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Reflexão crítica sobre a jurisprudência favorável à obrigatoriedade da retransmissão da "Voz do Brasil"

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23/09/2008 às 00:00
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III. Análise crítica dos argumentos da jurisprudência

A seguir serão vistos os motivos invocados pela jurisprudência que entende pela obrigatoriedade da veiculção do programa oficial Voz do Brasil, ainda que em horário alternativo.

A apresentação a seguir não segue necessariamente a ordem dos fundamentos colocados anteriormente, pois o objetivo é demonstrar que a Constituição não tolera a imposição da retransmissão da Voz do Brasil sobre as emissoras de rádio privadas, razão pela qual não foi recepcionado o art. 38, letra "e", da Lei nº 4.117/62.

a)Preliminarmente: o Estado Democrático de Direito

Como já referido, a obrigação de veiculação do programa oficial de rádio nasceu no contexto de uma ditadura, isto é, um regime em favor do poder autoritário e contrário às liberdades fundamentais.

Hoje, no Brasil vigora o Estado Democrático de Direito, cuja nota característica é o regime de direitos fundamentais.

Assim, todo e qualquer poder político deve estar submetido ao Direito.

Não é a vontade dos ocupantes do poder que deve prevalecer, mas sim a intenção normativa presente na Constituição de 1988. Afinal, o Brasil é uma República. Logo, os poderes constituídos devem respeito à vontade maior do texto constitucional e não ao interesse ocasional do legislador de 1962.

A democracia assenta-se em dois princípios fundamentais: a soberania popular e a participação política. Também, a democracia está baseada em dois valores fundamentais: a liberdade e a igualdade.

Ora, o adequado funcionamento da democracia exige como condição operacional um sistema de opinião pública informada e racional.

A esfera pública há de contar, portanto, com procedimentos que permitam a participação da ampla maioria da população, de modo a permitir a expressão da pluralidade de interesses públicos.

Com a Constituição de 1988 houve a constitucionalização do sistema de comunicação social com a atribuição de um status especial dos respectivos meios técnicos de comunicação e um regime específico aos direitos fundamentais afetados pela atividade, representando um importante um avanço histórico.

A "Constituição da Comunicação" [24] requer, portanto, uma disciplina jurídica dos meios de comunicação social, a fim de desenvolver a sua estruturação policêntrica, para permitir a sua dinamização de forma autônoma, comunicativa e concorrencial do sistema social, como também a proteção à sua transparência e adaptabilidade.

Ou seja, diante do novo contexto constitucional, é fundamental a releitura do dever de retransmissão do programa radiofônico oficial de notícias dos três poderes da República.

O ex-Presidente da Radiobras Eugênio Bucci manifestou-se a respeito da impropriedade da compulsoriedade da Voz do Brasil nos seguintes termos:

"A imposição legal que obriga todas as emissoras de rádio a retransmitir a voz do Brasil é uma anomalia jurídicae um absurdo político. Não há o que justifique, dentro da normalidade institucional, a necessidade de uma cadeia compulsória de sessenta minutos, diariamente, para os poderes da República se comunicarem com a população. Num regime democrático, a figura da rede nacional de rádio requisitada pelo Estado pode eventualmente ocorrer, sem dúvida, mas sempre como exceção. No Brasil, é rotina. Não há sentido nessa rotina. [25]

E, segundo, o referido autor: "O governo deve privilegiar uma comunicação que não dependa da obrigatoriedade, uma comunicação ancorada apenas na qualidade e não objetividade da informação.. .". [26]

Partindo-se da premissa fundamental caracterizada pelo regime democrático é que a restrição legislativa representada pela imposição às rádios privadas de retransmiterem a Voz do Brasil deve ser interpretada.

b)Competência legislativa e seus limites

A CF estabelece a competência da União para explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os serviços de radiodifusão sonora (art. 21, XII, letra "a").

A CF afirma a competência privativa da União em legislar sobre radiodifusão (art. 22, IV).

Trata-se de suas regras de competências estatais.

Evidentemente que existem limites para o exercício dessas competências.

Dntre os limites, estão os direitos e liberdades fundamentais.

