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O mundo do trabalho e a flexibilização

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29/10/2008 às 00:00
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2. A Constituição como elemento de consolidação dos direitos fundamentais sociais.

assume importância vital, porque representa esse espectro social. Mesmo a "solidariedade negativa" determinada pela consciência da possibilidade da destruição global (seja por armas atômicas, seja pelo mau uso do ambiente) gera uma noção de responsabilidade política que dela não pode ser dissociada [78].

Note-se que à época do liberalismo clássico, a dignidade humana não era o tema central. Antes disso, partia-se do pressuposto da necessidade de proteção do indivíduo contra o Estado. Um Estado mínimo que permitisse ao homem, individualmente considerado, o desenvolvimento de suas potencialidades individuais [79]. O terror vivido na primeira metade do século passado faz com que a liberdade passe a ser vista como um meio para garantir o processo democrático de formação da vontade política [80]. Adquire importância a diferença entre direitos sociais e patrimoniais [81].

A mudança na visão dos direitos sociais [82] é resultado da crise sobre a qual antes falamos. São as duas grandes guerras mundiais, em especial a segunda, aliadas às descobertas científicas e ao estrangulamento do sistema capitalista, que fazem com que o homem perceba que além da sua importância como indivíduo, existe sua necessidade de viver (bem) em grupo. Uma percepção que é ditada pela crise econômica enfrentada nesse período e que determinou uma mudança de postura "diante do mercado". Para isso, a proteção aos direitos sociais foi percebida como condição de possibilidade de uma organização política e social saudável.

É nesse contexto que surge a noção jurídica de dignidade humana. Em estudo aprofundado sobre seu conteúdo, Ingo Wolfgang Sarlet menciona que ela se caracteriza como a "qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade" [83]. Em razão disso, afigura-se inadmissível a coisificação do homem, a sua utilização como mero instrumento para a obtenção de lucro. E o móvel capaz de sustentar a aplicação desse conceito jurídico de dignidade humana, que figura como centro dos direitos sociais agora vistos como direitos humanos fundamentais, é caracterizado pelas constituições dos Estados. O denominado paradigma da democracia constitucional se estabelece a partir da premissa de que o texto constitucional é o valor fundante de determinado momento histórico-social [84] capaz de legitimar a idéia de dignidade humana.

Assim, a Constituição passa a ser o pacto que justifica e impõe limites à ordem consolidada, constituindo verdadeira metáfora da democracia substancial, na medida em que se sustenta sob a doutrina de direitos considerados fundamentais à organização humana, cuja violação implica a ruptura mesma desse pacto social, legitimando o exercício de um direito de resistência [85].

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 é marcada pela idéia de supremacia dos direitos fundamentais e de sua intangibilidade, porque é fruto (tardio) desse período histórico. Já em seu artigo primeiro, nossa carta social refere que o Brasil constitui um Estado Democrático de Direito, tendo entre seus fundamentos "a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa". Marca, portanto, a passagem da concepção jurídica racionalista, para a visão do homem sob a ótica de sua relação com seus pares, ou seja, em sua dimensão plural. Nesse sentido, o novo pacto social inverte a lógica do raciocínio individualista [86], rompendo com o paradigma liberal.

A adoção da solidariedade, da justiça, da valorização do trabalho e da dignidade humana como parâmetro do ordenamento jurídico determina que as regras sejam examinadas sob a ótica da coletividade, sem que se perca de vista o ser humano. Essas disposições constitucionais apenas positivam uma qualidade intrínseca à pessoa humana, que, por isso mesmo, não pode ser ‘concedida’ pelo ordenamento jurídico [87]. A dignidade humana assume função de critério para a construção do conceito de direitos fundamentais [88], e de aferição da incidência de uma proibição de retrocesso [89], que é o que particularmente nos interessa quando tratamos do fenômeno da flexibilização no mundo do trabalho [90].

