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Embriaguez e homicídio no trânsito: dolo eventual ou culpa consciente?

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03/12/2008 às 00:00
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2 A PROBLEMÁTICA VERIFICAÇÃO DA EMBRIAGUEZ

Como já referido, concluir existente o dolo eventual pela simples embriaguez é uma questão delicada. Objetivamente, considera-se embriagado o condutor que, mediante teste no bafômetro, indicar seis ou mais decigramas de álcool por litro de sangue, resultado este, que não pode definir com exatidão se há ou não incapacidade para desempenhar as funções exigidas de um motorista.

2.1 Pessoas diferentes, efeitos diferentes

É sabido que a intensidade do impacto causado pelo álcool no organismo humano depende, além da quantidade da substância que foi ingerida, do nível de resistência oferecido pelo indivíduo.

Normalmente pessoas que ingerem bebidas alcoólicas com maior freqüência tendem a tolerar quantidades muito maiores antes que possam entrar clinicamente no estado de embriaguez.

Genival Veloso França explica:

Uma mesma quantidade de álcool ministrada a várias pessoas pode acarretar, em cada uma, efeitos diversos. Igualmente, pode produzir num mesmo indivíduo efeitos diferentes, dadas as circunstâncias meramente ocasionais. Alguns se embriagam com pequenas quantidades e outros ingerem grandes porções, revelando uma estranha resistência ao álcool.

A tolerância depende de vários fatores: a) considerando que aproximadamente dois terços do corpo são constituídos de líquidos, quanto maior o peso, mais diluído ficará o álcool. Daí ser a concentração mais elevada nos indivíduos de menor peso; b) o sistema digestivo absorve o álcool, que passa para o sangue num fenômeno bastante rápido. A absorção varia de acordo com a concentração alcoólica da bebida, o ritmo da ingestão, a vacuidade ou plenitude do estômago e os fenômenos de boa ou má absorção intestinal; c) o hábito de beber deverá ser levado em conta, pois o abstêmio, o bebedor moderado e o grande bebedor toleram o álcool em graus diferentes; d) os estados emotivos, a estafa, o sono, a temperatura, o fumo, as doenças e estados de convalescença são causas que alteram a sensibilidade às bebidas alcoólicas. [12][grifo do autor]

Vislumbra-se no trecho transcrito a visível possibilidade de se verificar em dois indivíduos diferentes a mesma quantidade de álcool no sangue, mas efeitos diferentes: um apresentando indisfarçável embriaguez e outro plenamente sóbrio, gozando por completo de todas as suas faculdades físicas e mentais.

Hermes Rodrigues de Alcântara é muito claro nesse aspecto, como se depreende do trecho que segue transcrito:

Nos casos em que não exista manifestações de produzir riscos, quando o indivíduo conduz o veículo de forma correta, não há que se generalizar em termos de infração, mas tão-só avaliar caso a caso, clinicamente, independente da concentração de álcool no sangue, pois como se sabe cada pessoa reage de forma diferente diante de uma mesma quantidade de bebida ingerida.

Muitos são os casos em que indivíduos com taxas de alcoolemia acima das permitidas conduzem seus veículos de forma correta, apresentam-se com comportamento educado, sem nenhum tipo de infração, apenas são abordados por questão dita preventiva. O inverso também é verdadeiro, pois o indivíduo pode estar abaixo das taxas permitidas e apresentar manifestamente sinais de embriaguez e ter cometido infrações.

Dessa forma, se levarmos em conta apenas o resultado da dosagem de álcool no sangue, vê-se que é possível cometer enganos, levando em conta a inflexibilidade de uma avaliação que se baseia apenas no teor alcoólico do sangue do condutor de veículo.

Em face de tais situações, fácil é admitir o direito de presunção de inocência desses condutores de veículo quando dirigem com taxas mais elevadas de alcoolemia, mas que não apresentam clinicamente nenhuma manifestação que prove sua periculosidade. [13] [grifo do autor]

No intuito de evitar, portanto, uma incorreta interpretação da situação fática durante a tramitação de processo judicial, se faz mister a verificação de nexo de causalidade conectando a embriaguez e o delito praticado.

