É manifestação do princípio fundamental da separação dos Poderes a atribuição de polícia às Casas do Legislativo, a teor dos artigos 51, IV, e 52, XIII, da Constituição Federal. Deveras, conferir a prerrogativa de dispor sobre a polícia interna à Câmara e ao Senado mais se vincula a esse postulado do que a qualquer idéia sobre a preservação da ordem pública e da segurança das pessoas e do patrimônio, embora esses ideais não sejam relegados, evidentemente, ao esquecimento.
Não se imagina, e isso é claro no estágio democrático em que se encontra o Estado Brasileiro, que o Poder Legislativo não possa livremente dispor sobre sua organização interna e funcionamento e sobre suas atividades e poderes administrativos, inclusive os de polícia e de inquérito, que integram o postulado de sua autonomia administrativa e financeira.
Aqui está, por sinal, o ponto a bem elucidar: sendo a atividade persecutória de apuração das infrações penais tipicamente administrativa, poderá outro órgão que não a Casa Legislativa exercê-la no seu âmbito? Poderá, por exemplo, outra instituição decidir sobre o exato momento para se realizar uma perícia dentro do Plenário da Câmara em caso de crime lá praticado, tendo em vista as atividades do órgão? Poderá a Polícia Federal, enquanto titular da polícia judiciária da União (art. 144, § 1º, IV, da Constituição), a seu talante, ingressar nas dependências da Casa para efetuar prisões, executar mandados de busca e apreensão ou realizar escuta ambiental? Ou dependerá de decisão dos órgãos internos competentes?
Em verdade, atribuir tais prerrogativas à Polícia Federal, sob o pretexto de que é o órgão com atribuição exclusiva para apurar crimes praticados contra interesses da União, será o mesmo que imputar-lhe toda a gama de poderes administrativos para realizar medidas investigativas, dentro dos prédios da Câmara ou Senado, na maneira, na forma e no tempo que lhe aprouver, observados presumivelmente os parâmetros legais de caráter vinculado, como a da autorização judicial quando exigida.
O risco de arranhões à autonomia e independência da Câmara dos Deputados e do Senado Federal em tal hipótese é latente, posto que quem decidirá sobre todas as nuanças discricionárias da investigação será a Polícia Federal e não essas Casas do Congresso Nacional, podendo ensejar, sem dúvida, embaraços ou obstáculos ao exercício das prerrogativas parlamentares e às demais atividades a cargo deste órgão, como a de votação no Plenário e nas Comissões, a depender das medidas adotadas pela autoridade polícia federal.
Nessa linha de idéias, cremos que a atribuição da polícia judiciária da Polícia Federal há de ser vista, primordialmente, sob o aspecto de órgão de segurança pública, inserida que está no Título V, Capítulo III (Da Segurança Pública), da Carta Magna. Há que ser confiada à Câmara, a outro passo, essa atribuição, quando a averiguação do delito inserir-se no espectro de suas atribuições administrativas, como o exercício do poder de polícia e de inquérito, decorrente, primordialmente, do primado da independência e indelegabilidade dos Poderes (art. 2º, CF), e inserto no Título IV (Da Organização dos Poderes).
Aplica-se, desse modo, a técnica de ponderação dos interesses, tendo primazia, na hipótese vertente, o princípio democrático da independência e harmonia dos poderes, cláusula pétrea conforme inciso III, § 4º, art. 60, CF, em relação à competência de polícia judiciária exclusiva da Polícia Federal, de relevância para a segurança pública e a ordem social.
Outrossim, de se lembrar que, dentro dessa regra da separação e da harmonia entre os Poderes, vigoram instrumentos de freios e contrapesos (checks and balances), de tal sorte que não se pode imaginar que o poder de polícia judiciária da Polícia Federal – que é órgão vinculado ao Executivo – chegue a ser absoluto a ponto de permitir-lhe interferir sobre a rotina administrativa de outro Poder, que envolve, evidentemente, a instauração de inquéritos e o exercício das polícias administrativa e judiciária.
Por isso, aliás, é que se tornou usual mencionar que as funções administrativa, legislativa e judiciária não são exclusivas e privativas de cada um dos Poderes da República, sendo comum e legítima a sua distribuição, pela Constituição, a cada um deles, podendo-se falar apenas em exercício típico e preponderante por um ou outro órgão.
Assim é que ao Poder Executivo cabe, precipuamente, a função de apurar condutas criminosas e exercer a atividade de polícia judiciária, de cunho nitidamente administrativo, sendo, também por isso, o responsável por executar as políticas públicas de Segurança Pública, a teor do que prescreve o art. 144 da Carta Magna. Isso sem arranhar, obviamente, os poderes de polícia administrativa e de inquérito concedidos atípica e secundariamente aos órgãos do Legislativo e do Judiciário, consoante artigos 51, IV, 52, XIII e 93 e 96, I, "a", da Carta Política.
