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O mundo do trabalho e a flexibilização

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29/10/2008 às 00:00
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RESUMO: O exame da história do direito do trabalho permite avaliar o papel que esse ramo do direito desempenha atualmente e as razões pelas quais o discurso da flexibilização implica retrocesso social injustificável, em um pais democrático e de direito como o Brasil. A necessidade de efetivação das normas constitucionais é urgente, sobretudo no âmbito dos direitos sociais trabalhistas, a fim de que o paradigma da solidariedade contamine as regras infraconstitucionais e as interpretações dominantes. O presente texto é um convite à reflexão acerca do papel do direito do trabalho no mundo do trabalho desse novo milênio e do compromisso que precisamos assumir diante do paradoxo que se estabelece entre a Constituição Federal de 1988 e o movimento de supressão ou mitigação de direitos fundamentais denominado flexibilização.


1. O Trabalho Humano na Era Moderna. Do Liberalismo Clássico à Era das Constituições.

A consciência da necessidade de proteger o trabalho como um direito é recente na história do homem [16]. É resultado, especialmente, do esgotamento do sistema. O capitalismo enfrenta uma grave crise na primeira metade do século vinte, fazendo com que a exclusão social que gera (e que é própria do sistema) seja colocada em discussão. O Estado assume o papel de ator social, devendo intervir de modo a minimizar as graves disparidades do modelo adotado [17].

O capitalismo traz em sua gênese o elemento de ruptura. Exacerba o individualismo, fazendo com que o homem negligencie sua dimensão plural. Entretanto, porque gera a exclusão, e parte do pressuposto da desigualdade entre os homens que trabalham e os que lucram, acaba por despertar o sentimento de identidade capaz de gerar a luta por mudanças, quando organiza fábricas [18], fazendo com que as pessoas trabalhem e morem sempre próximas, dividindo idênticas condições de sobrevivência. Assim é que o próprio sistema revela-se ambiente fértil aos movimentos operários, que ganham força inesperada [19] e acabam forçando a regulamentação de direitos mínimos para os trabalhadores.

Os direitos sociais surgem, pois, em meio aos direitos econômicos do estado liberal, mas se tornam maiores que eles, justamente porque o legitimam (não rompem com o modelo adotado) e, ao mesmo tempo, estabelecem seus limites (impedem a coisificação do homem). É justamente o senso comum (a pluralidade humana) que permite tenhamos noção da realidade (somos com o outro). Portanto, ao pretender excluir o senso comum, considerando apenas o homem e suas necessidades imediatas (reificando ou coisificando o homem-que-trabalha), o modelo liberal de organização humana acaba por determinar sua impossibilidade de sucesso, já que permite a subversão de valores fundamentais ao convívio social. Como o homem, por mais que pretenda, não sobrevive sem os outros [é essencialmente plural], não há saída satisfatória para um modelo de organização em que essa sua característica seja desconsiderada [20].

Impressiona o modo como o capitalismo vem sobrevivendo a esse paradoxo. Ao ser instaurado, o capitalismo trazido pelo liberalismo clássico contou com a força do Estado (sobretudo através das Leis) para se consolidar. Fortaleceu o Estado-legislador, tratando-o como aliado. Entretanto, o Estado é o viés plural da organização humana, enquanto o mercado alimenta-se do individualismo extremo. Portanto, enquanto serviu ao desenvolvimento econômico, o Estado garantidor de liberdades negativas foi uma opção interessante. O capitalismo, porém, teve a necessidade de procurar um remédio para seus efeitos. Por ser um sistema geneticamente excludente, que – ao mesmo tempo – necessita de consumidores, o capitalismo, para sobreviver como modelo econômico e social, necessitou de uma vacina que não atingisse a causa, mas apenas as conseqüências da doença. Nesse sentido, as idéias de Keynes, no sentido de que "não é a rigidez dos salários impulsionada pela ação sindical que provoca a queda na atividade econômica, mas sim a falta de demanda efetiva, que pode, inclusive, ser ocasionada pelos baixos salários" [21].

A implementação dos direitos sociais não decorreu, pois, de benesse das classes dominantes [22], mas da necessidade de superação da crise do sistema, aliada ao sentimento de solidariedade gerado pelos eventos sociais que, em realidade, são resultado do caráter excludente e díspare do próprio sistema. O Brasil é diretamente influenciado pelo contexto internacional [23] e, embora com um capitalismo ainda "tímido" [24], chamado capitalismo tardio ou retardatário, resolve seguir o exemplo de outros Estados, positivando normas de proteção dos direitos sociais [25]. Regras que, em âmbito mundial, eram resultado tanto das reivindicações dos trabalhadores organizados como também da necessidade reestruturação da economia pós-primeira guerra.