Hygino de Carvalho Hercules melhor esclarece:

Há que se estabelecer nexo de causalidade entre a embriaguez e o delito, ou seja, se o delito foi o resultado da alteração de consciência – turvação ou obnubilação – e com ela guarda íntima conexão. Ações ou omissões que para sua prática exigem lucidez e vigilidade e que não podem ser adequadamente executadas sob obnubilação de consciência ou turvação sensorial não se prestam a essa relação. [14]

3.2 Definições técnicas a serem consideradas

Cabe frisar que, segundo a corrente majoritária, a embriaguez divide-se em três diferentes fases: excitação, confusão e sono. França esclarece:

Na fase de excitação, o indivíduo se mostra loquaz, vivo, olhar animado, humorado e gracejador, dando às vezes uma falsa impressão de maior capacidade intelectual. Diz leviandades, revela segredos íntimos e é extremamente instável. Diz leviandades, revela segredos íntimos e é extremamente instável. É a fase de euforia. Bonum vinum laetificat cor hominis. (O bom vinho alegra o coração do homem.) Mas beber usque ad laetitiam (até a alegria).

Na fase de confusão, surgem as perturbações nervosas e psíquicas. Disartria, andar cambaleante e perturbações sensoriais. Irritabilidade e tendências às agressões. É a fase de maior interesse e, por isso, chamada de fase médico-legal.

Na fase de sono, ou fase comatosa, o paciente não se mantém em pé. Caminha apoiado nos outros ou nas paredes e termina caindo sem poder erguer-se, mergulhando em sono profundo. Sua consciência fica embotada, não reagindo aos estímulos normais. As pupilas dilatam-se e não reagem à luz. Os esfíncteres relaxam-se e a suderese é profusa. É a fase de inconsciência. [15][grifo do autor]

Ora, mesmo embriagado o sujeito pode se portar de diferentes maneiras, a depender do seu estágio de embriaguez. Não se pode afirmar que, pelo simples fato de estar alcoolizado, o agente age com dolo eventual no momento do sinistro fatal. Ao ser adotada essa linha de pensamento se está negando a existência das diferentes fases da embriaguez, uma vez que se sabe haver enorme diferença entre a primeira e a última fase.

Pelo magistério acima transcrito de França, verifica-se que estando o sujeito embriagado na fase de excitação, sua conduta tende a levá-lo à supervalorização de suas próprias capacidades, de modo, então, a não tomar conhecimento dos riscos a que está sujeito.

Não se pode olvidar, de igual forma, que a conduta do agente anterior à ingestão de álcool deve ser levada em consideração. Alcântara explica que a embriaguez etílica pode ser enquadrada em sete diferentes categorias: voluntária, preterdolosa, culposa, por força maior, fortuita, acidental e habitual. Vejamos:

Embriaguez voluntária – é aquela procurada, deliberadamente, pelo agente para ficar em condições de praticar o crime, vencendo o temor e reprimindo a autocensura. a decisão de se embriagar tem fim definido.

Embriaguez preterdolosa – o agente, sem querer um resultado definido, mas conhecendo as suas reações, assume o risco de produzi-lo.

Embriaguez culposa – o agente não conhece suas reações ou delas não se recorda quando embriagado e, imprudentemente, bebe demais.

Embriaguez de força maior – o agente é levado ao estado por se encontrar num ambiente em que todos se dão às libações alcoólicas e sua resistência é vencida.

Embriaguez fortuita – o agente, não sendo forçado, sem imprudência e predeterminação, chega ao estado, em ocasiões especiais, como: aniversário, formatura ou outras comemorações especiais.

Embriaguez acidental – surge diante do engano da ingestão de bebida de forte teor alcoólico, quando achava exatamente o contrário.