O trabalho como condição inerente à vida humana constitui expressão dessa nova realidade [91]. As regras trabalhistas, sobretudo aquelas decorrentes das normas contidas no artigo 7º da Constituição Federal, se coadunam com a conceituação de direitos fundamentais sociais. É exatamente por isso que o valor-trabalho é elevado ao status de princípio fundamental do nosso Estado Democrático de Direito e precisa ser visto sob nova dimensão [92].

2.1. Proibição do Retrocesso: Condição de Possibilidade do Direito Fundamental do Trabalho incompatível com a Flexibilização.

Para compreender a noção de proibição de retrocesso em termos de hermenêutica constitucional precisamos, primeiro, entender o que a Constituição Federal de 1988 significa em nosso contexto dogmático-positivista. Em realidade, o que o constitucionalismo, e o garantismo que lhe é inerente, pretendem assegurar é uma nova visão do direito. Uma visão a partir dos direitos fundamentais. Uma visão contaminada pela idéia de que existe um núcleo essencial de direitos que constitui a base sem a qual não há falar em sociedade democraticamente organizada.

Precisamos entender que já superamos a necessidade histórica de consolidação da ordem posta (ideal dos revolucionários burgueses). Passamos por um período negro da história mundial, em que o Homem revelou todo o seu potencial perverso (‘horror nazista’) e finalmente vimos surgir a necessidade de consolidação da democracia econômica e social como garantia da intangibilidade da dignidade humana. Pois bem. A democracia social e econômica [substancial] traz em sua gênese a proibição de retrocesso social [93].

A noção de retrocesso é também decorrência direta da superação do terror vivido durante os governos totalitários que se multiplicaram pelo mundo na primeira metade do Século XX [94]. É a difusão da idéia de que a dimensão plural do homem deve ser garantida mesmo à custa da noção humana individual de necessidade de sobrevivência ou de busca de satisfação imediata. Com essa pré-compreensão de nossas necessidades históricas, forja-se a doutrina da proibição do retrocesso social, de sorte a impedir o retorno à racionalidade pela qual o homem podia ser visto como meio para o atingimento de um resultado desejado.

A partir disso, a doutrina constitucional constrói a idéia de "núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana" [95]. A proibição do retrocesso gravita justamente em torno desse núcleo essencial, de sorte a justificar "a sanção de inconstitucionalidade relativamente a normas manifestamente aniquiladoras da chamada justiça social" [96], protegendo a humanidade contra um possível retorno à barbárie vivenciada em períodos históricos pretéritos.

É justamente porque ainda estamos comprometidos com o individualismo que marca o início da era moderna (e que é um dos pressupostos paradoxais do sistema capitalista), que necessitamos da proibição de retrocesso. As conseqüências legais da lógica neoliberal demonstram isso [97]. Ainda não há um ambiente capaz de dispensar a proteção estatal, deixando ao livre arbítrio dos particulares a consolidação dos valores que a Constituição Federal de 1988 instaura. Daí a necessidade de compreendermos os direitos trabalhistas fundamentais como direitos indisponíveis, irrenunciáveis e passíveis de ampla proteção estatal, de sorte que as normas infraconstitucionais devam buscar sua máxima eficácia. Daí a necessidade de refutarmos, com todas as nossas forças, a idéia de que o mercado deve sobreviver à custa dos homens, por meio da flexibilização das normas.

O Poder Judiciário Trabalhista tem função especial no que tange à proibição de retrocesso social das normas constitucionais trabalhistas [98], devendo consolidá-las, outorgando-lhes máxima eficácia. O movimento pendular próprio da História deve sempre avançar. Por isso, em lugar de um Estado-providência, vivemos a tentativa de consolidar um Estado Constitucional, que se fundamenta no homem como cidadão, tendo, pois, duplo suporte, formado por "soberania popular e dignidade humana" [99]. Esse duplo fundamento justifica não apenas a existência de normas fundamentais de natureza trabalhista (na medida em que não negligencia o fato objetivo de que o trabalhador está em situação de hipossuficiência em relação a quem detém o capital), como também o preceito da proibição de retrocesso social.

