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O princípio da boa-fé objetiva no direito de família

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08/12/2008 às 00:00
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3.A BOA-FÉ OBJETIVA E A UNIÃO ESTÁVEL PLÚRIMA OU MÚLTIPLA

A união estável é reconhecida como entidade familiar no art. 226, § 3º, da Constituição Federal de 1988. Tal instituto jurídico é tratado também pelo novo Código Civil, que consolida a matéria (arts. 1.723 a 1.727).

De acordo com o art. 1.723 da atual codificação, é "reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". O comando legal em questão apresenta os requisitos para a caracterização da união estável.

O primeiro requisito é que a união seja entre pessoas de sexos distintos, assim como consta do Texto Maior. Apesar dos esforços de parte da doutrina, não há como entender, no atual estágio da legislação brasileira, que a união entre pessoas do mesmo sexo, denominada união homoafetiva, é instituto similar à união estável. Isso somente seria possível com a alteração da própria Constituição.

O segundo requisito é que a relação seja pública, no sentido de notoriedade social. Não constitui união estável a relação às escondidas, principalmente em relação aos familiares dos supostos companheiros.

O terceiro requisito é que a união seja duradoura, o que comporta análise caso a caso. A lei não apresenta qualquer parâmetro temporal para a sua caracterização, nem determina a necessidade de coabitação, de modo que continua em vigor a Súmula n. 382 do Supremo Tribunal Federal, que a dispensa.

Por fim, deve estar configurada a intenção dos companheiros de constituição de família. Nesse sentido, essa intenção está relacionada com a boa-fé subjetiva. De qualquer forma, a própria atuação dos conviventes pode presumir a existência da união estável. Se o comportamento dos companheiros indicar tal intenção, no tratamento entre eles (tractatus), haverá a presunção de existir a referida entidade familiar.

Já a exclusividade, apesar de não constar expressamente no art. 1.723 do novo Código Civil, constitui para nós um dos requisitos para a união estável, relacionada com a intenção de constituição de família – boa-fé subjetiva – e decorrente dos seus deveres, constantes do art. 1.724 da atual codificação – boa-fé objetiva. [30]

Quanto a essa exclusividade, pretendemos analisar a denominada união estável plúrima ou múltipla, situação em que a pessoa mantém relações amorosas, enquadradas no art. 1.723 do novo Código Civil, com várias pessoas e ao mesmo tempo. [31]

Vamos imaginar um caso prático, a fim de facilitar a visualização concreta do que estamos propondo, à luz da boa-fé objetiva. Tício, residente na cidade de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, vive em união estável, nessa cidade, com Maria Antonia, desde o ano de 2002. A união apresenta todos os requisitos constantes na lei civil. Toda a sociedade local reconhece a existência da entidade familiar, tratando os companheiros como se casado fossem. Entretanto, Tício é viajante e, desde o ano de 2003, encontra-se com Maria Figueiredo todas as segundas-feiras, na cidade de Franca, onde mantém um escritório. A relação também se enquadra nos termos do art. 1.723 do Código Civil. Tício e Maria Figueiredo têm um filho comum: João Henrique, de um ano de idade. Tício mantém ainda uma união pública, notória, contínua com Maria Augusta, na cidade de Batatais, para onde vai toda as quintas-feiras vender seus produtos. Aliás, Maria Augusta é dona de um estabelecimento comercial em que Tício consta como sócio. Ambos têm um negócio lucrativo naquela cidade do interior paulista. O relacionamento amoroso dura desde o ano de 2004. Por fim, Tício tem um apartamento montado na cidade de São Paulo, aonde vai ocasionalmente, de quinze em quinze dias, a fim de comprar produtos para vender no interior paulista. Nesse apartamento, reside Maria Carmem, com quem o Tício tem um relacionamento desde o final do ano de 2004. Essa sua convivente está grávida e espera um filho seu. No caso hipotético, uma Maria não sabe a existência da outra como convivente de seu companheiro, até que, um dia, o pior acontece e o mundo desaba.

Por mais incrível que possa parecer, a situação descrita pode ocorrer na prática. A primeira dúvida que surge é: constituem todos os relacionamentos união estável, nos termos do que consta do Código Civil e da Constituição Federal? Três posicionamentos podem surgir quanto ao caso em questão.