Embriaguez habitual – surge sobre o agente já dependente do álcool, que necessita dele para se desinibir e tomar iniciativas. [16]

Em breve análise, percebe-se que não há que se falar em embriaguez voluntária, visto que tal classificação remete de pronto ao dolo direto. De igual forma, com exceção das classificações preterdolosa, culposa e fortuita, as demais não interessam ao presente estudo.

Vê-se na figura da embriaguez preterdolosa a única possibilidade de interpretar como presente o dolo eventual na conduta do motorista embriagado. Todavia, há que se ressaltar que não se pode encarar como regra tal comportamento, uma vez que não é de se esperar que uma pessoa, em sã consciência, possa ao mesmo tempo prever uma má conduta quando embriagada e desejar mesmo assim dar continuidade. É possível – e ocorre – tal situação, mas está longe de se tornar regra geral.

Por outro lado, tem-se na embriaguez culposa e na embriaguez fortuita as duas maiores fontes de motoristas bêbados – ou, ao menos, com seis ou mais decigramas de álcool por litro de sangue.

Partindo deste corolário, Bitencourt e Conde destacam:

Pelos postulados da actio libera in causa [17], se o dolo não é contemporâneo à ação é, pelo menos, contemporâneo ao início da série causal de eventos, que se encerra com o resultado danoso. Como o dolo é coincidente com o primeiro elo da série causal, deve o agente responder pelo resultado que produzir. Transportando essa concepção para a embriaguez, antes de embriagar-se o agente deve ser portador de dolo ou culpa não somente em relação à embriaguez, mas também em relação ao fato delituoso posterior. Balliseu Garcia, inconformado com as conseqüências da embriaguez voluntária ou culposa e com o entendimento sustentado por Nelson Hungria, pontificava: "Não percebemos o nexo de causalidade psíquica entre a simples deliberação de ingerir bebida alcoólica e um crime superveniente. O agente não pensa em delinqüir. Nem mesmo – admita-se – supõe que vai embriagar-se. Entretanto, embriaga-se totalmente e pratica lesões corporais num amigo". E a seguir, reconhecendo tratar-se de responsabilidade objetiva, ou, pelo menos, ausência de culpabilidade em grau relevante para o Direito Penal, sugere Baliseu Garcia, provocativamente, que "...se tamanha extensão se pretende emprestar à teoria das actiones libera incausa, então também o doente mental, que assim se tornou apenas pela sua culpável imoderação no uso de álcool, devia ser responsabilizado...".

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Finalmente, ao contrário do que seria na hipótese de actio libera in causa, a conduta praticada pelo ébrio será considerada dolosa ou culposa, não pela natureza da embriaguez – voluntária ou culposa – pertencente à fase de imputabilidade real, mas segundo o elemento subjetivo do momento em que a ação é praticada. Em outros termos, isso significa que de uma embriaguez dolosa pode resultar um crime culposo, assim como de uma embriaguez culposa pode resultar um crime doloso. [18]

Logo, verifica-se que a posição doutrinária é clara sobre a inviabilidade de se ter caracterizado o dolo – eventual – pela simples ingestão de álcool, quando na verdade tal caracterização tem relação direta com a intenção do agente na prática do ilícito, o que, na verdade, vai ao encontro da linha atualmente seguida pelo Superior Tribunal de Justiça.


3 DISTINÇÕES CONCEITUAIS NO CASO CONCRETO

Teoricamente, a definição de dolo eventual e culpa consciente, em termos didáticos, não demonstra grandes dificuldades de distinção.

Todavia, a aplicação prática de tais conceitos por vezes demanda muita atenção – e estudo – e gera discussões homéricas, cabendo ao juiz analisar e aplicar ao caso concreto um ou outro.

3.1 Dolo eventual

No direito penal brasileiro, em matéria de dolo, duas foram as teorias adotadas: a teoria da vontade, que atenta às questões concernentes ao dolo direito, e a teoria do consentimento, que visa à definição das peculiaridades do dolo eventual.