Portanto, de um lado, tem-se a competência estatal para regular e prestar os serviços de radiodifusão. De outro lado, tem-se o limite a essa competência representado pela liberdade de radiodifusão.

Há, enfim, um conflito potencial entre o poder normativo do legislativo e a liberdade de radiodifusão.

É inegável o poder regulatório do Estado, desempenhado mediante a imposição de deveres e gravames para os particulares. Contudo, até que ponto tal poder é aceitável?

Qual é o limite dessa competência?

A reposta a essa questão será oferecida mais à frente.

c)A noção de serviço público e a radiodifusão

Tanto a doutrina quanto a jurisprudência tradicional entendem que a radiodifusão é uma modalidade de serviço público.

Segundo a Lei nº 4.117/62, o serviço de radiodifusão é aquele "destinado a ser recebido direta e livremente pelo público em geral, compreeendendo a sonora e televisão" (art. 6º, "d").

Em sendo qualificado o serviço de rádio como serviço público, então a sua prestação por emissoras privadas somente é possível se elas possuírem uma concessão, permissão ou autorização.

Assim, o contrato de concessão, em regra, estabelece os direitos e os ônus entre as partes.

Note-se que tal contrato é atípico, pois a remuneração do concessionário não provém do poder público, mas sim das receitas do mercado publicitário.

Além disso, embora o serviço de rádio seja qualificado como serviço público, por óbvio, que isto não significa a ausência de limites para o Estado.

Nesse sentido, aqui o serviço público deve ser focado em uma concepção moderna e não mais na visão autoritária. Com efeito, o modelo tradicional vê o serviço público sob o ângulo exclusivo da titularidade estatal.

Atualmente, não é cabível a visão unilateral que privilegia somente o poder político. O serviço público deve ser visto como a atividade que serve justamente ao seu público, especificamente que realiza direitos fundamentais desse mesmo público. Afinal, ele é público, porque o público é seu destinatário e, conseqüência, também é seu titular. Esta nova roupagem é a mais compatível com a Constituição do Brasil de 1988 que implantou um novo ciclo histórico na sociedade e no ordenamento jurídico.

Vale dizer, muito embora o serviço de rádio seja qualificado com uma modalidade de serviço público isto não representa a ausência de direitos da parte da concessionária e limites ao poder concedente. Aqui, defende-se a prevalência da liberdade empresarial da concessionária em escolher retransmitir ou não a Voz do Brasil, ao invés da imposição autoritária.

A seguir a reflexão recairá sobre o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão.

d)Princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal

A CF consagrou, de modo originário, o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal (art. 223).

Eis o que ela dispõe:

"Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar, concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal".

Infelizmente, até o momento, a legislação não prestigiou dignamente o referido princípio constitucional. Igualmente, a doutrina não se debruçou sobre o preceito para oferecer luzes para a sua adequada interpretação. [27]

Aproveita-se, então, a oportunidade proporcionada por essa lacuna no campo do direito para se lançar alguns pontos de reflexão sobre seu alcance e sentido.

A Constituição impõe a complementaridade entre os setores de radiodifusão privado, público e estatal, o que, evidentemente, implica harmonia e colaboração entre as estruturas de comunicação social.

Em outras palavras, garante-se o equilíbrio apropriado entre os campos de comunicação social com funções diferenciadas, porém, complementares, haja vista as diferenças de fundamentos, evitando-se, assim, distorções arbitrárias no processo de comunicação social.

Trata-se de uma manifestação particular do princípio do pluralismo no campo da comunicação social por meio da radiodifusão em prol da estruturação policêntrica do sistema de radiodifusão, isto é, em favor da diversidade das fontes de informação e da multiplicidade de conteúdos sonoros para a sociedade brasileira.

Vale dizer, a interpretação da referida norma constitucional deve ser feita com base no princípio do pluralismo nos seus âmbitos quantitativo (pluralidade de estruturas organizacionais comunicativas) e qualitativo (pluralidade de conteúdo audiovisual diverso).

Assim deve ser porque tal norma tem por função a oferta equilibrada de programas de televisão nos setores privado, público e estatal, cabendo ao Estado a adoção de normas e procedimentos para cumprir tal tarefa, que logo a seguir serão expostos.