Pela idéia de proibição do retrocesso social tem-se, pois, que eventuais medidas supressivas ou restritivas de direitos ou prestações sociais implementadas pelo legislador devem ser examinadas com máxima cautela, de sorte a que sejam consideradas incompatíveis com a ordem constitucional sempre que atingirem o núcleo essencial legislativamente concretizado dos direitos fundamentais. Aqui reside a incompatibilidade dos princípios constitucionais que adotamos em 1988 com a idéia de desregulamentação ou flexibilização de normas que encerram direitos sociais.

No âmbito do direito do trabalho, a compreensão dessa realidade, somada a tudo o que já foi dito até aqui, faz com que melhor compreendamos a necessidade de reafirmar os direitos trabalhistas fundamentais – e não de mitigá-los.

Aderir à idéia de flexibilização como um modo de "atenuação da rigidez protetiva do direito do trabalho, com a adoção de condições trabalhistas menos favoráveis do que as previstas em lei, mediante negociação coletiva, em que a perda de vantagens econômicas poderá ser compensada pela instituição de outros benefícios, de cunho social, que não onerarão excessivamente a empresa, nos períodos de crise econômica e transformação na realidade produtiva", como define Ives Gandra Martins Filho, citado por João Marcos Castilho Moratto [100], é equívoco que compromete a própria subsistência do modelo social e econômico que adotamos.

A noção de que a proteção aos direitos fundamentais é condição de possibilidade da democracia real, modelo político que se adapta, inclusive, ao modo capitalista de produção vigente, é essencial para que a crise vivida pelo estrangulamento desse sistema possa ser enfrentada (com ou sem êxito). E em nossa realidade atual, devemos perceber – como nos demonstra a história recente – que a idéia individualista de livre negociação como forma de incentivo ao desenvolvimento do mercado (agora globalizado) não resolve nossas mazelas [101].

Em claras palavras: não teremos desenvolvimento econômico satisfativo em um país emergente como o Brasil, suprimindo ou flexibilizando regras trabalhistas. Teremos desenvolvimento apenas se garantirmos um mínimo de direitos sociais fundamentais, a partir dos quais é possível falar em condições dignas de sobrevivência, de contratação e de desenvolvimento.

A flexibilização é, portanto, expressão da idéia neoliberal de retorno ao período de livre negociação, de supremacia das vontades individuais. Um revigoração do liberalismo clássico, cujo esgotamento, como tivemos a oportunidade de examinar, ocorreu em função de elementos históricos, mas também de fatores econômicos. O capitalismo liberal não resistiu à sua própria fúria e recuou, nos anos 30, para sobreviver readequando-se. Agora, o capitalismo regride, esquecendo-se do que aprendeu com os erros do passado [102].

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O pêndulo da história deve considerar o passado, para avançar. É inaceitável o puro e simples retrocesso, como pretende a lógica neoliberal, com o desmanche de uma estrutura de direitos fundamentais gestada com dor e sofrimento, a partir da experiência vivida na segunda metade do século XX.

O que foi até aqui escrito revela a incompatibilidade das idéias ditas flexibilizadoras com o direito do trabalho. Ainda assim, por considerarem uma força difícil de ser contida, muitos autores, conquanto façam crítica a essa lógica de retorno à autonomia das vontades, aceitam a flexibilização, propugnando sejam estabelecidos limites para a sua consolidação [103]. Buscam a proteção de um núcleo essencial de direito.

O problema é que a flexibilização em si implica a destruição dessa estrutura rígida de direitos fundamentais protegidos por uma lógica de proibição do retrocesso. A idéia de que é possível flexibilizar, preservando um núcleo essencial de direitos, é uma utopia, porque, como veremos a seguir, a flexibilização atinge diretamente esse núcleo, justamente onde estão localizados os pilares do direito social do trabalho.