Enquanto fomenta a organização sindical, a segunda fase do capitalismo, caracterizada por um Estado hipertrofiado, acaba fragmentando a luta social [26]. Ao retirar da classe operária a responsabilidade por suas próprias conquistas e a necessidade de lutar pela superação da opressão gerada pelo sistema capitalista, o Estado-providência desagrega, individualiza os trabalhadores, fazendo com que passem a lutar cada um por si. Amortece a consciência de grupo que motivou a existência mesma dos entes coletivos, que são sua principal marca [27]. Confinado à base estatal, submetido à estrutura capitalista de organização social, o movimento sindical acaba por ser dividido em âmbito político (partidos) e industrial (sindicatos), dissociados de sorte a enfraquecer a força do movimento operário [28].

A fase do capitalismo organizado, superada a crise de estrangulamento do sistema, acaba cedendo espaço ao que os sociólogos denominam capitalismo desorganizado, em que "o predomínio do princípio do mercado [...] faz apelo ao princípio da comunidade [...] para obter a sua cumplicidade ideológica na legitimação da transferência dos serviços da providência social estatal para o sector privado não lucrativo." [29]

O capitalismo neoliberal reforça a dimensão plural do homem, mas o faz em seu favor, invertendo o discurso. Após desmantelar o movimento sindical, fragilizando as relações de trabalho de tal modo a compelir os trabalhadores a divergirem e lutarem entre si reforça (munido pelas possibilidades da tecnologia moderna) a noção de que houve uma libertação das capacidades humanas, capaz de engendrar um quadro social de auto-regulação, de cooperação. A falácia de que capital e trabalho agora são ‘parceiros’ vem subjacente à idéia de pseudo-cooperativismo e às várias formas anômalas de relação de trabalho que invadem o cenário da Justiça do Trabalho diuturnamente [30]. E o movimento sindical – máxima expressão da dimensão plural do homem que trabalha – atravessa uma crise aguda. Caracteriza-se, muitas vezes, como centro de renúncia de direitos dos trabalhadores, quando atua como negociador capaz de chancelar normas coletivas que simplesmente aniquilam conquistas trabalhistas [31].

É preciso, porém, compreender que essa crise não é isolada nem constitui mera conseqüência do esvaziamento da razão de ser dos movimentos sindicais. Hoje, mais do que nunca, há motivos para que os trabalhadores se organizem, unindo forças para reivindicar o resgate de direitos conquistados ou, pelo menos, a sua manutenção. Existem várias teorias e pouco consenso acerca do papel do trabalho e do direito do trabalho nesse novo milênio. Em realidade, as teorias não conseguem maquiar a realidade. Fala-se em quatro possíveis "tipos ideais explicativos do cenário de crise emprestado ao mundo do trabalho" [32].

O primeiro modelo seria aquele segundo o qual o trabalho continua a viger como categoria central da sociedade, "fator preponderante de integração social". Por conseqüência, sua precarização atingiria o cerne da proteção a essa condição humana de pluralidade, afetando o próprio sistema capitalista no qual se insere. No segundo modelo, o trabalho assume papel secundário. Cede espaço ao mercado, privilegiado como único modo de desenvolvimento social. Como terceiro modelo, está aquele que desloca o discurso para a dicotomia "incluídos vs excluídos", e em lugar de uma sociedade de classes, concebe uma "sociedade horizontal, em que a divisão se faz entre centro (participação) e periferia (exclusão)". A conseqüência seria a conclusão de que "os inempregáveis tornar-se-iam dispensáveis. Far-se-ia, então, necessário pensar uma nova lógica de inserção social, não limitada ao mercado de trabalho e ao seu tradicional veículo, o emprego, mas sim associada à idéia de ocupação" [33].

O quarto modelo aponta para uma sociedade "pós-trabalho", já que a produção econômica cresce, enquanto diminui a capacidade do mercado em criar novos postos de trabalho. De acordo com esse modelo, "estaríamos diante de uma crise da própria sociedade do trabalho", com a conseqüente "desaparição do trabalho como categoria fundamental" [34].