A organização dos sistemas de radiodifusão há de ser feita pelo Estado, no exercício de sua função regulatória (art. 174), conforme os objetivos da regulação. Há, aqui, uma forte conexão entre o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão e o conceito de regulação. A idéia de complementaridade representa a negação de uma relação de hierarquia entre os sistemas de radiodifusão; e, por conseqüência, requer a funcionalidade integrada dentro do sistema de comunicação social.

Enfim, o referido princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal é uma garantia da existência das seguintes estruturas:

(i)emissoras de rádio privadas – aquelas organizações sob a forma mercantil que, baseadas em sua liberdade de radiodifusão, exploram o serviço de rádio e buscam em contrapartida o lucro;

(ii)emissoras de rádio públicas – aquelas organizações sob a forma de organização civis que prestam o serviço de rádio, de modo a realizar, por exemplo, os direitos fundamentais à informação, à educação e à cultura;

(iii)emissoras de rádio estatais – aquelas entidades estatais, vinculadas à administração pública, que prestam o serviço de rádio, de modo a cumprir com seu dever de realização da comunicação institucional, para a divulgação dos atos e fatos relacionados aos três poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário), e que são custeadas com o orçamento estatal;

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Tais estruturas de comunicação possuem, como visto, fundamentos e finalidades diversas.

O núcleo da problemática reside em saber a legitimidade da imposição às emissoras de rádio privadas de uma obrigação que é propriamente do poder público.

Por que a União, se pretende divulgar as ações dos três poderes republicanos não se vale de suas estruturas comunicativas? Por que a própria União não cria meios de comunicação adequados ao atendimento dessa finalidade?

Se o Estado tem interesse em divulgar informações institucionais sobre atos e (ou) fatos de interesse público (ref. Executivo, Legislativo e Judiciário), então, ele deve estabelecer canais de comunicação com a população, sem impor tais deveres às rádios privadas, quer criando estações de rádio, quer promovendo a comunicação institucional junto à sociedade.

e)Qual (is) interesse (s) público (s) em jogo?

A dogmática de direito administrativo convive com o princípio da supremacia do interesse público. Freqüentemente, ele é invocado, seja pela doutrina, seja pelo judiciário, para justificar atos de restrição a direitos.

Ocorre que tal princípio deve sofrer uma releitura, afinal, vive-se em um Estado Democrático de Direito. Não é mais admissível uma leitura sob a ótica de um único interesse público envolvido.

Ao contrário, em uma sociedade plural como a brasileira nada mais razoável e legítimo do que a consideração dos múltiplos interesses em jogo.

O interesse público não se confunde com o interesse do Estado.

Como já referido, se o interesse da União é veicular o programa Voz do Brasil então deve fazê-lo, mediante a utilização de seus canais de comunicação.

Existem outros interesses que devem ser cotejados em face do interesse federal.

Primeiro, o interesse econômico das emissoras de rádio em utilizar parte do horário nobre de sua programação para a veiculação de publicidade comercial.

O Brasil, na CF de 1988, optou pelo sistema capitalista. Portanto, nada mais legítimo e razoável que as empresas de rádio busquem cobrir seus custos e recuperar seus investimentos pelo uso remunerado desse espaço valioso.

Segundo, o interesse dos cidadãos. Nas grandes cidades um dos piores problemas enfrentados no horário das 19 às 20 hs é o congestionamento no trânsito. Se pudesse optar o que será que o cidadão gostaria de ouvir: a Voz do Brasil ou informações sobre o trânsito?

Ou talvez o cidadão queira apenas se entreter durante esse período.

Por que então privá-lo de momentos de prazer ouvindo músicas?

Ou da possibilidade de contar com outros programas de notícias.

Terceiro, o interesse dos jornalistas em apresentar informações de relevante interesse público.

Ora, retirar uma hora em horário nobre da rádio é privar os jornalistas do seu trabalho. O dia-a-dia do profissional é coletar e divulgar informações para o público. Esta hora é por demais valiosa porque é a oportunidade que as pessoas têm de ouvir o rádio, após o expediente.

f)Liberdades fundamentais

A Constituição surge como uma arma de combate ao arbítrio estatal. É uma Carta protetora das liberdades.