3. As Conseqüências da Flexibilização no Mundo do Trabalho e seus Limites (possíveis?).

A Súmula afirma que o fato de a Constituição Federal garantir o "reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho" [111] implica afastar a regra do artigo 60 da CLT. Esquece, propositadamente, que o mesmo dispositivo que garante o reconhecimento das convenções e acordos coletivos, garante também "redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança" [112], concebendo regra fundamental da qual o artigo 60 da CLT é expressão de eficácia. Nesse sentido, inclusive, foi aprovado enunciado apresentado em encontro promovido recentemente pelo próprio TST, segundo o qual é plenamente válido e eficaz o artigo 60 da CLT, porque totalmente afinado com os preceitos constitucionais. A conclusão de que autorizar a compensação de jornada significa derrogar todos os dispositivos que determinam limites ou condições para o exercício do direito à prorrogação da jornada mediante compensação é absurda. Admitindo-se tal raciocínio, teríamos de entender derrogada, inclusive, a regra que impede a prorrogação de horário para o trabalho exercido por menor ou nas situações de contrato a tempo parcial. A flexibilização, aqui, é utilizada para suprimir [113] (por via inadequada) texto de Lei plenamente vigente, totalmente consentâneo com os ditames constitucionais, e garantidor de direito fundamental social. E o mais grave é que o agente a propiciar esse verdadeiro ataque à Constituição Federal é o próprio Poder Judiciário trabalhista.

A possibilidade de pactuar regime de compensação de jornada – que já existia desde 1943 – é plenamente compatível com a necessidade de um cuidado maior para as hipóteses em que a saúde do trabalhador pode ser colocada em risco pelo trabalho excessivo. Como já salientamos, a proteção à saúde do trabalhador constitui norma fundamental, explicitada tanto no artigo sexto da Constituição Federal [114], quanto no artigo sétimo [115]. O artigo 60 da CLT é exemplo de norma que visa a reduzir os riscos inerentes ao trabalho, protegendo diretamente a saúde do trabalhador exposto à condição danosa. Nesse sentido, Maurício Godinho Delgado alerta que do mesmo modo que a ampliação da jornada "acentua drasticamente as probabilidades de ocorrência de doenças profissionais ou acidentes de trabalho, a redução da jornada diminui, de maneira significativa, essas probabilidades da chamada ‘infortunística do trabalho´" [116].

Castilho Morato também se posiciona em modo contrário ao entendimento do TST, ressaltando que a previsão da Súmula 349 constitui "afronta à saúde do empregado". Salienta que a exposição do trabalhador por maior espaço de tempo a condições insalubres "fere os princípios protetivos à sua saúde, devendo ser mantidos os estreitos limites legais para negociação quando se refere ao bem-estar físico do empregado" [117].

Convém lembrar que se na prática a exigência da CLT inviabilizava a prestação de serviço extraordinário, é porque era exatamente esse o escopo da norma. Não podemos, pois, perder a noção de que o trabalho extraordinário deve ser como tal considerado, ou seja, como circunstância excepcional. Não podemos, também, olvidar o fato de que tanto a carta constitucional quanto a CLT preconizam a necessidade de que o empregador envide esforços para suprimir a situação insalubre de trabalho, mantendo um ambiente adequado.

Soma-se ao argumento constitucional, o fato de que o Brasil é signatário da Convenção 155 da OIT [118], em cujo texto se explicita a necessidade de "por em prática e reexaminar periodicamente uma política nacional coerente em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho" [119]. O artigo nono da aludida Convenção 155 da OIT refere que o "controle da aplicação das leis e dos regulamentos relativos à segurança, à higiene e ao meio ambiente de trabalho deverá estar assegurado por um sistema de inspeção das leis ou dos regulamentos", emprestando evidente força a normas como aquela contida no artigo 60 da CLT. Do mesmo modo, a Convenção 81 da OIT [120] disciplina que os Estados têm obrigação de manter um "Sistema de Inspeção do Trabalho constituído por servidores públicos, em número suficiente, com garantia de emprego e independentes, recrutados por suas qualificações e adequadamente treinados, para inspecionar a indústria e o comércio, com as funções principais de: Garantir o cumprimento dos dispositivos legais referentes às condições de trabalho e proteção dos trabalhadores".