Não é difícil perceber vertentes dos quatro modelos nos discursos jurídicos atuais. Doutrina e jurisprudência oscilam entre a idéia de proteção ao trabalho como corolário lógico da noção de dignidade humana, a dissociação do conceito de trabalho daquele de condição de sobrevivência, ou ainda, a noção de livre mercado como modo de desenvolvimento econômico-social ao qual o trabalho deveria ser submetido. A linha de raciocínio, porém, irá contaminar o modo de compreender e aplicar os diversos institutos jurídicos desta seara do direito. E determinará o compromisso a ser assumido com a evolução dos direitos sociais traduzida pelas idéias de constitucionalismo e democracia real ou com a idéia de supremacia do mercado.

Mais do que isso, a compreensão do papel do trabalho no novo milênio implicará a adoção de uma postura diferenciada diante do que representa a concepção de dignidade humana e de valorização social do trabalho para um Estado Democrático de Direito. A conseqüência está em atribuir-se papel ativo ou passivo ao Estado e, bem assim, à Justiça do Trabalho.

Voltemos aos modelos antes elencados. O primeiro deles leva à concepção de que não houve uma mudança estrutural do conflito no mundo do trabalho. Não há paradigma a ser superado, pois a correlação de forças e a tensão entre capital x trabalho permanece inalterada [35]. A conseqüência – de resto verificada diuturnamente – é que "a crescente precarização do trabalho, tanto no âmbito sociológico como no jurídico, ensejaria um enfraquecimento da integração social, causando uma total desarticulação da solidariedade que lhe serve de fundamento" [36].

Os outros três modelos encontram óbice na realidade latente. É jocoso tratar o trabalho como expressão do tempo livre em um país cujo sistema econômico-social determina ao trabalho a função de meio de troca capaz de garantir a subsistência física. Do mesmo modo, não há sustentação prática para a afirmação de que a dicotomia capital x trabalho cede lugar à dicotomia excluídos x incluídos, quando os excluídos são frutos diretos do sistema econômico adotado. Tal sistema, por sua vez, é justamente centrado na relação capital x trabalho.

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Por fim, tratar o trabalho humano como categoria antropológica, superando sua condição de expressão do capitalismo [trabalho assalariado], pode emprestar uma visão ampliada ao conceito, mas em nada auxiliará a interpretação do discurso social, econômico e jurídico vigente. É indispensável termos a consciência de que o trabalho sobre o qual falamos é aquele contido no sistema vigente, que serve como meio de sobrevivência, a par de continuar a garantir a realização do ser humano, em sua dimensão plural.

1.2 O Discurso da Flexibilização como Panacéia para os Males do Século XXI.

O discurso da flexibilização parte justamente da idéia de que se está diante de uma nova etapa do direito do trabalho, na qual é necessário abandonar seu caráter protetivo. Tal premissa esconde em si a realidade de que um Estado ausente jamais ensejaria real coordenação de forças entre aqueles que detêm o capital e aqueles cuja única arma representa sua mão de obra [37].

As reformas propostas pelo governo federal revelam com nitidez essa tendência de supressão de direitos fundamentais. A fragmentação e a desregulamentação propostas como panacéia para os males da sociedade moderna, atribuindo ao homem que trabalha a culpa e a responsabilidade pelas distorções econômicas e sociais, traduzem a filosofia neoliberal. Declara-se, nas palavras de Zygmund Baumann, "guerra de atrito contra a ditadura política das necessidades" [38]. Por conseqüência, propugna-se a diminuição da interferência legislativa nas opções humanas [desregulamentação] como modo de aquisição de uma liberdade negativa, traduzida pela noção de estado mínimo. Logo, "aumenta, em vez de diminuir, a distância entre o ideal de democracia liberal e sua versão real, de fato existente". Deste modo, "com o Estado recusando sua responsabilidade pela segurança de todos e cada um, as leis do mais forte triunfam sobre os fracos" [39].

As negociações coletivas vêm chancelando a política de desmanche dos direitos sociais e de supremacia das forças do mercado [40]. A nítida impressão de que os movimentos sindicais perderam significado na atualidade repousa no fato de que as discussões entre as classes limitam-se muitas vezes a pequenas vitórias salariais. As condições e o ambiente de trabalho constituem questões negligenciadas, em razão do medo da perda da fonte de subsistência em que se transformou o emprego. Decorrência disso é que "a ação sindical solidária - e eficaz - em defesa dos injustamente demitidos parece cada vez mais um castelo no ar. ´´Flexibilidade´´ também significa a negação da segurança" [41].