Um primeiro entendimento poderá apontar que nenhum dos relacionamentos constitui união estável. A encabeçar essa corrente está Maria Helena Diniz, para quem a fidelidade ou lealdade constitui um dos requisitos da união estável, sem o qual não há a referida entidade familiar. [32] Entretanto, diante do desrespeito à boa-fé, as Marias poderão pleitear que Tício indenize-as por danos materiais e morais, pela caracterização do abuso de direito, por desrespeito à boa-fé objetiva, que também ser espera na união estável. Esse primeiro entendimento pode ser afastado pela conclusão de que a fidelidade ou o respeito mútuos não constitui elemento essencial para a caracterização da união estável, mas apenas um dever dela decorrente, constante do art. 1.724 do novo Código Civil. [33]

Já para uma segunda corrente, deveriam ser aplicadas, para o caso em questão, as regras previstas para o casamento putativo. Assim sendo, as Marias que ignorassem a existência da primeira união constituída – com Maria Antonia –, poderiam pleitear a aplicação analógica do que consta do já transcrito art. 1.561 do atual Código Civil. Filia-se a esse entendimento Euclides de Oliveira. [34]

Esse segundo entendimento também apresenta alguns problemas. O primeiro é que a união estável não se iguala ao casamento, conclusão retirada do próprio Texto Constitucional. Ora, como o art. 226, § 3º, da Lei Maior prevê que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, tais institutos não são iguais, porque institutos semelhantes não são convertidos um no outro. Por certo, o conceito e os requisitos do casamento são diferentes dos da união estável. O segundo problema reside na necessidade de provar o início dos relacionamentos, a fim de ordenar as uniões paralelas no tempo e apontar qual é a união estável e quais são as uniões putativas.

De qualquer forma, essa parece ser a posição mais justa dentro dos limites do princípio da socialidade, com vistas a proteger aquele que, dotado de boa-fé subjetiva, ignorava um vício a acometer a união. Assim sendo, merecerá aplicação analógica o dispositivo que trata do casamento putativo também para a união estável putativa. No caso descrito, como todas as Marias ignoravam a situação, poderão pleitear a aplicação das regras decorrentes da união estável, como o pagamento de alimentos no caso de dissolução. Sem prejuízo disso, por ter o convivente agido com má-fé, as Marias poderão ainda pleitear dele indenização por danos morais, se os mesmos estiverem configurados, diante do desrespeito à boa-fé objetiva. A responsabilidade objetiva de Tício tem fundamento o abuso de direito cometido, previsto no mesmo art. 187 do novo Código Civil, bem como a quebra dos deveres anexos decorrentes da boa-fé.

De qualquer forma, se uma Maria não ignorar a existência da união plúrima do seu convivente, não terá a mesma direito à aplicação das regras da união estável putativa, já que não ignorava o impedimento. Também não poderá requerer indenização, pois não há que se falar em abuso de direito quando ambas as partes agem de má-fé no negócio jurídico celebrado.

Após a análise dessa segunda corrente, repita-se, para nós a mais justa, abordemos um terceiro entendimento, pelo qual todas as uniões constituem entidade familiar, devendo ser reconhecido os direitos de todas as Marias, independente de qualquer coisa. Essa corrente é encabeçada por Maria Berenice Dias. [35] De qualquer forma, também há problemas nesse entendimento: primeiro, por desprezar a fidelidade como fator essencial ou quase essencial à união estável; depois, por desprezar os próprios requisitos da sua caracterização, pois a união deve ser exclusiva. De qualquer modo, a visão dessa corrente também tem um cunho social relevante pela relação com a boa-fé objetiva.

Para concluir, percebe-se que surgem vários problemas práticos decorrentes da união estável plúrima. Em casos tais, a boa-fé objetiva pode também ser útil para resolver a problemática decorrente dessa entidade familiar bastante freqüente na realidade. De qualquer modo, recomenda-se prudência na análise casual das questões fáticas que a envolvem.


5.A BOA-FÉ OBJETIVA E OS ALIMENTOS

Os alimentos podem ser conceituados como sendo as prestações devidas a quem não pode provê-las com o seu trabalho próprio. [36] A obrigação de pagá-los decorre de um vínculo de parentesco, de casamento ou de união estável e está fundamentada no dever de solidariedade que deve imperar nas relações familiares.