É, pois, nessa esfera de atuação do Poder Executivo que se inserem as atribuições, exclusivas na seara desse Poder, de polícia judiciária da Polícia Federal, nos termos preconizados no art. 144, § 1º, IV, da Constituição.
No ponto, também há de ser relembrado princípio comezinho de hermenêutica constitucional, que prescreve e defende a unidade da Constituição. Ora, o inciso IV do § 1º do art. 144 da Constituição não pode ser lido de maneira isolada, distante dos demais dispositivos da Carta Magna, no particular o art. 51, IV. É de ser interpretado em harmonia com os demais, de forma a evitar contradições e antinomias e a garantir a integridade do texto constitucional.
De resto, mencione-se que o Supremo Tribunal Federal já patenteou que o termo "polícia" utilizado nas diversas constituições brasileiras, ao descreverem as atribuições das Casas Legislativas, envolve não só a polícia administrativa, mas a de inquérito e apuração de infrações penais. Diz a Súmula nº 397 daquela Egrégia Corte que o "poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito". Assim, não há razões plausíveis para se alterar esse juízo se mantida, na Constituição de 1988, idêntica redação à da época em que editada a súmula.
Noutro norte, importante levantar, ad argumentandum tantum, atual entendimento doutrinário que classifica a atividade policial estatal em polícia administrativa, polícia judiciária e polícia investigativa.
Esta última concerne exatamente à atividade de apuração das infrações penais e sua autoria, sendo que a de polícia judiciária seria apenas a de auxílio ao juiz do processo, ou seja, apenas na fase processual/judicial, ou em casos excepcionais de diligências determinadas no inquérito, uma vez que a investigação preliminar é essencialmente administrativa.
Esse entendimento tem base constitucional e o condão de deixar para trás uma vetusta classificação binária das polícias que abrange tão-somente a polícia administrativa e a polícia judiciária.
Conforme incisos do § 1º do art. 144, as atribuições da Polícia Federal são bem divisadas e demarcadas, sendo certo que a de apurar infrações penais praticadas contra bens, serviços e interesses da União (inciso I) se distingue da de polícia judiciária (inciso IV). Não fossem distintas tais missões, não haveria por que colocá-las em tópicos diversos no dispositivo de que se fala.
É certo, também, com base nesse entendimento, que somente a atividade de auxílio e apoio ao Poder Judiciário na condução do processo, efetuando prisões, realizando perícias, conduzindo presos, entre outras, é que é exclusiva da Polícia Federal, e não a de apuração de infrações penais, o que abre espaço para a atuação investigativa, através do inquérito criminal, das polícias da Câmara e do Senado.
Igual distinção também se vê no § 4º do citado art. 144, quando estipula as competências das polícias civis de "polícia judiciária" e de "apuração de infrações penais", deixando patente, mais uma vez, que tais conceitos não se equivalem.
Justifica-se tal postura do legislador constituinte na manifesta intenção de garantir ampla atribuição aos órgãos públicos de apuração dos delitos administrativos e das infrações penais. Fala-se, inclusive, que a Constituição Federal de 1988 previu implicitamente um quarto poder dito fiscalizador, que envolve as atividades dos Tribunais de Contas e do Ministério Público, entre outros.
Nesse contexto, portanto, é que não se inquinam de nulas as provas da autoria e materialidade de crime descobertas quando o Tribunal de Contas investiga um dano ao patrimônio da União que possa também configurar conduta criminosa (art. 70, IV, CF). Nem tampouco quando o Ministério Público instaura inquérito civil para apurar lesão a interesses difusos (art. 129, III), que também configura delito federal. Nem, ainda, será inválida a instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar autoria e materialidade de certa conduta noticiada criminosa contra interesses da União, a teor do art. 58, § 3º, da Constituição. Nem, por fim, em tantas outras investigações previstas no texto constitucional, como inquérito criminal presidido pelo Poder Judiciário para investigar seus membros, inclusive por crimes federais (arts. 93, 96, I, "a"), ou uma investigação administrativa de órgãos federais destinada a apurar ato de improbidade administrativa que se revela também delito criminal (art. 37, § 4º).
Conclui-se, ante toda a gama de argumentação retro, fundada no próprio texto da Constituição da República Federativa do Brasil, que o poder de investigação quanto aos delitos penais praticados dentro das dependências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal é atribuído privativamente aos seus órgãos de polícia, definidos nos termos de sua legislação interna.