Em outros termos, em lugar de resistir à fragilização de direitos fundamentais, o sindicato – importante expressão do caráter social do trabalho humano – chancela a autonomia do capital, agindo de modo autofágico. A conseqüência é a ampla possibilidade de coerção do trabalhador que supostamente resiste ao modelo imposto. É certo que a força individual de resistência não se compara à força coletiva. Entretanto, se não há resistência alguma em âmbito coletivo, passa-se a questionar as resistências individuais como anacrônicas [42]. Essa realidade legitima ou serve de suporte à idéia de que não há mais sentido na organização sindical e no caráter protecionista do direito do trabalho.

Soma-se a isso, a noção de cooperação ou co-gestão, que retorna à mesa de discussões como saída viável para a crise atual [43]. O modelo utilizado no pós-guerra europeu e que em realidade sublinhava a importância dos trabalhadores enquanto categoria (pluralidade) e tinha por base a necessidade de união para a superação da crise, é transportado agora para uma realidade histórica absolutamente diversa. Quando a própria Europa percebe a mudança de cenário e a necessidade de compreender a nova dimensão do trabalho humano, nós – países periféricos - pretendemos adotar um modo de resolução de conflitos que aguçará a crise de legitimidade / atuação da organização sindical.

Em âmbito mundial, a flexibilização vem sendo vivida como fator de fragilização das relações que sustentam o modelo econômico-social adotado. Tanto assim que a União Européia coloca a necessidade de inclusão no mundo do trabalho como um de seus objetivos centrais. Não rompe com a proposta de flexibilização, apresentada pelo Banco Mundial como única saída para o enfrentamento da crise atual. Propõe, porém, uma espécie de flex security ou seja, flexibilidade com segurança. O objetivo é tentar garantir um mínimo de dignidade social diante da realidade de insegurança gerada por contratos curtos e sem proteção social. As normas comunitárias promovem a ocupação (caráter positivo) e preocupam-se com a manutenção das condições de trabalho dos já incluídos (caráter passivo). Propugnam a criação de novos postos de trabalho, especialmente nos países eslavos, em desenvolvimento, e manutenção das condições de trabalho, especialmente nos países continentais (já desenvolvidos).

O Tratado que institui a União Européia, já em seu preâmbulo, deixa clara a idéia de um bloco comum tendo como pressuposto o "apego aos direitos sociais fundamentais, tal como definidos na Carta Social Européia, assinada em Turim, em 18 de Outubro de 1961, e na Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, de 1989". Por sua vez, o artigo 136 do Tratado que institui a Comunidade Européia, dispõe que a "Comunidade e os Estados-Membros, tendo presentes os direitos sociais fundamentais, tal como os enunciam a Carta Social Européia, assinada em Turim, em 18 de Outubro de 1961, e a Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, de 1989, têm por objetivos a promoção do emprego, a melhoria das condições de vida e de trabalho, de modo a permitir a sua harmonização, assegurando simultaneamente essa melhoria, uma protecção social adequada". Nesse dispositivo está estabelecida a proibição do retrocesso social [44].

Isso, porém, não impede reformas legislativas pontuais, com vistas à precarização do direito do trabalho, tais como as últimas alterações vividas na Itália. A Lei Biaggi, de 2003, constitui resultado de um Livro Branco editado pelo governo daquele país, do qual se extrai claramente a idéia de fortalecer a competitividade econômica, em detrimento das garantias sociais elementares. Tudo – no Brasil como na Europa – em nome da legítima preocupação com o alto grau de desocupação, a expressiva falta de emprego que não constitui apenas um problema atinente aos países ditos emergentes.

Na Itália, várias espécies de contrato foram criadas por recentes alterações legislativas, destacando-se as novas formas de contratação disciplinadas no Decreto-Lei 276/2003, denominadas "lavoro a chiamata", uma espécie de contrato em que o trabalhador permanece à disposição do empregador, que utiliza e remunera a sua mão-de-obra apenas quando tem necessidade, ou o "lavoro a progetto", pelo qual a existência de um projeto determina a autonomia do trabalhador. A Lei 30/2003 ainda substituiu a expressão então utilizada para a terceirização de serviços ("lavoro interinale") pela expressão "somministrazione di lavoro", disciplinando-a amplamente. Garante total isonomia entre os trabalhadores contratados diretamente e aqueles ditos "terceirizados". Criaram-se, ainda, os denominados "amortecedores sociais", ou seja, mecanismos de proteção estatal para os trabalhadores em caso de desocupação, que a doutrina italiana diferencia da não-ocupação [45]. Os "amortizadores" agem nas hipóteses de suspensão ou interrupção do contrato de trabalho [46].

