende chapas de aço à Marinha Nacional, para consumo próprio, conquanto o contribuinte de iure seja a Usiminas, o repasse do ICMS no preço faz da União Federal o contribuinte do imposto, sem dúvida. Não seria o caso de considerar a teoria da repercussão para atender atentamente ao princípio constitucional da imunidade intergovernamental recíproca, sabendo-se que as pessoas políticas não possuem, por definição capacidade contributiva, à luz do princípio constitucional? [39] Esmiuçados os argumentos aduzidos pelas duas correntes, resta examinar o desenvolvimento da jurisprudência no trato da questão. Retornando aos principais julgados em que a questão foi suscitada, intentamos aferir o desenvolvimento do tema.
5.2 - ANÁLISE À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA
A discussão acerca do alcance da imunidade tributária recíproca nos impostos indiretos não é nova nos pretórios. Segundo Regina Helena Costa [40], trata-se do tema, em sede de imunidades fiscais, que mais foi discutido pelo Supremo Tribunal Federal até hoje.
As discussões em torno do tema notabilizaram-se principalmente entre 1967 e 1973 em julgados que refletiam os posicionamentos diametralmente opostos seguidos pelos Mins. Aliomar Baleeiro e Bilac Pinto.
Até 1970 prevalecia, em conformação não unânime, a posição de Baleeiro, de modo que deveria ser reconhecida a imunidade tributária recíproca quando os entes imunes ocupassem a posição de contribuintes de fato, estando, por exemplo, como consumidores de produtos sujeitos a imposto sobre o consumo.
Havendo cobrança, a pessoa de direito público, poderia se opor por meio de mandando de segurança ou outro instrumento judicial idôneo. Embora não participasse da relação jurídica como contribuinte de direito, era atingida pela exação como contribuinte de fato.
Tal posicionamento pode ser depreendido, por exemplo, da ementa dos seguintes acórdãos:
CAIXAS ECONOMICAS FEDERAIS. SENDO O IMPOSTO DE CONSUMO EMINENTEMENTE DIRETO, QUE RECAI, AFINAL, SOBRE O COMPRADOR, DE SEU PAGAMENTO ESTAO ISENTAS AS CAIXAS ECONOMICAS, QUE GOZAM DE IMUNIDADE TRIBUTARIA, FACE AO ART. 31, V, A, DA CONSTITUIÇÃO - DE 1946 E LEIS POSTERIORES. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. (STF, PLENO, RE-68538/SP, rel. Min. Barros Monteiro. DJU. 18/09/1970). IMUNIDADE RECIPROCA. AS UNIDADES ADMINISTRATIVAS, IMUNES A TRIBUTAÇÃO, E AS EMPRESAS BENEFICIADAS POR ISENÇÃO DE TODOS OS IMPOSTOS FEDERAIS PODEM, ATRAVÉS DE MANDADO DE SEGURANÇA OU OUTRO REMEDIO JUDICIAL IDONEO, OPOR-SE AO PAGAMENTO DO IMPOSTO DE CONSUMO, EXIGIDO DE FABRICANTES OU OUTROS CONTRIBUINTES DE IURE PELOS FORNECIMENTOS QUE LHES FACAM. (STF, 1 T., RE 68450/SP, rel. Min. Aliomar Baleeiro. DJU 29/12/1969).
Vale realçar que, no primeiro julgado supra citado, analisado pelo Supremo Tribunal Federal em sua composição plenária, concernente à Caixa Econômica Federal, apesar de não prevalecer, pululam vozes dissonantes em relação à questão. No caso, merece destaque o voto do Min. Eloy Rocha. Apesar de vencido, suscitou a prevalência da relação jurídico-tributária, estatuída na lei ordinária, em face da realidade econômica existente nos impostos indiretos.
Com tal entendimento, o Min. Eloy da Rocha, discordando de Baleeiro, informou em seu voto que embora reconhecesse a repercussão do ônus tributário sobre o consumidor, a imunidade não devia ser considerada, uma vez que, nos termos da obrigação tributária estatuída pela lei, o sujeito passivo não gozava do favor.
Porém, como verificado na redação da ementa, a posição de Min. Eloy Rocha sucumbiu diante das idéias de Baleeiro, que, no caso, prevaleceram. Nos termos do voto do tributarista baiano, não importava se a lei ordinária estabelecia ser o contribuinte de direito o produtor ou comerciante. Seu pensamento era, visando realizar a vontade constitucional, dar a amplitude devida à imunidade intergovernamental recíproca, não permitindo fosse o patrimônio das pessoas políticas e suas instrumentalidades atingido pelo ônus tributário.
Posteriormente, ainda no início da década de 70, verifica-se a mudança de postura do Pretório Excelso, no sentido de que não há se investigar a repercussão econômica do tributo, independente do fato de as pessoas políticas, na condição de adquirentes, suportarem o encargo dos impostos relacionados ao consumo.
A referida guinada de posição relaciona-se principalmente com a mudança de composição da Suprema Corte e a posse do Min. Olavo Bilac Pinto. Esse consagrou-se como principal opositor de Baleeiro, fazendo prevalecer suas idéias, conforme se depreende das ementas dos seguintes acórdãos:
IMPOSTO DE CONSUMO. SERVIÇO FUNERARIO DA MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO. IMUNIDADE: INOCORRENCIA. II. AINDA QUE FIGURE COMO COMPRADORA A ENTIDADE PÚBLICA EM QUESTÃO, ESTA ELA SUJEITA AO PAGAMENTO DO IMPOSTO DE CONSUMO. MOTIVAÇÃO. EMBARGOS CONHECIDOS E RECEBIDOS. VOTOS VENCIDOS. (STF, PLENO, RE-embargos 68215/SP. Rel. Min. Thompson Flores. DJU. 16/04/1971).
