A Constituição de um Estado revela certos comportamentos sociais que, valorados historicamente, estabelecem os fundamentos do existir comunitário. Assim, ela não pode ser tomada apenas como um sistema de normas jurídicas puras, que pretende regular a organização estatal, a forma de aquisição e exercício do poder e os direitos e garantias fundamentais. Deve, em vez disso, ser concebida estruturalmente como norma em conexão com a realidade social, a qual lhe dá conteúdo fático e sentido axiológico.
Nessa perspectiva, para que uma Carta Magna de caráter rígido, como a Constituição Federal de 1988, alcance os objetivos que lhe são confiados, é imprescindível a existência de mecanismos que possam modificar o sentido do seu texto. Através destes, é que ela poderá ser atualizada face às transformações da sociedade, porquanto, como observa José Afonso da Silva, não há constituição imutável diante da realidade social cambiante, pois não é ela apenas um instrumento de ordem, mas deverá sê-lo, também, de progresso social. [01]
Tais dispositivos são usualmente classificados em duas categorias: formais e informais. No primeiro grupo, incluem-se as emendas - processos legislativos regulamentados pela Constituição que revogam ou alteram parte do seu texto - e a revisão - também prevista legalmente, que facilita por um determinado período o procedimento de mudança e atualização das suas normas. É no segundo grupo, porém, que se encontra o objeto do presente estudo: a mutação constitucional.
A mutação constitucional pode ser entendida como o conjunto de alterações materiais em que, não obstante preserve o seu texto, as Constituições rígidas adquirem novos sentidos, significados e alcances. Desse modo, a mutação permite que o Direito acompanhe o dinamismo social, possibilitando-lhe um redimensionamento contínuo da sua realidade normativa. Cabe, todavia, investigar em que circunstâncias ocorre esse processo.
A doutrina oferece inúmeras classificações, apesar de não esgotar o rol de hipóteses que originam o fenômeno. Biscaretti di Ruffia, por exemplo, agrupa as mutações constitucionais em dois campos distintos: no primeiro estão aquelas ocasionadas pelos atos de órgãos estatais, com caráter normativo (leis, decretos, decisões judiciais etc.); no segundo estão as mudanças decorridas de fatos de natureza jurídica (isto é, regulados pelo direito), político-social ou de práticas constitucionais.
Seguindo a lição de Uadi Lammêgo Bulos, entretanto, optamos pela classificação das mutações constitucionais em quatro grupos: a) as mutações constitucionais operadas em virtude da interpretação constitucional, nas suas diversas modalidades e métodos; b) as mutações decorrentes das práticas constitucionais; c) as mutações constitucionais através de construção judicial; e d) as mutações constitucionais que contrariam a Constituição, é dizer, as mutações inconstitucionais. [02]
No primeiro grupo, temos que o emprego dos métodos hermenêuticos, especialmente os da chamada Nova Hermenêutica Constitucional, resulta na permanente obtenção de novos significados para os comandos originários dispostos no texto da Carta Magna. Dessa forma, desde que esta não seja desvirtuada, o processo interpretativo constitui um eficiente meio de adaptação dos dispositivos basilares do Estado às necessidades práticas do cotidiano.
No segundo grupo, partindo da premissa de que a Constituição é um organismo vivo, mutável e atualizável, em contato dialético com o meio que a circunda, somos autorizados a afirmar que os usos e costumes constitucionais podem alterar o sentido, o significado e o alcance das suas normas. Essas práticas podem, ainda, colmatar lacunas da Constituição, se preciso for, desde que, para isso, não violem as suas disposições originárias.
O terceiro grupo, por sua vez, vale-se do expediente norte-americano da construction, o qual designa a recomposição do direito aplicável pelos tribunais, com o propósito de suprir as imperfeições percebidas na Constituição. Nesse ínterim, a construção também adéqua a Carta Magna à realidade social, promovendo, mudanças no sentido, alcance e conteúdo dos seus preceitos, sem a necessidade dos mecanismos formais de emenda ou revisão.
A última categoria, entretanto, enseja uma reflexão acerca dos fatores que limitam a mutação constitucional. Apesar de Bulos sustentar ser impossível a determinação de tais limitações, por conta das peculiaridades do fenômeno [03], acreditamos serem elas as mesmas que se impõem ao poder de modificação formal da Constituição: as expressas e as tácitas.
Segundo Paulo Bonavides, as limitações expressas são aquelas que formalmente postas na Constituição, lhe conferem estabilidade ou tolhem a quebra de princípios básicos, cuja permanência ou preservação se busca assegurar, retirando-os do alcance do poder constituinte derivado. [04] Entre elas figuram as cláusulas pétreas do §4º do art. 60 da CF.
Quanto às limitações tácitas, Bonavides afirma serem aquelas que se referem à extensão da reforma, à modificação do processo mesmo de revisão e a uma eventual substituição do poder constituinte derivado pelo poder constituinte originário. [05]Sendo assim, a mutação que viole qualquer das espécies de limitações será considerada inconstitucional.
Diante do exposto, resta evidente a necessidade de constantes alterações no significado da Constituição, sob pena de esta não se adequar ao pensamento da sociedade que a legitima. Para tanto, não se pode depender unicamente de mecanismos morosos, como a emenda e a revisão, sendo necessário um instrumento que, quase espontaneamente, atualize o sentido e o alcance dos dispositivos da "Lex Legum". Reside aí, pois, a importância das mutações constitucionais, visto que, consoante ensinamento de Ferdinand Lassale, de nada servirá o que se escreve numa folha de papel, se não se justificar pelos fatores reais e efetivos do poder.
Notas
- SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p.42.
- BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 197.
- BULOS, Uadi Lammêgo. Op. cit. p. 197
- BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 198.
- BONAVIDES, Paulo. Op. cit. p. 202.