Ambas trazem em seu bojo a exigência de que o aspecto volitivo deve ser o fator de maior relevância na análise da prática delituosa, rechaçando a simples representação intelectual como elemento caracterizador de dolo na conduta do agente.

Para SILVA, "é a vontade do agente, portanto, que deve prevalecer na compreensão do dolo, no sentido de que não só está em dolo quem quer, mas quem "não não quer", consoante a síntese de Beling, citado por Sebastian Soler". [19]

3.1.1 Teoria da Vontade

Defende a obrigatoriedade de presença do elemento volitivo quando da prática da conduta delituosa, e não apenas do aspecto cognitivo da ilicitude, não bastando ao agente, portanto, apenas prever o resultado, mas desejar sua realização.

Em vista da abrangência de definição, acolhe outras teorias mais específicas como possibilidades abrigadas pela teoria da vontade, desde que enfatizado o aspecto volitivo em detrimento do aspecto cognitivo do dolo, destaca David Medina da Silva. [20]

Em breves considerações, o mesmo autor ainda sintetiza: "segundo esta teoria, o dolo eventual é concebido como vontade dirigida ao resultado, não bastando a mera representação ou conhecimento do fato". [21]

No que tange às ocorrências de homicídio conseqüente de acidente de trânsito de veículos causado por condutor embriagado, a hipótese de dolo direto deve ser descartada, a menos que o veículo automotor tenha sido tão-somente o meio escolhido para o delinqüente para a prática do crime após ingerir a necessária dose de álcool para tomar coragem para executar o crime, caracterizando o disposto no art. 61, II, "l", do Código Penal. [22]

3.1.2 Teoria do Consentimento

Segundo esta teoria – que se vincula à teoria da vontade em vista da exigência de elemento volitivo –, o agente, após prever o resultado criminoso de sua conduta, não o deseja diretamente, mas consente na sua produção.

Em outras palavras, está ciente da alta probabilidade de que se concretize o resultado previsto, mas admite que se produza, portando-se de forma indiferente ao desfecho.

Ressalta David Medina da Silva que "a ênfase, nesse caso, permanece no elemento volitivo, pois não basta a representação, sendo indispensável que o agente queira (volição) agir, apesar do resultado e conformando-se com ele". [23]

3.2 Culpa consciente

A culpa (inconsciente), prevista no art. 18, II, do Código Penal brasileiro [24] sabidamente aplicável ao agente que pratica o ilícito penal por imprudência, negligência ou imperícia, quando o resultado é previsível, não exige maiores explicações.

No que toca à culpa consciente, a corrente majoritária no direito penal brasileiro entende que assemelha-se ao dolo eventual, exceto no que diz respeito ao elemento volitivo: enquanto nesse o agente consente com o resultado, naquela há a representação, mas confia-se na não ocorrência do resultado.

Francisco de Assis Toledo assim a descreve:

A culpa consciente limita-se com o dolo eventual (Código Penal, art. 18, I, in fine). A diferença é que na culpa consciente o agente não quer o resultado nem assume deliberadamente o risco de produzi-lo. Apesar de sabê-lo possível, acredita sinceramente poder evitá-lo, o que só não acontece por erro de cálculo ou por erro na execução. No dolo eventual, o agente não só prevê o resultado danoso como também o aceita como uma das alternativas possíveis. É como se pensasse: vejo o perigo, sei de sua possibilidade, mas, apesar disso, dê no que der, vou praticar o ato arriscado. Já a culpa consciente situa-se, em extremo oposto, nas vizinhanças do caso fortuito. O que a distingue desse último, totalmente impunível, é precisamente a previsibilidade e a evitabilidade do resultado. Na culpa consciente o ato voluntário provoca um resultado danoso não previsto mas previsível e evitável. No caso fortuito o resultado é imprevisto, imprevisível e, por isso, inevitável para o agente. [25]

Juarez Cirino dos Santos esclarece que não há – de forma alguma – como tais conceitos coexistirem no mesmo caso, simplesmente porque as peculiaridades que caracterizam o dolo eventual excluem a possibilidade de se lidar com culpa consciente, e vice-versa:

[...]a imprudência consciente se caracteriza, no nível intelectual, pela representação da possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, pela leviana confiança na ausência ou na evitação desse resultado, por força da habilidade, atenção, cuidado etc. na realização concreta da ação.

