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Caso Eloá. Uma tragédia de concepção

22/10/2008 às 00:00
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O trágico fim do seqüestro de Santo André/SP revela não um erro de conduta da polícia paulista no desenrolar da ocorrência; mas um erro de concepção na gestão deste tipo de crise.

É que dentro da estratégia utilizada para a gestão da crise – a de tentar preservar a vida do tomador de reféns (do seqüestrador) – a ação foi perfeita, tanto que ele saiu ileso, eis que só foi atingido com balas de borracha, mesmo após ter ferido as duas reféns e ter atirado contra os policiais que invadiram o apartamento. Invasão, esta, aliás, que, dentro desta maldita estratégia, era a última alternativa, visto que o propósito principal era negociar até o último instante, ainda que isto pudesse colocar, como efetivamente colocou, em risco a vida dos reféns, presas que eram de uma pessoa momentaneamente perturbada e, portanto, imprevisível. Por mais paradoxal que possa parecer, foi uma operação bem sucedida à luz da concepção na qual estava baseada – preservar a vida do seqüestrador. O problema é que o preço disto foi muito alto: uma refém morta e outra ferida no rosto.

Esta tragédia lembra uma outra, igualmente fruto da equivocada concepção de preservar a vida do tomador de reféns. Refiro-me ao episódio do seqüestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro.

Tanto em um, como em outro caso, a Polícia teve várias chances de matar o seqüestrador, em momentos de distração, em que o mesmo se colocou em linha de tiro (com uma dose de risco razoavelmente bem calculada em favor dos reféns), e simplesmente não quis. Neste caso de São Paulo ainda houve três noites, em que, evidentemente, em 100 horas de seqüestro, ele tem que ter dormido (nenhum ser humano agüentaria ficar acordado e atento tanto tempo!). Mas a Polícia, fiel à sua desgraçada concepção de gestão deste tipo de crise, não quis invadir, porque não era o objetivo matar o seqüestrador. Neste caso não foi nem a última opção, porque, como visto, ele saiu vivo, ileso, já que a invasão, postergada até o último momento, fora feita com balas de borracha. Ou seja: a Polícia deixou o desfecho do seqüestro ao bel talante do seqüestrador. E deu no que deu! Uma invasão tardia, meio que improvisada e, pior de tudo: inútil, absolutamente inútil!!

Volto ao paradoxo: apesar disto, a ação policial foi perfeita, dentro da estratégia em que foi concebida: o seqüestrador saiu ileso (no caso da tragédia do Rio, pelo menos, a ação policial não foi tão perfeita assim e o seqüestrador não chegou vivo ao hospital. Pelo menos isto! Convenhamos: este tipo de gente não pode sair viva de uma situação como esta! Não é pedagógico isto!).

Mas, pergunto: esta era a concepção correta de gestão deste tipo de crise? Preservar a vida do seqüestrador e arriscar a vida dos reféns é realmente o melhor a fazer? Parece-me óbvio ululante que não! Essas tragédias sinalizam para a urgente necessidade de mudança de concepção de gestão deste tipo de crise, como a seguir explico.

Não é possível que se assista mais, passivamente, à espera do seqüestrador se render, enquanto faz o que quer com seus reféns. É necessário que se mude urgentemente a concepção de gestão deste tipo de crise, que deve ser focada na invasão e na eliminação do seqüestrador. A negociação é até conveniente; mas desde que não seja a principal proposta de ação. A principal proposta de ação tem que ser a eliminação do seqüestrador, na primeira oportunidade que ele der para ser atingido, ou seja, na primeira vez em que ele aparecer na linha de tiro em condições de ser alvejado sem grande risco para os reféns. Digo sem grande risco porque risco para os reféns, de certa forma, sempre haverá. Mas é melhor correr o risco agindo com determinação, do que ficar assistindo passivamente as coisas se concretizarem, perdendo as melhores oportunidades de ação. Em resumo: deve ser aproveitada a primeira oportunidade que o seqüestrador der para ser eliminado sem oferecer maiores riscos para os reféns. Isto parece óbvio, não?!

