Sumário: 1. Introdução. A boa-fé objetiva e o novo Código Civil. 2. A boa-fé objetiva e o casamento. 3. A boa-fé objetiva e a união estável plúrima ou múltipla. 4. A boa-fé objetiva e os alimentos. 5. A boa-fé objetiva e o reconhecimento de filhos. 6. Considerações finais. 7. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO. A BOA-FÉ OBJETIVA E O NOVO CÓDIGO CIVIL
Ensina Miguel Reale que três são os princípios basilares do novo Código Civil: a socialidade, a eticidade e a operabilidade. 1 Tais princípios têm sido muito discutidos pelos doutrinadores que abordam os temas disciplinados pela nova codificação, de modo a orientar conclusões interessantes sobre os institutos de Direito Privado.
Pelo princípio da socialidade, rompe-se com o caráter individualista e egoístico do Código Civil de 1916. Nesse sentido, todos os institutos de Direito Privado passam a ser analisados dentro de uma concepção social importante, indeclinável e inafastável: a obrigação, a responsabilidade civil, o contrato, a empresa, a posse, a propriedade, a família, o testamento. Para facilitar sua visualização social, os institutos de Direito Privado devem ser analisados tendo como parâmetro o Texto Maior: a Constituição Federal de 1988 e seus preceitos fundamentais, particularmente aqueles que protegem a pessoa humana.
De acordo com o princípio da eticidade, a ética e a boa-fé ganham um novo dimensionamento, uma nova valorização. A boa-fé deixa o campo das idéias, da intenção – boa-fé subjetiva –, e ingressa no campo dos atos, das práticas de lealdade – boa-fé objetiva. Essa boa-fé objetiva é concebida como uma forma de integração dos negócios jurídicos em geral, como ferramenta auxiliar do aplicador do Direito para preenchimento de lacunas, de espaços vazios deixados pela lei.
Por seu turno, o princípio da operabilidade, que para nós apresenta maiores dificuldades de compreensão, tem dois enfoques. Em um primeiro sentido, a operabilidade é responsável pela facilitação do Direito Privado, ao deixar-se de lado o rigor técnico, que era muito valorizado pela codificação anterior, e ao buscar-se a simplicidade de um Direito Civil que realmente tenha relevância prática, material e real. Desse ponto, nasce o segundo enfoque do princípio: a efetividade, que está relacionada com o sistema de cláusulas gerais, adotado pela nova codificação. Essas cláusulas gerais são janelas abertas deixadas pelo legislador para preenchimento pelo aplicador do Direito. 2
No presente trabalho, abordaremos especificamente o segundo princípio, a eticidade, particularmente a relação da boa-fé objetiva com o Direito de Família. De qualquer modo, entendemos que a eticidade mantém íntima conexão com a socialidade e a operabilidade, em uma espécie de simbiose.
A relação entre eticidade e socialidade é flagrante. Ora, se os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé (art. 113, CC), fica claro que, nessa interpretação, será levado em conta o meio social, particularmente as suas interferências no âmbito jurídico. Sendo a boa-fé um das mais importantes cláusulas gerais do novo Código Civil brasileiro, a relação com a operabilidade é percebida de imediato. Em alguns pontos, podemos dizer que eticidade e operabilidade até se confundem. 3
Pois bem, o que constituiria a boa-fé, particularmente com a nova feição que lhe é dada pelo novo Código Civil? Para Francesco Carnelutti, no seu sentido jurídico, a boa-fé seria a
vontade conforme ao direito, ou, em termos mais sintéticos, vontade do direito e não apenas, portanto, opinio iuris. Assim se explica que não constitua boa-fé a convicção de direito devida a uma vontade deficiente, de onde procede a conhecida equiparação de má-fé com culpa grave. 4
Essa boa-fé referenciada pelo Mestre de Milão é a boa-fé subjetiva, intencional. É interessante deixar claro que a subjetivação da boa-fé ocorreu na Europa com a recepção de conceitos advindos do Direito Romano. 5 Com o jusnaturalismo, a boa-fé ganhou, no Direito Comparado, uma nova faceta, relacionada com a conduta dos negociantes, sendo denominada boa-fé objetiva. Nessa fase, foi fundamental o pensamento de Hugo Grotius, que deu uma nova dimensão à boa-fé, ao atrelá-la à interpretação dos negócios jurídicos, particularmente no campo contratual. 6 No Direito Comparado, outros autores, como Pufendorf, procuraram trazer a boa-fé para o campo da conduta, relacionando-a com uma "regra histórica de comportamento". 7 Da subjetivação saltou-se para a objetivação, o que é consolidado pelas codificações privadas européias.