O caráter complementar-excludente desses conceitos aparece nas seguintes correlações, ao nível da atitude emocional: quem se conforma com (ou aceita) o resultado típico possível não pode, simultaneamente, confiar em sua evitação ou ausência (dolo eventual); inversamente, quem confia na evitação ou ausência do resultado típico possível não pode, simultaneamente, conformar-se com (ou aceitar) sua produção (imprudência consciente). [grifo do autor]

Com raciocínio semelhante, David Medina da Silva, reportando magistério de Claus Roxin, ainda alerta para a necessidade de distinção entre a confiança de que o resultado não se concretize e a mera esperança, deixando ao acaso, e, portando, revestindo a conduta com o dolo eventual:

Com esta reserva se pode dizer que há que afirmar o dolo eventual quando o sujeito conta seriamente com a possibilidade de realização do tipo, mas apesar disso segue atuando para alcançar o fim perseguido, e se resigna assim – seja de boa ou má índole – à eventual realização de um delito, se conforma com ela. Em contrapartida, atua com culpa consciente quem adverte a possibilidade de produção do resultado, mas não a leva a sério e, em conseqüência, tampouco se resigna a ela em caso necessário, e sim confia, negligentemente, na não realização do tipo. A respeito, é preciso distinguir entre a "confiança" e uma mera "esperança". Quem confia – amiúde por uma supervalorização da própria capacidade de dominar a situação – em um desenlace exitoso não toma seriamente em conta o resultado delitivo e portanto não atua dolosamente. Sem embargo, quem leva a sério a possibilidade de um resultado delitivo e não confia em que tudo sairá bem pode, em qualquer caso, seguir tendo a esperança de que a sorte esteja a seu lado e não aconteça nada. Esta esperança não exclui o dolo quando, a par dela, o sujeito deixa que as coisas sigam seu curso. [26] [grifo do autor]

Considerando-se a exposição já feia até aqui, extrai-se do trecho imediatamente acima a irrefutável conclusão de que não se tem nos homicídios conseqüentes de acidente de trânsito envolvendo embriaguez no volante outra figura que não a culpa consciente, salvo exceções.

Em sua grande maioria, tais eventos não possuem como autores pessoas frias e desprovidas de sentimento pela vida, mas sim condutores que supervalorizaram suas habilidades no volante, negando a existência da mínima chance de ocorrer um incidente extraordinário.

A título de exemplo, Juarez Tavares [27] levanta a hipótese do condutor que ultrapassa em uma curva, mas, mesmo consciente de sua condição de violador de uma norma de cuidados no trânsito de veículos, confia na sua habilidade como motorista para evitar o provável acidente. Em tal situação, estaria atuando com culpa consciente.

3.3 Distinção

É evidente que, tanto nas hipóteses de dolo eventual, quanto nas de culpa consciente, a representação do resultado é um traço comum. Todavia, a presença do elemento volitivo é o diferencial entre ambas, visto que no dolo eventual o agente admite a possibilidade de ocorrência do resultado, na medida em que, quando se fala em culpa consciente, o agente acredita na sua não-produção, consoante magistério de David Medina da Silva. [28]

Ocorre que a identificação de um ou de outro desses conceitos na prática não é tarefa simples, acarretando não apenas entre a doutrina, mas também entre os julgadores, divergências muitas vezes significativas.

TAVARES [29] admite que "a distinção entre dolo eventual e culpa consciente continua sendo um dos pontos mais controvertidos e nevrálgicos da teoria do delito." E segue:

A fim de estabelecer essa distinção, atendendo aos fundamentos antes enunciados, deve-se partir de dois pressupostos.