O Código Civil de 2002 trata dos alimentos entre os arts. 1.694 a 1.710, em que são apresentadas regras materiais quanto a esse importante instituto. Além disso, continuam em vigor os preceitos legais instrumentais constantes na Lei n. 5.478/68 (Lei de Alimentos) e no Código de Processo Civil.

O atual Código Civil, ao ser confrontado com o anterior, apresenta algumas modificações importantes quanto ao instituto assistencial: a possibilidade de mesmo o cônjuge ou companheiro culpado pleitear os alimentos necessários, indispensáveis à sobrevivência (arts. 1.694 e 1.704, parágrafo único); a possibilidade de o primeiro obrigado convocar os demais para integrar a lide em que se pleiteiam os alimentos (art. 1.698); a transmissibilidade da obrigação alimentar aos herdeiros do devedor (art. 1.700); a contribuição dos cônjuges de acordo com as suas condições e rendimentos (art. 1.703); a previsão expressa do filho havido fora do casamento pleitear os alimentos (art. 1.705); a impossibilidade dos alimentos serem objeto de renúncia, cessão, compensação ou penhora (art. 1.707); a previsão de que o novo casamento, a união estável ou o concubinato do credor faz cessar a obrigação de pagá-los (art. 1.708), entre outras novidades.

No presente trabalho, pretendemos comentar a previsão do parágrafo único do último comando legal acima transcrito, o art. 1.708, cuja redação integral merece destaque:

Art. 1.708. Com o casamento, a união estável ou o concubinato do credor, cessa o dever de prestar alimentos.

Parágrafo único. Com relação ao credor cessa, também, o direito a alimentos, se tiver procedimento indigno em relação ao devedor. [37]

A previsão a ser debatida é a destacada no texto citado, que faz cessar a obrigação alimentar. A grande dúvida é saber o que é procedimento indigno. Ora, à luz do que já comentamos na introdução deste trabalho, trata-se de uma cláusula geral, a ser preenchida pelo aplicador do Direito caso a caso, de acordo com as circunstâncias do caso concreto. O que aqui pretendemos demonstrar é a relação direta entre a referida cláusula geral e a boa-fé objetiva.

De qualquer modo, por certo surgem entendimentos que pretendem interpretar restritivamente a referida previsão. Nesse sentido, foi aprovado, na III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, o Enunciado n. 264, em que se prevê: "Na interpretação do que seja procedimento indigno do credor, apto a fazer cessar o direito a alimentos, aplicam-se, por analogia, as hipóteses dos incisos I e II do art. 1.814 do Código Civil". [38] A partir desse entendimento, apenas gerariam a extinção da obrigação alimentar o homicídio doloso, ou sua tentativa, praticado pelo credor contra o devedor, a calúnia ou outro crime contra a honra. [39]

Dispositivo do Código Civil que também trata da indignidade de forma indireta, utilizando a palavra ingratidão, é o art. 557, que prevê a revogação da doação se o donatário: a) atentar contra a vida do doador ou cometer crime de homicídio doloso contra ele; b cometer ofensa física contra o doador; c) injuriar gravemente ou caluniar o doador; d) recusar-se a prestar alimentos ao doador, que deles necessitava. Substituindo as expressões doador por credor e donatário por devedor, defendem alguns autores a possibilidade de também aplicar esse comando legal a fim de complementar a previsão do art. 1.708, parágrafo único, do novo Código Civil, tese com a qual concordamos. [40] De qualquer forma, percebe-se que, basicamente, os casos são os mesmos tratados no art. 1.814, com exceção do último deles. Vale citar que alguns entendem ser o rol constante do art. 557 do Código Civil exemplificativo e não taxativo, ao contrário do que está previsto no art. 1.814 do mesmo Código. [41]

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O objetivo dessa interpretação restrita é impedir a aplicação do parágrafo único do art. 1.708 do novo Código Civil em hipóteses nas quais o ex-cônjuge ou ex-companheiro que recebe os alimentos tenha relacionamentos amorosos com outras pessoas após a dissolução da união com a pessoa que lhe paga os alimentos. [42] De qualquer modo, entendemos que em alguns casos deve-se ampliar a concepção de procedimento indigno de forma extensiva, principalmente em hipóteses de notória gravidade. [43] Para tanto, entra em cena a boa-fé objetiva.