Uma rápida leitura do seu primeiro capítulo revela um catálogo extenso de direitos e garantias fundamentais. Dentre esses direitos fundamentais encontra-se a proteção à liberdade em seus mais diversos âmbitos. Para os fins da presente reflexão, destaca-se a liberdade de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX).

Em outro lugar, a CF, de modo inovador, estabelece um capítulo próprio para a Comunicação Social, onde ela assegura, de modo amplo e generoso, a proteção à liberdade no sistema de comunicação social da seguinte forma:

"Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística".

Ou seja, há a proteção plena à manifestação e comunicação do pensamento, sob qualquer forma ou veículo de comunicação social. Esta liberdade serve não somente à pessoa que expressa suas idéias, opiniões e sentimentos. Também, o público destinatário da comunicação tem interesse em conhecer os pensamentos das demais pessoas.

Proíbe-se, categoricamente, que a lei "possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social", observados determinados direitos fundamentais.

Em outras palavras, o legislador está proibido de causar embaraços à plena liberdade de informação jornalística.

A única hipótese de autorização constitucional para a restrição à liberdade jornalística é quando se trata de proteção a outros direitos fundamentais, como é o caso do exercício da própria livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV), o direito de resposta quando atacada a honra ou imagem de alguém (art. 5º, V), o direito à intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5º, X), a liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, XIII) e a garantia a todos do acesso à informação, preservado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional (art. 5º, XIV).

Mas, não só!

Existem outras liberdades fundamentais gravemente atingidas pela imposição estatal.

Uma das vigas mestras do sistema econômico é a liberdade de empresa. Esta até pode ser condicionada pela lei, desde que evidentemente seja preservado seu núcleo essencial.

É certo que a entrada e a saída no setor de radiodifusão dependem de atos estatais.

No caso, a emissora de rádio para entrar no setor de radiodifusão teve que fazer pesados investimento, na compra de equipamentos e contratação de pessoal. Ressalte-se que seu faturamento depende, praticamente, de receitas publicitárias.

Por outro lado, embora a concessionária de serviço público de radiodifusão esteja submetida a um regime jurídico especial, isto não significa a ausência de limites para a imposição de gravames pelo poder concedente.

É que a estação de rádio é uma empresa de radiodifusão. Ela está amparada pela liberdade de radiodifusão, isto é, a liberdade de comunicar com seu público, valendo-se do uso de freqüências do espectro eletromagnético, um bem público naturalmente escasso.

A autonomia constitucional da liberdade de radiodifusão é definida a partir das liberdades de expressão e de comunicação social, sendo um dos alicerces da sociedade democrática aberta, mediante a garantia da difusão plural do poder e de uma esfera da livre iniciativa individual e coletiva como fator dinâmico dos vários sistemas de ação social [28].

A subjetivização da liberdade de radiodifusão representa uma das principais garantias de uma estrutura policêntrica dos meios de comunicação, ainda que os indivíduos não possam exercer diretamente a atividade de televisão. Quer dizer, ainda que seja reconhecido o direito fundamental à radiodifusão, mas cujo exercício encontra-se condicionado à esfera legal, isto não é fator que reduz a estrutura plural de comunicação [29].

Aqueles que negam a dimensão jurídico-subjetiva da liberdade de radiodifusão defendem a adoção de um modelo de pluralismo organizado pelo estado ou outro modelo caracterizado pela coletivização quase estatal do seu exercício [30].

A liberdade de radiodifusão constitui-se em direito fundamental. Sua dimensão negativa ou defensiva da liberdade revela-se em face de ingerências estatais, garantindo-se a sua independência em face do poder político. A finalidade é a de garantir a abertura publicística e econômica das estruturas de comunicação no âmbito da comunidade política [31]. Originariamente, tal dimensão exprime, portanto, a ausência de constrangimentos ou coerções indevidos por parte do poder público, mas hoje alcança também os poderes econômico e social.

Por outro lado, a dimensão positiva da liberdade de radiodifusão exige a devida conformação e concretização legislativa. Com isso, é preciso que ocorra a configuração material da atividade de radiodifusão, mediante o estabelecimento do complexo de normas materiais, organizatórias e procedimentais que estruturarão o serviço público de televisão [32].