O primeiro, de que o dolo eventual é, legalmente, equiparado ao dolo direto no tocante aos seus efeitos, o que quer dizer que no dolo eventual deve haver um grau de intensidade no tocante ao processo de produção do resultado tenha carga equivalente àquela que se desenvolve com o dolo direto. Isto leva à conclusão de que o dolo eventual deve ter uma base normativa que justifique sua inclusão no âmbito volitivo do sujeito. Assim, na identificação do dolo eventual é preciso não perder de vista esse procedimento de equivalência, o que faz cair por terra, por conseguinte, qualquer teoria que pretenda equacioná-lo exclusivamente nos amplos limites de seu elemento intelectivo.

O segundo pressuposto é de que no dolo eventual o agente deve ter refletido e estar consciente acerca da possibilidade da realização do tipo e, segundo o seu plano para o fato, se tenha colocado de acordo com o fato de que, com sua ação, produzirá uma lesão do bem jurídico. Já na culpa consciente, o agente está ciente da possibilidade de realização do tipo, mas como não se colocou de acordo com a produção do resultado lesivo, espera poder evitá-lo ou confia na sua não-ocorrência. A distinção, assim, deve processar-se no plano volitivo e não apenas no plano intelectivo do agente. [30][grifo do autor]

É cristalina a conclusão de que tanto dolo direto quanto dolo eventual recebem o mesmo tratamento – o de crime doloso, de modo geral – o que implica dizer que o motorista que se encontre nas condições definidas por lei como embriaguez acabará por cair na vala comum do homicídio doloso.

Não se quer aqui eliminar esta possibilidade do mundo jurídico, de forma alguma. Por óbvio, pessoas agindo de forma inconseqüente e perigosa, no trânsito ou fora dele, é uma infeliz realidade.

Seria uma hipótese possivelmente aplicável, por exemplo, a um relativamente reduzido número de pessoas – normalmente jovens, do sexo masculino e durante a noite – que praticam os arriscados "rachas" ou "pegas", sob efeito de maciças doses de álcool ou outra substância entorpecente, empreendendo altíssimas velocidades em seus veículos, em vias inadequadas e em meio à multidão. Ora, tem-se nesse exemplo uma situação em que o condutor compreende o considerável risco gerado por sua conduta, com reduzida possibilidade de que não ocorra algum acidente, possivelmente fatal.

Mas, diga-se de passagem, ainda em comento ao exemplo anterior, por mais provável que seja a ocorrência de um acidente, ainda assim não se pode ter uma certeza inquestionável de que o condutor não estivesse na verdade apresentando as características típicas do conceito de culpa consciente, pois no seu íntimo não desejava nem esperava ser autor de um sinistro, visto ser motorista experiente e confiante na própria habilidade, possivelmente já tendo inclusive atuado como motorista ou piloto profissional em algum outro momento de sua vida, e não se considerando embriagado pelas doses de álcool ingeridas.

David Medina da Silva confirma que "é certo dizer que, na culpa consciente, o agente não corre riscos. Imagina que, em virtude de sua habilidade, estes não existem. No dolo eventual, ao contrário, o agente aceita correr o risco inerente ao comportamento" [31]. [grifo do autor]

Partindo daí caberia a análise do contexto, afinal, uma dose alta de álcool para uma pessoa pode ter um efeito mínimo para uma outra que bebe com mais habitualidade. De igual forma, o simples fato de participar de um "racha" ou "pega", o que parece ser, infelizmente, algo relativamente comum na cultura dos jovens de classe alta, não significa que o motorista esteja indiferente à vida humana; simplesmente ele supervaloriza a própria habilidade e não leva em consideração a possibilidade de falhar no volante.

De modo geral, a bebida comumente traz a exagerada e equivocada confiança ao indivíduo – no caso, ao condutor – parece-lhe distante o risco de que possa ser ele o responsável por um acidente de trânsito, de modo a não consentir com o resultado, pois sequer aceita a possibilidade de perder o controle do veículo que conduz.