Imaginemos um caso concreto, mais uma vez em uma pacata e pequena cidade do interior de Minas Gerais, onde uma ex-mulher paga cerca de R$ 1.000,00 (mil reais) por mês a título de alimentos ao ex-marido, que vive exclusivamente com o montante que lhe é pago pela ex-esposa: não trabalha, bebe todos os dias, é viciado em jogo, boêmio notório, violeiro cantador, e diz a todos que a outra é quem lhe mantém. Tem duas amantes e vive fazendo escândalos nos botecos da cidade. Nesse caso, não seria aplicado o art. 1.708, parágrafo único, do atual Código Civil? Não cessaria o dever alimentar da credora? Acreditamos que sim, desde que seja formulado pedido exoneratório e seja construída a prova desse comportamento indigno.

Nesse sentido, pertinente destacar as palavras de Arnaldo Rizzardo, com quem concordamos de forma integral:

O procedimento desrespeitoso se revela em várias matizes, ou se desdobra através de atos de cunho moral e pessoal negativo à pessoa do ex-cônjuge. Assim, os costumes desregrados; o indisfarçado e aberto relacionamento sexual com várias pessoas; a difamação da pessoa do ex-cônjuge ou de parentes próximos ao mesmo; a prostituição; o enveredar para a criminalidade; a dilapidação do patrimônio granjeado mais pela profissão e qualidades do ex-cônjuge; a agressão física ou moral e outros atos atentatórios à pessoas daquele que foi seu cônjuge arrolam-se como exemplos de situação aptas a desencadear a cessação dos alimentos. [44]

Para a caracterização desse procedimento desrespeitoso, entrará em cena a tese dos deveres anexos, a qual se relaciona com a boa-fé objetiva, particularmente quanto ao dever de respeito, que também deve estar presente após a dissolução da sociedade conjugal ou mesmo do casamento.

Desse modo, acreditamos que o art. 1.708, parágrafo único, está a apresentar uma espécie de responsabilidade pós-negocial casamentária ou pós-contratual – para aqueles que defendem a tese pela qual o casamento e a união estável são contratos –, decorrente da boa-fé que também é exigida em todas as fases do casamento, negócio jurídico por excelência. [45]

É interessante deixar claro que, pelo art. 1.576 do novo Código Civil, a separação judicial põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca, bem como ao regime de bens. Entretanto, a dissolução da sociedade conjugal ou mesmo do casamento não põe fim aos outros deveres decorrentes do matrimônio previstos no art. 1.566 do mesmo Código: o dever de mútua assistência; [46] o dever de sustento, guarda e educação dos filhos e o dever de respeito e considerações mútuos. O dever de respeito e consideração também é mantido com a dissolução da união estável. Tanto no casamento quanto na união estável esse último dever não pode ser quebrado, sendo inerente à eticidade que regulamenta o Direito Privado, sob pena de caracterização do comportamento indigno e aplicação do art. 1.708, parágrafo único, do atual Código Civil.

Mas que fique claro: é preciso prudência do magistrado para preenchimento da cláusula geral contida no comando legal em comento. Mero exercício de um direito afetivo ou amoroso não gera a quebra da boa-fé. Como sempre, recomendamos a análise caso a caso das relações familiares.

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Sobre o autor
Flávio Tartuce

advogado em São Paulo (SP),doutorando em Direito Civil pela USP, mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP, professor do Curso FMB, coordenador e professor dos cursos de pós-graduação da Escola Paulista de Direito (SP).Doutorando em direito civil pela USP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TARTUCE, Flávio. O princípio da boa-fé objetiva no direito de família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1986, 8 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12050. Acesso em: 29 mar. 2024.

Mais informações

Artigo científico apresentado no V Congresso Brasileiro de Direito de Família, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família em Belo Horizonte, entre os dias 27 a 27 de outubro de 2005. Trabalho publicado na Revista Brasileira de Direito de Família n. 35, página 5.

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