A estratégia européia pela ocupação se define mediante quatro tópicos principais: occupabilità, ou seja, promoção de novos empregos, em especial do primeiro emprego para o jovem que está ingressando no mercado de trabalho; impreditorialità, caracterizada pelo fomento ao empreendedorismo; addatabilità, capacidade de adaptação do mercado de trabalho às regras de flexibilização, e pariopportunità, representada por iguais condições de acesso ao trabalho para os trabalhadores dos diferentes estados membros e de diferentes classes sociais [47].

A idéia de flex security, portanto, se resume na necessidade de criar tipologias contratuais que facilitem o ingresso no mercado de trabalho; criar regras mais flexíveis para os que já estão incluídos; investir na longa e progressiva melhoria da qualidade de vida profissional do trabalhador e manter sistemas de proteção social para quem perde o posto de trabalho. É uma tentativa de minimizar a brutal conseqüência de uma flexibilização, reconhecendo, com isso, seu caráter negativo.

Desse modo, a flexibilização das regras trabalhistas vem sendo proposta como a melhor forma de enfrentamento da crise por que passa a relação de trabalho [48]. De acordo com muitos autores, por consistir o deslocamento do Estado da posição de protagonista dos procedimentos regulares, deixando que tal posição seja ocupada pelos atores sociais (sindicatos, empresa), a flexibilização valoriza o direito coletivo, sem significar verdadeira desregulação [49].

Para avaliarmos a correção da tese segundo a qual devemos flexibilizar, interpretando ou suprimindo regras de modo a permitir o amplo desenvolvimento do mercado, precisamos examinar a veracidade da premissa que sustenta o discurso liberal.

1.3 A Crise é do direito do trabalho ou do Sistema Capitalista?

Uma crise se estabelece quando o paradigma, até então satisfatório, passa a não mais exercer sua função pacificadora. Já não serve. Em seu lugar, porém, nada há a ser colocado. A crise faz com que o novo seja construído a partir do que já foi apreendido, com a destruição e a reconstrução constantes [50]. Uma crise gerou a necessidade de intervenção estatal no período do denominado "Estado-providência". Agora, vivemos um novo momento de crise. Devemos, pois, identificá-la. Assim como a crise enfrentada na primeira metade do século vinte, as dificuldades que enfrentamos hoje são agravamentos das conseqüências próprias do sistema capitalista.

É impróprio falar em crise do direito do trabalho ou da própria noção de trabalho humano. A co-relação capital x trabalho mantém-se como pilar que sustenta o modelo capitalista vigente. Basta alçarmos os olhos para vermos que as relações que movimentam o desenvolvimento econômico continuam tendo por base uma pessoa que detém o capital e outra que presta o serviço, seja com que roupagem for.

A crise de paradigma reside no papel que se pretende emprestar ao trabalho assalariado no novo milênio. Vem, pois, de fora da relação capital x trabalho. Nem o trabalho, nem mesmo o capital, mudaram seu significado na estrutura social. O capitalismo é, desde a sua gênese, um sistema forjado para gerar o desemprego estrutural. Suas contradições constituem o motivo para um suposto novo modelo social, batizado de pós-modernidade, porém, desde sempre fizeram parte do modelo adotado. De acordo com Boaventura de Souza Santos, o capitalismo, desde a sua gênese, pode ser identificado por duas contradições que lhe são inerentes. A primeira delas, desenvolvida por Marx, é "simbolizada na taxa de exploração", "exprime o poder social e político do capital sobre o trabalho e também a tendência do capital para as crises de sobre-produção". Ou seja, ao criar necessidades inventadas, o capitalismo gera, necessariamente, produção além daquela necessária à subsistência.

A segunda contradição diz com as chamadas condições de produção. O capitalismo trata tudo como mercadoria, mesmo quando não se trata de um produto humano. Considera o homem e a natureza, por exemplo, como mercadorias. Assim agindo, o capital tem tendência a "destruir as suas próprias condições de produção sempre que, confrontando com uma crise de custos, procura reduzir estes últimos para sobreviver na concorrência". Isso porque o "capital tende a apropriar-se de modo auto-destrutivo, tanto da força de trabalho, como do espaço, da natureza, e do meio ambiente em geral." [51].