E é exatamente aí que se define a intenção do autor. Seguindo a linha de raciocínio já exposta, David Medina da Silva explica: "Eis o traço distintivo fundamental: na culpa consciente, o agente tem a crença (equivocada) da não produção do resultado; no dolo eventual, o agente age na dúvida, optando por correr o risco" [32].

Salvo melhor juízo, normalmente a conduta de tais motoristas que dirigem imprudentemente embriagados – ainda que não considerem suficientemente prejudicadas pelo álcool suas habilidades ao volante – está abrangida nessa hipótese. Não agem na dúvida, de forma alguma. Não desejam por a própria vida em risco. Nem o próprio patrimônio, ou a vida de terceiros. Apenas confiam em sua impressão equivocada de serem detentores de habilidade suficiente para conduzir o veículo em segurança.

Então, mesmo que a hipótese de haver dolo eventual na conduta do motorista embriagado seja uma possibilidade, não se pode entender desta forma automaticamente. Nesse aspecto, Juarez Tavares se manifesta:

A tese aqui apresentada, embora não constitua uma regra geral, pode ser utilizada para, atendendo às circunstâncias do fato, excluir o dolo eventual, quando o agente, em face de seu estado de ânimo, não esteja em condições de decidir se o resultado lhe é indiferente ou não. Este estado emocional gera efetivamente uma séria dúvida acerca da posição de indiferença por parte do sujeito em relação à lesão ou não do bem jurídico, o que deverá levar à exclusão do dolo eventual, em face do princípio in dúbio pro reo. [33]

Pensemos no seguinte exemplo: como sujeito ativo do crime, um pai de família, com profissão bem conceituada, consciente de seus direitos e deveres e de vasta carga cultural, o qual apresenta considerável resistência para entrar no estado de embriaguez, vez que é grande apreciador de vinho e está habituado a beber há aproximadamente três décadas. Pois em certa noite, após beber duas taças de vinho fora de casa, retorna com a família para o lar em seu carro, dirigindo em rodovia federal dentro da velocidade máxima permitida, absolutamente sóbrio, e, ao deparar-se com um automóvel que vem na direção contrária invadindo sua pista e com os faróis em nível alto, obriga-se a fazer rápida manobra em direção ao acostamento, momento que perde o controle do veículo e atropela um morador local que se deslocava a pé pelo acostamento em área com iluminação deficiente. Ao ser constatado que o condutor possuía sete decigramas de álcool por litro de sangue no organismo, acabará por ser inevitavelmente julgado perante o tribunal do júri, caindo para a vala comum dos demais homicidas.

Agora vejamos situação diversa: um jovem de alta classe, de perfil violento e desconhecedor de limites, que, ao desentender-se com um cidadão no interior de uma boate noturna, irritado pega o carro e atropela o seu recente desafeto ao sair do estabelecimento, levando-o à morte.

Inexoravelmente, independente das chances de absolvição e condenação em cada caso, ambos passarão pelo mesmo procedimento, vindo a serem julgados pelo conselho de sentença do tribunal do júri.

Todavia, abrindo mão da base conceitual teórica e ideal da justiça brasileira, e levando-se em consideração a situação prática, em que a qualidade de apresentação e argumentação das teses de acusação e defesa e, ainda, o perfil dos jurados que compõem o conselho de sentença, pode-se chegar a situação ainda mais esdrúxula: uma condenação no primeiro caso e absolvição no segundo.

Como se percebe, a lei atualmente vigente prevê, pelo simples fato de ter o condutor ingerido bebida alcoólica, independente de que isso tenha causado o que clinicamente se define como embriaguez, que o sujeito com nível igual ou superior a seis decigramas de álcool no sangue, envolvido em acidente de trânsito do qual tenha resultado morte, passará a ser julgado pelo Código Penal pela prática do crime de homicídio doloso.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Ádamo Brasil. Embriaguez e homicídio no trânsito: dolo eventual ou culpa consciente?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1981, 3 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12036. Acesso em: 25 abr. 2024.

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