Imaginem a seguinte situação: A, servidor público, requer a incorporação de determinada parcela aos seus vencimentos, com base em lei infraconstitucional. Formado o processo, B, autoridade administrativa competente, formula consulta à Procuradoria Geral do Estado, visando obter parecer sobre o assunto, para que possa decidir. Em parecer bem elaborado, o Procurador do Estado, cumprindo o dever funcional, aponta, fundamentando, a sua inconstitucionalidade. De volta o processo à autoridade B, este, valendo-se do parecer, nega a incorporação pretendida, motivando o ato exatamente na inconstitucionalidade da lei.
É comum encontrarmos a situação jurídica narrada, ou seja: o Executivo, por meio de ato administrativo, suspendendo os efeitos de ato normativo, alegando tratar-se de lei possuidora de vício de constitucionalidade. Todavia, salvo melhor juízo, pensamos que a decisão de B, no exemplo dado, é desprovida de legalidade. O controle da constitucionalidade das leis ou é concentrado ou é difuso, todavia, sempre depende de pronunciamento da autoridade jurisdicional competente (concentrado: CF, art. 102, a; art. 103, § 2º, agora com as ações diretas de inconstitucionalidade e inconstitucionalidade, de acordo com a Emenda nº 3, de 18/03/93 - CF, art. 97; art. 102, III, a, b, c; CPC, arts. 480 a 482; RISTJ, arts. 199 e 200). Não é possível, pois, o Executivo arvorar-se no poder que é próprio do Judiciário, pela simples alegativa de inconstitucionalidade de ato nominativo (salvo, é claro, quando se tratar de seus próprios atos). Caso queira fazê-lo, que o faça quando do processo legislativo, seja abstendo-se de apresentar, seja vetando projetos de lei inconstitucionais (respectivamente: CF, art. 84, II; Constituição do Estado do Piauí, art. 102, X; e CF, art. 84, V; Constituição do Estado do Piauí, art. 102, XIV).
Com efeito, admitir-se o controle de constitucionalidade das leis pelo Executivo é, a um só tempo, perigoso e inconstitucional.
Perigoso para o bom funcionamento do organismo estatal, dada à prática dos nossos governantes, que reiteradamente rasgam a Constituição, ferindo direitos e garantias do cidadão. Inconstitucional, porque fere o princípio da tripartição dos poderes (CF, art. 2º). Sobre ser perigoso, restam-nos exemplos recentes das ilegalidades cometidas pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello, quando confiscou a poupança de milhões de pequenos poupadores; e no Piauí, em especial, dois casos: o do ex-governador Freitas Neto, quando extinguiu, por decreto, milhares de contratos de trabalho sem o respectivo pagamento dos salários; e, agora, do atual governador, Francisco de Moraes Sousa, o “Mão Santa”, que confisca e desapropria patrimônio dos agentes públicos, ao instituir o monstro jurídico que é o “empréstimo compulsório” incidente sobre a folha de pagamento.
Embora saibamos que é um dever do Procurador do Estado apontar possíveis inconstitucionalidades de atos que circulam no âmbito estadual (CF, art. 132; Constituição Estadual, art. 151, II, b), não comungamos da idéia da declaração incidental de inconstitucionalidade de ato normativo infraconstitucional pelo Executivo.
Em conclusão: entendemos que, no exemplo apresentado, A tem direito a incorporar a parcela pretendida, desde que não haja declaração, pelo Judiciário, da suspensão da eficácia da norma embasadora. De outro lado, achamos correta a posição do Procurador, que apontou o vício de constitucionalidade da norma. Por último, pensamos ser ilegal a decisão da autoridade administrativa B, que negou vigência a lei infraconstitucional. Caberia a B, caso pretendesse negar o pedido de A, enviar o parecer do Procurador ao Chefe do Executivo, para que este entrasse com Ação Direta de Inconstitucionalidade, ou provocasse a Advocacia Geral do Estado, para a interposição de ação declaratória negativa, visando, nos dois casos, a suspender a eficácia da norma.