Assim sendo, alguns códigos da era pós-moderna fazem menção à boa-fé objetiva, caso do Código Civil português, do Código italiano de 1942 e do BGB alemão. Nosso novo Código Civil, ao seguir essa tendência, adota a dimensão pós-moderna da boa-fé. Entre nós, a exemplo do que ocorreu anteriormente no Direito Comparado, tornou-se comum afirmar que a boa-fé objetiva está relacionada com os deveres anexos, que são íncitos a qualquer negócio jurídico, não havendo sequer a necessidade de previsão no instrumento negocial. 8 A quebra desses deveres anexos gera a responsabilização civil daquele que desrespeita a boa-fé objetiva. 9
Como deveres anexos, podemos citar, entre outros: a) o dever de cuidado em relação à outra parte negocial; b) o dever de respeito; c) o dever de informar a outra parte quanto ao conteúdo do negócio; c) o dever de agir conforme a confiança depositada; d) o dever de lealdade e probidade; e) o dever de colaboração ou cooperação; f) o dever de agir conforme a razoabilidade e a eqüidade.
Além da relação com esses deveres anexos, o que é construção doutrinária, o novo Código Civil, em três dos seus dispositivos, apresenta funções importantes para a boa-fé objetiva. A primeira é a função de interpretação do negócio jurídico, conforme consta do art. 113. do atual Código Civil, outrora já mencionado. 10 A segunda é a denominada função de controle, conforme art. 187. do novo Código Civil, segundo o qual aquele que contraria a boa-fé objetiva comete abuso de direito. 11 A terceira função é a função de integração do contrato, conforme art. 422. do novo Código Civil. 12 Apesar desse dispositivo legal prever que a boa-fé deve integrar todas as fases contratuais, entendemos que, na verdade, ela deve constar em todas as fases dos negócios jurídicos em geral.
Pois bem, o que pretendemos no presente trabalho é justamente aplicar essas três funções da boa-fé objetiva, e, logicamente, o próprio instituto jurídico para os conceitos ligados ao Direito de Família. Não encontramos qualquer óbice legal em aplicar os arts. 113. e 187 do novo Código Civil já que se tratam de dispositivos genéricos, constantes da Parte Geral da codificação, no capítulo que regulamenta os negócios jurídicos. A única ressalva poderia ser feita em relação ao art. 422. do novo Código Civil, cuja aplicação estaria restrita aos contratos.
O problema é solucionado se considerarmos o casamento e a união estável como sendo contratos, assim como faz parte da doutrina. 13 Entretanto, temos defendido que tais institutos, particularmente o casamento, não constituem um contrato, na melhor acepção do termo. Isso porque o contrato é por nós conceituado como sendo um negócio jurídico bilateral ou plurilateral que visa à criação, modificação ou extinção de direitos e deveres com conteúdo patrimonial. 14 Pois bem, entendemos, pelo menos aparentemente, que não há no casamento um intuito patrimonial, o mesmo valendo para os demais institutos de Direito de Família, nos quais se buscam o afeto, o amor, ou a própria perpetuação da vida humana.
Mas, se percorrermos outro caminho por três premissas ou justificativas, também podemos afirmar que o art. 422. do novo Código Civil pode ser perfeitamente aplicável aos institutos familiares, particularmente ao casamento e à união estável. Primeiro, porque, como vimos, os baluartes do novo Código Civil são a eticidade, a socialidade e a operabilidade, princípios com os quais a boa-fé objetiva mantém relação. Dessa forma, a referida cláusula geral deveria ser aplicada a todos os institutos de Direito Privado. Segundo, porque seria inconcebível aplicar os arts. 113. e 187 da atual codificação aos institutos de Direito de Família, afastando a aplicação do art. 422. diante de um óbice formal. Vale repetir que a nova codificação privada não se apega ao formalismo, sendo essa a melhor expressão do princípio da operabilidade, da simplicidade. Entender que, no Direito de Família, a boa-fé teria dupla e não tripla função é, para nós, totalmente inconcebível. Terceiro, por fim, lembramos que a principal função da boa-fé é justamente suprir e corrigir os negócios jurídicos em geral. 15
Como o Direito Civil deve buscar a justiça social, a boa-fé também há de exercer esse papel nos casos que envolvem os institutos do Direito de Família. É justamente essa aplicação que pretendemos demonstrar neste trabalho. Abordaremos a relação da boa-fé objetiva com institutos de Direito de Família. Falaremos da sua aplicação ao casamento, à união estável, aos alimentos e ao reconhecimento de filhos. Por último, demonstraremos as nossas considerações finais. Partimos, então, para tal desafio.