Assim, as dificuldades práticas traduzidas na demora em obter o certificado do Ministério do Trabalho ou na insuficiência de fiscais, não justificam a derrogação tácita, por manifesta omissão e conivência da jurisprudência dominante, de dispositivo que busca conferir eficácia aos princípios da proteção à saúde e à dignidade do homem que trabalha.

3.2 O artigo 62 da CLT

Embora incompatível com o texto constitucional, esse dispositivo é amplamente utilizado.Trata de empregados que "exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho". Ou seja, não é de qualquer atividade externa que ali se cogita, mas apenas daquelas insuscetíveis de serem controladas pelo empregador. Tratando-se de dispositivo que limita direito fundamental, caso considerado constitucional, deve ser interpretado restritivamente, sob pena de inversão dos princípios que informam o direito do trabalho. Apesar dessa simples constatação, decisões recentes revelam grande tendência à aplicação ampliada desse dispositivo, para o efeito de autorizar a ausência de controle da jornada, mesmo quando é viável, ao empregador, exercê-la. Também aqui é o exame do artigo 7º da Constituição Federal que traz a medida da interpretação do dispositivo. No texto constitucional, não há exclusão alguma acerca do direito à percepção do adicional de horas extras. A nova ordem constitucional é, pois, incompatível com as disposições do artigo 62 da CLT, que simplesmente nega o direito constitucional às horas extras, àqueles que supostamente trabalham sem controle de horário. Tal raciocínio equivale à idéia de que a Constituição Federal poderia não ser aplicada a determinados trabalhadores. Ou seja, inverte de modo absoluto a lógica do constitucionalismo que justifica nossa organização social como estado democrático e de direito.

Ainda que assim não se entenda, os requisitos do artigo 62 da CLT devem ser cabalmente demonstrados, para que se possa falar em dispensa do registro da jornada. Impõe-se uma interpretação restritiva, de modo a concluir que os trabalhadores insertos nas hipóteses nele referidas "não são abrangidos" pelo capítulo da jornada, mas, uma vez submetidos a trabalho extraordinário, têm direito ao pagamento do adicional de horas extras, porque expressamente garantido pelo artigo 7º da Constituição Federal, sem exceção alguma. Por fim, temos de compreender nos termos do artigo 62 apenas os trabalhadores que realizam, por exemplo, atividade externa efetivamente "incompatível com o controle de horário". Esse é o texto expresso no dispositivo consolidado. Portanto, não basta que as tarefas sejam realizadas fora da sede da empresa. É indispensável que o empregador demonstre, no caso concreto, que a jornada não poderia, mesmo que as partes quisessem, ser controlada de modo eficaz.

3.3 A alteração introduzida pela Lei 9.601-98 acerca do chamado "Banco de Horas".

Trata-se de outro belo exemplo de que é difícil preservar quando se pretende destruir. O Brasil – a partir da Constituição Federal de 1988 – se firma como um Estado Democrático de Direito. Alberga a democracia social como fundamento de seu pacto e estabelece, a partir disso, os valores que devem ser observados pelo ordenamento jurídico. O artigo 7º da Constituição Federal fixa, como já delineamos, garantia de "duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho" (inciso XIII), a "jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva" (inciso XIV) e a "remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinqüenta por cento à do normal" (Inciso XVI). Portanto, a Constituição Federal estabelece como regra a jornada de oito horas. Permite a compensação de horário, mas em momento algum autoriza a supressão ou renúncia prévia ao direito constitucional ao pagamento de horas extras, que também estabelece expressamente (inciso XVI). Em vista disso, o sistema ‘banco de horas’ não se afina com a previsão de valorização do trabalho (art. 1º) e de promoção do pleno emprego (art. 170, VIII), na medida em que permite a exploração do trabalho humano por um número superior de horas, negando a possibilidade de pagamento do adicional constitucionalmente assegurado e evitando com isso (ao menos em tese) a contratação de novos trabalhadores.