Está, pois, no cerne do sistema a criação de necessidades supérfluas e o desenvolvimento de meios e bens capazes de superar a necessidade de mão-de-obra disponível. Os "descartáveis" não surpreendem o sistema. São produtos dele. Logo, a crise que hoje enfrentamos não é uma crise do significado do trabalho assalariado. E, se a crise não esta em um dos elementos do sistema, se a relação capital x trabalho continua sendo o cerne do modo capitalista de organização econômica e social, temos de buscar a causa exógena para o que estamos vivemos atualmente [52].

Já dissemos que a era moderna traz consigo o novo modelo de organização social e econômica. A partir da Revolução Francesa, com a concentração das relações a partir da troca (moeda), instaura-se o liberalismo, inspirado no iluminismo, na idéia de que a razão e o processo constituem fontes para a descoberta de todas as certezas necessárias à vida [53].

O liberalismo é resultado da necessidade vigente à época, de romper com o regime feudal e consolidar o novo sistema. Para fortalecê-lo, era indispensável afastar o caráter intervencionista do Estado. Permitir ao Homem, agora alçado à condição de centro das relações humanas, a capacidade de auto-gestão, sem interferência estatal. Apenas assim as relações de troca – substancialmente individuais – poderiam progredir de modo satisfatório. Seus postulados são a propriedade como direito inalienável e a liberdade de contratação. E o capitalismo efetivamente progride, mas tem de lidar com suas idiossincrasias. A massa de excluídos pressiona o sistema. A exploração sem limites compromete a possibilidade de desenvolvimento (diretamente relacionada ao consumo). As grandes guerras demonstram a necessidade do outro, seja no âmbito da organização jurídica ou econômica, seja no âmbito social. Em função dessa crise, o Estado é chamado a intervir. Quando percebe que a cientificidade não é suficiente para conferir certeza a propósito do mundo que o cerca ou para garantir o sucesso do modelo adotado, o homem perde suas referências e passa a questionar tudo. O questionamento se aguça quando se percebe, diante das atrocidades da primeira metade do século XX, a capacidade humana de ignorar a existência do outro e, ao mesmo tempo, a incapacidade de ser sem o outro [54].

É essa dimensão plural que torna o homem consciente de que a satisfação de seus interesses particulares não é suficiente para garantir a excelência da vida na Terra. Tais interesses muitas vezes são contrapostos às necessidades da comunidade e a limitação daí decorrente permite que os homens não apenas convivam harmonicamente, mas garantam a sobrevivência desse espaço comum. Trocando em miúdos: para o indivíduo pode ser interessante perseguir a riqueza e a comodidade, mas essa riqueza (sob o ponto de vista da comunidade) não pode ser alcançada com o sacrifício de outros seres humanos, cujos direitos fundamentais também precisam ser respeitados. Essa perspectiva valoriza o homem, mas não como indivíduo (como ocorria no período liberal), e sim como sujeito da história, parte de um todo maior em que os demais seres humanos também têm relevância.

A percepção dessa necessidade de mudança de foco, do individualismo para o eu-coletivo, gera a necessidade de ruptura. A ‘derrota do individualismo’ descortina a possibilidade do novo. O direito social do trabalho – e especialmente sua qualificação como direito humano fundamental - é fruto desse período de redescoberta da dimensão plural do homem. Vivia-se uma séria crise, falava-se em "colapso iminente do capitalismo" [55]. Essa crise foi enfrentada justamente com a positivação de direitos sociais, que garantiram a continuidade do sistema, de um modo controlado, mais humano.

Hoje, fala-se em uma nova crise. O capitalismo está atingindo o ápice da sua capacidade de segregação. Não é mais possível conviver com o desemprego estrutural, porque o drama social daí derivado já atinge as esferas mais altas da sociedade, aquelas para as quais o capitalismo se afigura verdadeiramente um sistema adequado [56]. A saída para esse grave problema, porém, não pode ser a supressão ou a mitigação dos direitos trabalhistas, sob pena de imperdoável retrocesso. Desse modo, se atingiria o sistema – pois como já evidenciamos o direito do trabalho é um de seus frutos, tendo por missão, dentre outras, garantir – na medida do possível – sua perpetuidade como modelo econômico e social [57].