2. A BOA-FÉ OBJETIVA E O CASAMENTO
O casamento pode ser conceituado como sendo a união de pessoas de sexos distintos reconhecida pelo Estado e regulamentada pela lei. O casamento é reconhecido como entidade familiar, conforme art. 226, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal de 1988, e é tratado ainda pelo novo Código Civil, a partir do seu art. 1.511.
Muito se discute sobre a natureza jurídica do casamento. Como já deixamos claro, entendemos que o casamento não constitui um contrato na sua melhor acepção. Nesse sentido, somos filiados à corrente doutrinária mista ou eclética, segundo a qual o casamento seria uma instituição quanto ao conteúdo, e estaria presente a natureza contratual apenas na sua formação. De qualquer forma, diante de regras especiais para a sua constituição, o casamento seria um negócio jurídico sui generis, especial. 16
Superada essa ressalva doutrinária, torna-se imperioso verificar que o art. 1.566. do novo Código Civil, a exemplo do art. 233. do Código Civil de 1916, prevê os deveres de ambos os cônjuges no casamento.
O primeiro dever é o de fidelidade (art. 1.566, inc. I), que mantém relação direta com a boa-fé objetiva, entendida como uma conduta leal que deve existir entre as partes de um negócio jurídico, caso inclusive do casamento.
O segundo dever trata-se da mútua assistência (art. 1.566, inc. II), que também decorre da boa-fé, sendo entendida não só como assistência econômica, mas também assistência afetiva e moral. 17
Mas, sem dúvida, o dever que mais mantém relação com o dever de lealdade é o de respeito e consideração mútuos (art. 1.566, inc. V).
A vida em comum, no domicílio conjugal, antigo dever de coabitação, também constitui um dever decorrente do casamento (art. 1.566, inc. II), o que inclui o débito conjugal, de acordo com a doutrina tradicional. 18 Atualmente, o conceito de coabitação tem sido analisado tendo em vista a realidade social, de modo a admitir-se a coabitação fracionada, sem que haja quebra dos deveres do matrimônio. Assim sendo, é possível que cônjuges mantenham-se distantes por boa parte do tempo, sem que haja o rompimento do afeto, do amor existente entre eles, vínculo mais forte a manter a união. 19 Ainda quanto à coabitação, diante do regime democrático que deve imperar nas relações familiares, o art. 1.569. do novo Código Civil prevê que o domicílio conjugal será escolhido por ambos os cônjuges.
Por fim, constitui dever decorrente do matrimônio o sustento, guarda e educação dos filhos (art. 1.566, inc. IV). Essa previsão mantém relação direta com a solidariedade social prevista na Constituição Federal (art. 3º, inc. I), que também deve estar presente nas relações familiares, até mais do que em qualquer outra relação. Vale lembrar que a família é a celula mater da sociedade e, se a solidariedade não for atendida em relações dessa natureza, o que dizer quanto ao restante das relações privadas?
Pois bem, de imediato percebe-se que a boa-fé objetiva deve estar presente na fase casamentária, ou seja, durante o casamento. Há ainda um dever de colaboração entre os cônjuges quanto à direção da sociedade conjugal, sem distinção entre marido ou mulher, conforme art. 1.567. do novo Código Civil. 20 Em complemento, o art. 1.568. do mesmo Código prevê que cada cônjuge será obrigado a concorrer, na proporção dos seus bens e dos seus rendimentos, para o sustento da família e para a educação dos filhos, qualquer que seja o regime matrimonial adotado entre eles. Trata-se de outro dispositivo que consagra o dever anexo de cooperação ou colaboração, relacionado com a boa-fé objetiva.
Superado esse ponto, recordamos que, quanto ao casamento, a boa-fé está tratada especificamente no art. 1.561. do novo Código Civil, cuja redação destacada nos interessa para aprofundamentos necessários:
Art. 1.561. Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença anulatória.
§ 1º Se um dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos filhos aproveitarão.
§ 2º Se ambos os cônjuges estavam de má-fé ao celebrar o casamento,os seus efeitos civis só aos filhos aproveitarão.