O Estado – a Polícia, leia-se – tem que perder o pudor de matar o tomador de reféns numa situação como esta. Não interessa se é jovem, velho, rico, pobre, vingador, apaixonado. Nada disto interessa. O que realmente tem que interessar é a vida dos reféns, que não podem ficar à mercê de nenhum seqüestrador.

A negociação tem que ser encerrada à primeira oportunidade de eliminar o seqüestrador em segurança, segurança do ponto de vista dos reféns, logicamente. Somente a vida dos reféns é que interessa; não a do seqüestrador, que foi quem se colocou voluntariamente nesta situação e, portanto, está agindo por sua conta e risco. Basta que ele ceda às negociações e se entregue, que terá sua vida poupada. Porém, enquanto resiste à negociação, está legitimando qualquer ação do Estado tendente a eliminar sua vida, para preservar a vida dos reféns.

Esta deve ser a concepção de ação policial em crises como esta, para que tragédias assim não se repitam nunca mais.

Para tanto, é necessário deixar a hipocrisia de lado. Hipocrisia de parte da sociedade, de parte da Imprensa, de muitas entidades pseudo-defensoras dos Direitos Humanos (que, como o próprio nome sugere, são de todos, e não apenas dos criminosos, como deixam transparecer muitas dessas entidades), e de muitos operadores do Direito também. Neste ponto o Coronel que comandou a operação da PM paulista tem razão: se o seqüestrador fosse logo morto, muitas vozes histéricas surgiriam para criticar a Polícia, penalizadas pela jovem vida que se foi (sem se dar conta de que foi tarde, foi dando motivos para tanto, foi para salvar outras vidas também jovens, que não tinham nada a ver com a paranóia dele. Eram jovens inocentes que não podiam ter pago a conta desta hipocrisia!).

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O Estado não pode ter o pudor de matar tomador de reféns e cabe a todos nós apoiá-lo. E o primeiro apoio neste sentido deve vir do Ministério Público: cabe ao Promotor natural, aquele que irá apreciar a conduta dos agentes policiais envolvidos na operação, dar a eles a garantia de que eles sequer serão processados por cumprirem o seu dever e matarem o seqüestrador. Era o que eu faria, com muito prazer, aliás, e inenarrável dose de satisfação pessoal, caso fosse o Promotor natural num caso destes. Acho até que é disto que a Polícia precisa em situações assim: ser blindada, para que possa agir firmemente e fazer o que tem que ser feito, ainda que isto possa desagradar à parcela hipócrita a que me referi acima, a quem não se pode dar ouvidos, porque criticar é fácil, mas quem tem a responsabilidade de agir não pode se demitir desta responsabilidade com receio de qualquer tipo de crítica, quanto mais uma crítica histérica e hipócrita.

Não se trata de um simples ponto de vista, de uma simples postura ideológica; trata-se da mais superficial lição de Direito Penal relativa à excludente da ilicitude denominada "legítima defesa de terceiro". O Direito garante ao agente do Estado que matar o seqüestrador a plena licitude de sua conduta. Diria, aliás, que é um dever seu assim agir, para salvar a vida de inocentes que estejam subjugados pelo seqüestrador, vida dos quais, aliás, ele é agente garantidor.

Que se tire uma lição de mais este erro estratégico. Para que, da próxima vez, possamos comemorar a eliminação do seqüestrador...

... Ao invés de chorar a morte do(s) seqüestrado(s)!

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Sobre o autor
Marcelo Lessa Bastos

promotor de Justiça do Rio de Janeiro, mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos, doutorando pela Universidade Gama Filho, professor de Processo Penal da Faculdade de Direito de Campos (Centro Universitário Fluminense)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, Marcelo Lessa. Caso Eloá. Uma tragédia de concepção. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1939, 22 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11870. Acesso em: 22 nov. 2024.

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