O desafio reside, portanto, em superar o paradoxo da vida moderna, atuando a partir do sistema posto. Sim, porque se pudéssemos desfazer os pilares do [neo] liberalismo econômico, engendrando uma sociedade em que a força do mercado não fosse devastadora, poderíamos sonhar com um direito do trabalho centrado na autonomia e na livre negociação. Porém, o sistema capitalista não o permite. E embora a crise atual reflita justamente a necessidade de superá-lo, não há como propor seriamente alternativas que partam da mera desconsideração do sistema vigente. Temos de atuar com a realidade.

O erro de avaliação daqueles que buscam na mitigação da proteção trabalhista a panacéia para os males do sistema pode ou não ser proposital. O certo é que não avalia com responsabilidade as conseqüências da escolha. A supressão ou mitigação de direitos sociais fundamentais em nada poderá auxiliar o sistema. Agravará seus efeitos colaterais, gerando – como já vem ocorrendo – uma massa ainda maior de excluídos.

A percepção de que a crise se instala em razão de causas exógenas [58] permite uma avaliação que desvie do foco. Apenas um olhar amplo permite tal conclusão. Se insistirmos em revisar o conceito de trabalho, de direito do trabalho ou de relação de trabalho, não enfrentaremos nem superaremos a crise. Antes disso, como já pontuamos, mesmo do ponto de vista do mercado, o ataque aos direitos trabalhistas fundamentais constitui um grave erro de estratégia. O mercado necessita de consumidores [59].

As necessidades criadas pelo homem não subsistem, se consumidas apenas por um reduzido número de privilegiados. O mercado precisa de trabalhadores bem remunerados e – sobretudo – com tempo suficiente para consumir. E trabalhadores bem remunerados, com tempo para consumir, pressupõem regras trabalhistas fortes e criteriosamente observadas. A desregulamentação apresentada sob uma roupagem pós-moderna e mal disfarçada no discurso de autonomia e cooperação, abre os flancos para a espoliação massiva dos trabalhadores que – diga-se de passagem – já se encontram à margem do sistema [60]. Esquece-se, portanto, do que a história recente já nos ensinou.

Em realidade, o liberalismo vivido hoje em nada se diferencia do liberalismo clássico [61], senão pela contingência de que o sistema se desenvolveu, aguçando cada vez mais as incoerências que lhe são ínsitas [62] e retrocedeu, ignorando a evolução representada pela positivação dos direitos sociais. Vale dizer, a exclusão social e a necessidade de privilegiar o mercado sempre foram fatores preponderantes no modelo capitalista de produção. O tempo de duração desse sistema aguça naturalmente tais características [63], levando ao colapso em que vivemos atualmente [64].

O retorno à (ou a insistência na) visão da liberdade como modo de proteção individual contra o Estado (própria do discurso liberal-individualista), sob o discurso enganador de que assim ´´capital´´ e ´´trabalho´´ poderiam equacionar livre e equilibradamente suas tensões, constitui, pois, retrocesso inaceitável. Zygmund Baumann observa que a ausência de proteção estatal impositiva teria efeito positivo se estivéssemos vivendo um momento de consolidação da democracia social. Se tivéssemos conseguido romper com o ideal racionalista e liberal, a ponto de compreender a dimensão humana da pluralidade, talvez pudéssemos prescindir das regras que "contaminam", por exemplo, as relações trabalhistas [65]. A necessidade de conferir tutela diferenciada aos direitos sociais passa, justamente, pelo resgate da função social garantidora do direito do trabalho, como instrumento a impedir a coisificação do homem, consolidando sua dignidade e seu papel de centro justificador de toda a organização política e econômica. Ou seja, passa pela simples aplicação do texto constitucional vigente.

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Sobre a autora
Valdete Souto Severo

Juíza do Trabalho em Porto Alegre (RS). Especialista em Direito Processual Civil pela UNISINOS. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela UNISC. Master in Diritto del Lavoro e della Sicurezza Sociale presso la Università Europea di Roma. Especialista em Direito do Trabalho pela UDELAR – Universidade do Uruguai. Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS. Doutoranda em Direito do Trabalho na USP/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEVERO, Valdete Souto. O mundo do trabalho e a flexibilização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1946, 29 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11903. Acesso em: 18 abr. 2024.

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