O dispositivo em questão, como já previa o art. 221. do Código Civil de 1916, apresenta o conceito de casamento putativo, aquele que, embora nulo ou anulável, gera efeitos em relação a terceiros de boa-fé. A expressão destacada tornou-se comum no Direito Civil Brasileiro, diante da relação com o termo putare, que significa crer, pensar, imaginar. Pela própria etimologia da expressão, percebe-se que a boa-fé constante do art. 1.561. do atual Código Civil não é a boa-fé objetiva – relacionada com conduta –, mas a subjetiva, intencional, relacionada com a crença, com o poder imaginativo da pessoa humana. 21
Diante dessa constatação, o art. 1.561. não será o nosso objeto do estudo, pois pretendemos discorrer sobre a nova dimensão dessa boa-fé. Na verdade, pretendemos aqui defender a aplicação dos arts. 113, 187 e 422 do novo Código Civil para todas as fases do casamento, a gerar a responsabilização civil daquele que desrespeitar a boa-fé objetiva.
A questão a ser por nós discutida refere-se à quebra de promessa de casamento como fato gerador do dever de indenizar, inclusive por danos morais. A quebra dessa promessa ocorre, muitas vezes, quando se estabelece um compromisso de noivado, de modo a fazer surgir o dever de indenizar nos esponsais. A possibilidade de reparação nesse caso vem sendo tratada pela doutrina, na qual há posicionamentos em ambos os sentidos.
Entre os que estão favoráveis à indenização, podemos citar Inácio de Carvalho Neto, que lembra o fato do nosso "Código, ao contrário dos Códigos alemão, italiano, espanhol, peruano e canônico, não regula sequer os efeitos do descumprimento da promessa". Mas, para esse autor "isto não impede que se possa falar em obrigação de indenizar nestes casos, com base na regra geral da responsabilidade civil. Como afirma Yussef Cahali, optou-se por deixar a responsabilidade civil pelo rompimento da promessa sujeita à regra geral do ato ilícito". 22 Assim sendo, seria possível a indenização de danos morais em decorrência da quebra da promessa de casamento futuro por um dos noivos.
Ao contrário, Maria Berenice Dias entende que, em casos tais, seriam indenizáveis somente os danos emergentes, os prejuízos diretamente causados pela quebra do compromisso. Assim, não há que se falar em danos morais ou mesmo em lucros cessantes. 23 Entre os membros do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), há forte corrente doutrinária que entende não se poder falar em responsabilidade civil por danos morais nas relações familiares.
Concordamos integralmente que o casamento não é fonte de lucro, conforme aduz a doutrinadora por último citada, portanto não há como ressarcir lucros cessantes. Mas, ao contrário, entendemos ser possível a reparação dos danos morais nos casos que envolvem as relações de família, particularmente no caso aqui estudado. Opinamos que a complexidade das relações pessoais recomenda a análise caso a caso.
Especificamente quanto à quebra de promessa de casamento futuro, entendemos que, no novo Código Civil, o dever de indenizar surge não com base no art. 186, que trata do ato ilícito, mas com fundamento no art. 187, que disciplina o abuso de direito. Esse o ponto de divergência entre nosso posicionamento e o da maioria da doutrina, que reconhece o dever de indenizar nessas situações em decorrência do ato ilícito propriamente dito.
Na jurisprudência, encontramos julgados que apontam para a reparabilidade dos danos morais em casos tais. 24 Foram encontradas também decisões que afastam totalmente a possibilidade de reparação dos danos morais por quebra de noivado. 25 Por fim, há ementas que afastam o dever de indenizar em casos determinados, mas reconhecem a reparabilidade dos danos morais por quebra de promessa de noivado. 26 Na verdade, diante da casuística, é preciso conciliar todos esses entendimentos jurisprudenciais para chegar a uma conclusão plausível dentro do caso concreto a ser analisado.
Repetimos que, para nós, é possível a reparação de danos morais se a não celebração do casamento prometido causar lesão psicológica ao(à) noivo(a) ou ao(à) namorado(a). De qualquer forma, também concordamos que a mera quebra da promessa não gera, por si só, o dano moral. Não há de se confundir o dano moral com os meros aborrecimentos que a pessoa sofre no seu dia-a-dia.
Em alguns casos, contudo, os danos morais podem estar configurados, principalmente naqueles em que a pessoa é enganada pela outra parte envolvida, a qual desrespeita toda a confiança depositada sobre si. Podemos citar o caso em que a noiva celibatária foi deflorada, enganada por aquele que ela acreditava ser seu futuro marido. Devemos lembrar que, para algumas pessoas, a virgindade ainda é tabu e deve ser mantida até a noite de núpcias, o que pode parecer um absurdo, mas não é, principalmente em cidades do interior desse imenso Brasil.