Há, ainda, outro argumento. O salário deve ser pago no máximo até o quinto dia útil do mês subseqüente ao da prestação do serviço, na linha do que expressamente prevê o artigo 459 da CLT. A previsão decorre do caráter de negócio jurídico comutativo e sinalagmático que detém a relação de emprego. O pagamento da jornada suplementar se insere na noção de remuneração, por expressa disposição legal (art. 457 da CLT). Seu pagamento, portanto, deve ocorrer no máximo até o quinto dia útil do mês subseqüente. A Lei 9.601-98 simplesmente ignora isso ao prever inicialmente a possibilidade de compensação em até cento e vinte dias, redação que foi alterada, para permitir compensação em período de até um ano [121]. Tal legislação, de uma só vez, ignora o conceito de remuneração, a regra relativa ao tempo do pagamento do salário (e com isso o caráter comutativo da relação de emprego), a noção de hora extraordinária e a obrigatoriedade de pagamento do adicional de horas extras. Como tal, sua redação é incompatível com as normas que regem o direito do trabalho e com o que dispõe a Constituição Federal. Diante disso, o que a lei que institui o banco de horas faz é permitir um retrocesso social inaceitável.

3.4 A Súmula 338 do TST acerca da prova da jornada.

A CLT expressamente determina, ao empregador com mais de dez empregados, a manutenção de registro escrito da jornada [122]. Ao fazê-lo, estabelece um dever diretamente relacionado ao processo. O dispositivo, em realidade, especifica o tipo de prova legalmente aceitável, para o efeito de comprovação da jornada realizada pelo empregado. O faz por inspiração do princípio protetivo que orienta o direito do trabalho e que necessariamente contamina seu instrumento (o processo). A produção dessa prova incumbe ao empregador. A não-apresentação dos registros implica descumprimento de dever do empregador, sujeito, pois, à respectiva sanção. A prova oral, ainda que pretenda desconstituir a tese apresentada pelo empregador, não tem o condão de afastar o imperativo legal pelo qual jornada se prova mediante documento, sempre que houver no estabelecimento mais de dez empregados.

Isso porque se a Lei especifica o meio para a prova de determinado fato e impõe a uma das partes contratantes a obrigação de produzi-la (como no caso da jornada), a sua não-produção implica o acolhimento da tese adversária, como sanção ao dever instituído pelo texto legal. É exatamente essa a dicção do artigo 400 do CPC. Do contrário, bastaria ao empregador descumprir a imposição legal de manutenção do registro escrito, para ver franqueada a possibilidade de elidir a pretensão ao pagamento de horas extras mediante a apresentação de testemunhas em juízo. É exatamente o que está acontecendo, a partir da edição da súmula que, com sua tendência flexibilizadora, acaba por negar ao trabalhador proteção ao direito constitucional à jornada de oito horas e ao pagamento do adicional de horas extras. O Ministro João Orestes Dalazen bem examina o entendimento consolidado, referindo tratar-se raciocínio "kafkaniano", na medida em que beneficia o infrator da Lei [123]. Portanto, a não-apresentação dos registros, quando o empregador está obrigado a mantê-los, ou a exibição de controles inidôneos, não gera mera presunção de veracidade das alegações contidas na petição inicial, mas sim impõe a aplicação da sanção contida no artigo 400, II, do CPC, qual seja, de indeferimento da prova oral. Trata-se de exemplo de flexibilização patrocinada pela jurisprudência, sem o auxílio de intervenção legislativa. A lente foca ao avesso os princípios do direito do trabalho e, ao aplicar a legislação trabalhista, seus operadores negam seu conteúdo substancial.

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Sobre a autora
Valdete Souto Severo

Juíza do Trabalho em Porto Alegre (RS). Especialista em Direito Processual Civil pela UNISINOS. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela UNISC. Master in Diritto del Lavoro e della Sicurezza Sociale presso la Università Europea di Roma. Especialista em Direito do Trabalho pela UDELAR – Universidade do Uruguai. Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS. Doutoranda em Direito do Trabalho na USP/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEVERO, Valdete Souto. O mundo do trabalho e a flexibilização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1946, 29 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11903. Acesso em: 24 nov. 2024.

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