A importância do sistema de radiodifusão para a garantia do processo de formação livre da opinião pública, foi assim retratada por Konrad Hesse:

"... no essencial, rádio e televisão – radiodifusão continuaram desenvolvendo para uma garantia jurídico-fundamental geral da liberdade de radiodifusão. Dela resulta, para rádio e televisão, a necessidade de providências especiais para a garantia do processo de formação de opinião ampla. Trata-se de proteger esses meios especialmente significativos da dominação e do exercício de influência estatal, de impedir o nascimento de poder de opinião predominante, assim como, de assegurar que na oferta do programa a multiplicidade das direções de opinião existentes encontre expressão em amplitude e integridade máxima possível e que, deste modo, seja oferecida informação ampla". [33]

A restrição legislativa exclui do âmbito da liberdade de radiodifusão uma hora diária, sete horas semanais e, em média 28 (vinte e oito horas) mensais.

Evidentemente, com a apontada imposição a empresa de comunicação deixa de obter o faturamento necessário para o custeio de suas despesas, especialmente por se tratar de horário nobre.

O Brasil adotou o modelo capitalista. Portanto, deve-se deixar a questão ideológica de lado e aceitar os fatos e o direito.

É preciso reconhecer que o Direito protege a liberdade de iniciativa, aliás, ela é reconhecida como fundamento da ordem econômica.

Um dos fundamentos utilizados pela jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais antes analisados consiste na concorrência, isto é, não seria possível liberalizar a veiculação da Voz do Brasil para uma determinada emissora porque isto implicaria em prejuízos à concorrência.

Ora, o argumento implica em uma inversão dos valores.

O problema é justamente a proibição geral de utilização do tempo de uma hora diária de todas as rádios brasileiras no período das 19 às 20 hs.

Por óbvio, que a medida nega a concorrência.

Assim o fazendo o ato acaba violando um dos princípios gerais da atividade econômica que consiste na livre concorrência (art. 170, V, CF).

Poder-se-ia argumentar que a garantia da livre concorrência é inaplicável ao caso porque se trata de serviço público. Ora, como se sabe, conforme definição majoritária no meio jurídico, o serviço público é uma espécie de atividade econômica em sentido amplo. A diferença básica entre o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito reside no regime jurídico, definido na Constituição.

Antigamente, não era possível aplicar o regime da concorrência sobre os serviços públicos. Atualmente, principalmente com a evolução tecnológica, já se admite o regime da concorrência em relação aos serviços públicos. Por exemplo, o setor de telecomunicações em que diversas empresas prestam os serviços de telefonia fixa e móvel em regime de competição. Outro exemplo é o setor de energia elétrica, fragmentado em diversas atividades como: geração, distribuição e transmissão, em que atuam diversas empresas.

O regime autoritário caracterizado pela imposição forçada da transmissão da Voz do Brasil deve ser substituído pelo regime da liberdade da radiodifusão.

g) Vedação à censura

A CF veda toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Censurar é impor o controle sobre conteúdo de um determinado veículo de comunicação ou determinadas pessoas. É restringir a capacidade de expressão de alguém, eis que seu exercício causa incômodo ao poder.

As razões que motivam o censor são de ordem política, ideológica e artística.

A censura representa um mal que deve ser combatido fortemente em um Estado Democrático de Direito, eis que ela exprime a violência sobre a consciência e, no passado, inclusive sobre o corpo das pessoas.

Ora, a supressão de uma hora da programação das emissoras de rádio em horário nobre, para fins de veiculação da Voz do Brasil, está muito próxima da censura. Trata-se de uma coação, ainda que amparada em lei, sobre a liberdade de radiodifusão.

A questão é saber se tal restrição legislativa, editada no ano de 1962, encontra amparo na Constituição do Brasil vigente.

Entendo que, ainda que a exigência legal não represente uma verdadeira censura (embora esteja muito próxima dela), o dever de retransmissão do programa Voz do Brasil não foi recepcionado pela CF.

Adiante outras razões para demonstrar o descabimento da referida exigência.

h)Restrições autorizadas pela Constituição Federal à Liberdade de Radiodifusão

Como já referido, a Constituição garante a plenitude da liberdade de informação jornalística. No próprio capítulo dedicado à Comunicação Social, a Carta Magna aponta os eventuais limites para a disciplina da liberdade jornalística.