Também, pode gerar dano moral a situação em que a noiva descobre que o seu noivo que descumpriu a promessa é bissexual, sendo tal fato notório em pequena cidade do interior. Isso gera repercussões sobre a honra da pessoa, de modo a caraterizar o dano imaterial. E o que dizer de um caso em que o noivo transmite à noiva uma doença sexualmente transmissível, sendo esse o motivo da ruptura? Sem dúvida, estará presente o seu dever de indenizar.
Imaginemos uma outra situação: em uma pacata cidade do interior de Minas Gerais, Tício namora Madalena há cerca de dez anos, típico namoro longo de uma cidade do interior. Depois de muito tempo, Tício resolve fazer a promessa de casamento. As famílias fazem uma grande festa de noivado, em que Tício pede oficialmente a mão da namorada e marca o casamento para um ano depois. Todos os preparativos são feitos: o pai da noiva paga todas as despesas da festa e da celebração do casamento, os convites são distribuídos para todos os amigos das famílias, os padrinhos são convocados, os presentes são entregues. No dia e no local marcado para a celebração das núpcias, toda a comunidade local comparece: autoridades, familiares, padrinhos, imprensa, colunistas sociais. A igreja matriz da cidade está toda decorada. Na iminência do casamento, no mesmo dia, o noivo manda um mensageiro com um bilhete assinado dizendo que não irá mais casar, pois não ama a noiva, mas uma outra mulher. Nessa situação, o noivo não terá dever de indenizar? Não estará caracterizado o dano moral à noiva, além dos danos materiais suportados por seu pai? Acreditamos que sim.
Além desses exemplos, muitos outros poderiam surgir. Por isso é que recomendamos a análise caso a caso, à luz da boa-fé objetiva, da eticidade. De qualquer forma, gostaríamos de aprofundar a nossa ressalva quanto ao fundamento jurídico da reparação moral em casos tais. Com todo o respeito, não seguimos o entendimento pelo qual a reparação está motivada no art. 186. do atual Código Civil, dispositivo que conceitua o ato ilícito. 27 Isso porque não há de se falar em lesão ou violação de direitos quando alguém não celebra o casamento prometido, pois a promessa de casamento não vincula a sua celebração futura. Desse modo, não há ato ilícito propriamente dito.
O dever de indenizar, em casos tais, decorre do abuso de direito, pelo desrespeito à boa-fé objetiva ou, dependendo do caso, aos bons costumes. Desse modo, o dever de indenizar, nos moldes do art. 927, caput, do novo Código Civil, tem por fundamento o art. 187. da codificação. 28 Em nosso entendimento, isso geraria uma responsabilidade pré-negocial casamentária em decorrência do desrespeito aos deveres anexos na fase anterior ao casamento. Aliás, se fôssemos adeptos da corrente que aponta ser o casamento um contrato, falaríamos que a quebra da promessa de noivado gera uma espécie de responsabilidade pré-contratual.
Lembramos que o abuso de direito é lícito pelo conteúdo e ilícito pelas conseqüências, conforme já conceituava a doutrina. 29 No caso em questão, percebemos que a promessa de um casamento futuro é perfeitamente lícita. Mas, se a parte promitente abusar desse direito, ao desrespeitar os deveres que decorrem da boa-fé, presente estará o seu dever de indenizar.
Isso gera, sem dúvida, uma mudança de paradigma. Vale lembrar que a regra quanto ao dever de indenizar o ato ilícito continua sendo a responsabilização mediante culpa em sentido amplo, que engloba o dolo e a culpa estrita. Mas, como vimos, em caso de abuso de direito ou de quebra dos deveres anexos, a responsabilidade não depende de culpa, pelo que consta dos Enunciados n. 24. e n. 37. do Conselho da Justiça Federa, aprovados na I Jornada de Direito Civil. É justamente isso que ocorre na quebra da promessa de noivado ou de casamento futuro. Desse modo, entendemos que a boa-fé objetiva dá um novo tratamento à matéria, pois a quebra de promessa de casamento futuro dever ser encarada como uma quebra do dever de lealdade, que é inerente a qualquer negócio jurídico celebrado.
Ao superar-se essa abordagem, passamos à análise da relação entre a boa-fé objetiva e a união estável.