IMUNIDADE FISCAL RECIPROCA. NÃO TEM APLICAÇÃO NA COBRANÇA DO IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS. O CONTRIBUINTE DE IURE E O INDUSTRIAL OU PRODUTOR. NÃO E POSSIVEL OPOR A FORMA JURÍDICA A REALIDADE ECONÔMICA PARA EXCLUIR UMA OBRIGAÇÃO FISCAL PRECISAMENTE DEFINIDA NA LEI. O CONTRIBUINTE DE FATO E ESTRANHO A RELAÇÃO TRIBUTARIA E NÃO PODE ALEGAR A SEU FAVOR, A IMUNIDADE RECIPROCA. (STF, 2 T., RE 68741/SP, rel. Min. Bilac Pinto. DJU 23/10/1970).
Analisando a primeira das decisões concernentes à mudança de postura da Suprema Corte, ligada ao Serviço Funerário da Municipalidade de São Paulo, em que o Pretório votou em sua composição plena, denota-se o acaloramento dos debates acerca do alcance da imunidade tributária recíproca. Nesse embargos de divergência em recurso extraordinário clarifica-se a dissensão de posicionamentos acerca da questão, destacando-se as contendas protagonizadas por Baleeiro e Bilac Pinto.
Bilac Pinto, assim como Eloy Rocha anteriormente, alegou em seu voto que, do ponto de vista econômico, quem sofreria a incidência do imposto seria o ente público. Entretanto, para ele, o debate travado girava em torno da oposição entre uma realidade econômica e uma forma jurídica, de modo que a translação econômica não poderia prevalecer diante da prescrição da norma legal. Segundo ele, não se podia admitir que a realidade econômica pudesse servir como um dado para invalidar a forma legal.
O Min. Baleeiro, inconformado com as considerações de Bilac Pinto, propugnou em seu voto estar tão somente restrito aos ditames constitucionais e que esses estariam sendo desrespeitados pelo posicionamento suscitado. Para Baleeiro a norma constitucional deveria ser interpretada em atenção aos fatos e, no caso do imposto indireto repercutir no consumidor, se o ente público estivesse nesta posição, a exigência tributária deveria ser repelida.
Alegava, ainda, a prevalência da Constituição e que, em sua essência, ao dispor acerca da imunidade tributária recíproca, objetivava proteger os entes federativos das exigências tributárias uns dos outros. Independente da lei infra-constitucional designar o produtor como sujeito ativo da exação deveria se atentar para a realidade dos fatos quando, nos impostos indiretos, os entes públicos ocupassem a posição de consumidores e arcassem com o ônus.
Por fim, entre os seus argumentos, Baleeiro ainda defendia que o ordenamento jurídico pátrio reconhecia o contribuinte de fato ou consumidor como aquele que suportava o ônus tributário. Nesse passo, referiu-se ao art. 166 do CTN, o qual, para o jurista, deixava claro o reconhecimento da realidade econômica subjacente aos impostos indiretos, considerando, portanto, a repercussão do tributo.
Apesar das irresignações, a posição de Baleeiro não prosperou e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal modificou-se, levando até mesmo à edição da Súmula 591, segundo a qual: "a imunidade ou isenção tributária do comprador não se estende ao produtor, contribuinte do Imposto sobre Produtos Industrializados."
Desse modo, nos últimos tempos tem prevalecido a tese de que o contribuinte de fato é figura estranha à relação jurídica tributária, não podendo nela intervir, a qualquer título, para alegar que tem a seu favor a imunidade recíproca. A interpretação deve se restringir à norma tributária, não levando em conta os efeitos econômicos.
Apesar da prevalência da tese de Bilac Pinto, observa-se, porém, que as idéias de Baleeiro não foram definitivamente abandonadas. A questão ainda não está pacificada. O Supremo Tribunal, em sua composição recente, ainda não se manifestou pela adesão ao reconhecimento do alcance da imunidade tributária recíproca nos impostos indiretos, reconhecendo a repercussão econômica do imposto. Entretanto, alguns tribunais, embasados na moderna doutrina de, entre outros, Misabel Derzi e Sacha Calmon, têm pugnado pelo alcance máximo da imunidade tributária recíproca. Nesse sentido, tem-se o seguinte acórdão:
TRIBUTÁRIO. ICMS. IMPOSTO INDIRETO. CONTRIBUINTE DE FATO. AUTARQUIA FEDERAL. IMUNIDADE DO ART. 150, VI, A. EXISTÊNCIA. Comprovado que é a autarquia federal quem arca com o ônus do ICMS, vez que os valores devidos são incluídos nas faturas mensais, tem ela direito de repetir o que indevidamente pagou, pois goza do benefício da imunidade tributária recíproca constante do texto constitucional. (TRF4, 2 T, AC 97.04.23659-0/SC, rel. Juiz Fernando Quadros da Silva. DJ. 11/05/2000).
No referido julgado, o relator aduz em seu voto que em momento algum a lei indica o consumidor final, no caso a autarquia federal, como contribuinte do tributo. Limita-se a elencar como sujeito passivo o produtor, o comerciante e o prestador de serviço.
Porém, nos termos dos argumentos do relator, trata-se de situação prática diversa. O ICMS é classificado como imposto indireto, ou seja, ao lado do contribuinte de direito, que é quem repassa aos cofres públicos os valores devidos, faz-se presente o contribuinte de fato, que é efetivamente quem arca com os custos do tributo.
Desse modo, provado que a autarquia federal foi atingida em seu patrimônio por uma exação estadual, deu-se provimento ao recurso. O voto do relator foi seguido pelos demais julgadores, refletindo, assim, o que pode ser um possível redirecionamento jurisprudencial.