Resta investigar se, em outros lugares, a Constituição Federal impõe limites para a restrição à liberdade jornalística no campo da radiodifusão.

Assim, ao analisarmos o capítulo destinado ao regramento dos partidos políticos, descobrimos que há a previsão do direito ao acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei (art. 17, §3º).

A lei, em execução à CF, impõe o horário eleitoral gratuito para as emissoras de rádio e de televisão.

Outra exceção à regra de intensa proteção à liberdade, é a hipótese da vigência de estado de sítio. Nesse caso, a CF autoriza a adoção de restrições relativas à prestação de informações, à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei (art. 139, III).

Uma leitura em sentido contrário permite concluir que, em pleno vigor do Estado Democrático de Direito, não tem cabimento impor restrições à liberdade de radiodifusão não autorizadas pelo texto constitucional.

i)Princípio da publicidade

Um fundamento invocado em um dos acórdãos acima citados consiste na limitação da liberdade de informação jornalística em razão do princípio da publicidade dos atos da administração pública.

De fato, um dos deveres fundamentais da administração pública é divulgar atos e fatos de interesse público para que a coletividade possa fiscalizar seu trabalho.

Contudo, cuida lembrar que o dever é imposto à administração pública.

Logo, é ela que tem a responsabilidade quanto à escolha dos veículos de comunicação para divulgar "atos, programas, obras, serviços e campanhas", de "caráter educativo, informativo ou de orientação social".

O legislador não pode valer-se das rádios privadas para o cumprimento de um dever que é imposto à administração pública.

Se o interesse é da administração pública então o legislador deve assegurar-lhe meios de comunicação adequados para o cumprimento do princípio da publicidade.

Ademais, o programa Voz do Brasil, além de divulgar notícias do Poder Executivo, tem como função a prestação de informações sobre os Poderes Legislativo e Judiciário.

Ora, a comunicação institucional dos poderes republicanos é legítima e necessária em um Estado Democrático.

Acontece que para ser legítima ela não pode ser imposta de Brasília para todas as cidades brasileiras.

Assim, se há para os três poderes da República o dever de realizar comunicação institucional então se faz necessário que eles utilizem os canais de comunicação estatais e não privados.

Diz-se, também, que o programa serve à transparência e ao controle da administração pública. Concorda-se quanto à transparência das atividades do poder público.

Mas, parece duvidoso afirmar que alguém com base nas notícias da Voz do Brasil irá controlar os atos da administração pública. Dificilmente isto acontecerá, salvo alguns casos isolados.

j)Pluralismo

A jurisprudência não analisou a controvérsia sob o ângulo do princípio do pluralismo.

Assim, a tarefa é expor os efeitos do referido princípio sobre o regime da Voz do Brasil.

A idéia de pluralidade está presente na Constituição.

Primeiro, em seu Preâmbulo quando a Carta Magna refere-se à sociedade pluralista.

Segundo, quando a CF estabelece como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito o pluralismo político.

Terceiro, na medida em que a Constituição prevê uma pluralidade de direitos e garantias fundamentais.

Quarto, quando ela veda a censura de natureza política, ideológica e artística revela um modo de garantir a pluralidade de idéias e opiniões, evitando-se um padrão único de expressão.

Quinto, na parte que trata da cultura e garante o acesso às suas respectivas fontes com a valorização e a difusão das manifestações culturais.

Sexto, especificamente na Comunicação Social no que pertine à proibição da configuração de monopólio e (ou) oligopólio.

A pluralidade está conexa à liberdade.Não há liberdade sem pluralidade. Não há pluralidade sem a garantia do exercício da liberdade.

Entendo que há um verdadeiro princípio jurídico da pluralidade, ainda que não formulado de modo expresso pela Constituição, muito menos desenvolvido pela doutrina.

O direito é plural, aliás, esta é sua natureza. Se não o fosse então não seria compatível com a sociedade pluralista.

Como já dito acima, o princípio do pluralismo tem que ser observado nos seus âmbitos quantitativo (pluralidade de estruturas organizacionais comunicativas) e qualitativo (pluralidade de conteúdos diversos).

O pluralismo é o princípio fundamental do sistema de comunicação social. Sua função é a de organizar o exercício da liberdade de comunicação social dos diversos atores sociais de modo harmônico, a fim de possibilitar a realização da dimensão subjetiva (personalidade) e da dimensão objetiva (institucional).

É da essência do pluralismo a percepção da multiplicidade das expressões individuais e coletivas existentes nos diversos âmbitos geográficos. Trata-se de fundamento e de limite dos poderes de intervenção estatal reguladora em cada um dos referidos planos. E, ainda, de uma exigência constitucional de estruturação do sistema de comunicação social de modo a permitir as comunicações entre os diversos níveis da sociedade brasileira.

Segundo Jonatas Machado, a raiz do princípio do princípio do pluralismo decorre do princípio democrático, manifestando-se não só no sistema político (enquanto garantia de expressão das diversas ideologias políticas da sociedade plural), mas em todos os subsistemas sociais. Tanto a pluralidade de vozes quanto a pluralidade de fontes de informação constituem as premissas regulatórias fundamentais. [34]

Na prática, a imposição autoritária da veiculação do programa Voz do Brasil implica no fato de que no horário das 19 às 20hs, de segunda a sexta-feira, todas as emissoras de rádio transmitam somente notícias de interesse oficial.

Com isto, impede-se a expressão de outras vozes, seja dos radialistas, seja dos cidadãos ou seja dos jornalistas.

Como pode um Estado que se intitula Estado Democrático de Direito impor sua vontade sobre a sociedade? Como este Estado pode silenciar a expressão das vozes plurais da sociedade?

Algo está errado.

Ao invés do regime da liberdade, tem-se um estatuto da opressão, ainda que legitimada pela lei, porém não pelo Direito.

Como se percebe, o princípio do pluralismo é um fundamento forte para a demonstração da não recepção da norma da Lei nº 4.117/62 que impõe a obrigatoriedade de retransmissão da Voz do Brasil.

k)Isonomia

As emissoras de rádio estão sujeitas à obrigatoriedade de veicular o programa Voz do Brasil, enquanto as de televisão estão desobrigadas, conforme a disposição legal.

Ora, a razão baseada no interesse público que justifica o dever para as rádios justifica, a meu ver, também para as televisões.

Se o programa de notícias dos três poderes republicanos é relevante para o interesse público, portanto deveria alcançar os dois tipos de serviços de radiodifusão: o rádio e a televisão.

Por que o ônus recaiu somente sobre o setor de rádio?

Não há justificação para tal discriminação.

A CF não faz a discriminação entre os serviços de radiodifusão sonora e o de sons e imagens.

Assim, o legislador não poderia ter feito tal discriminação injusta sem a adoção de um critério razoável.

Mais um motivo para o afastamento da obrigatoriedade do programa oficial.

l)Legalidade

Um dos argumentos utilizados em defesa da veiculação obrigatória foi no sentido de que o Judiciário não pode afastar a aplicação da lei.

Ora, como devido respeito, tal argumento não acompanha a evolução do Direito.

Atualmente, é inconcebível olhar uma lei sem a devida consideração da Constituição.

É inafastável a adoção de um filtro constitucional sobre as leis anteriores à CF de 1988.

O ato normativo em análise (Lei nº 4.117/62) é fruto de um determinado contexto histórico. Sua origem e sua fundamentação são derivadas de uma conjuntura específica do País.

Ora, com o advento da CF, originária de um outro momento baseado na redemocratização do Brasil, é fundamental a releitura das leis que lhe são anteriores, para verificar sua compatibilidade com o texto constitucional.

Nada mais natural do que o controle concreto da constitucionalidade das leis a ser desempenhado adequadamente pelo Judiciário.

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Sobre o autor
Ericson Meister Scorsim

Advogado e Consultor em Direito Público, com foco no Direito das Comunicações (Telecomunicações e Internet). Sócio Fundador do Escritório Meister Scorsim. Mestre em Direito pelo UFPR. Doutor em Direito pela USP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCORSIM, Ericson Meister. Reflexão crítica sobre a jurisprudência favorável à obrigatoriedade da retransmissão da "Voz do Brasil". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1910, 23 set. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11761. Acesso em: 10 mai. 2024.

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