1. Introdução
A nova ordem constitucional, inaugurada com Constituição Federal de 1988, enfoca o ser humano, através dos direitos fundamentais (dimensões da dignidade da pessoa humana, artigo 1º, III), como ponto de partida para a criação, a interpretação e a aplicação do direito. Pretendemos demonstrar a importância e a necessidade da utilização do princípio da proporcionalidade para dirimir contrariedades entre princípios fundamentais, diante de um caso concreto.
2. Princípio da proporcionalidade e a Constituição Federal de 1988
A República Federativa do Brasil, constituída em um Estado Democrático de Direito, tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, como reza o seu artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988. A sua estrutura difere das anteriores1, adotando a concepção de Estado de Direito, embasada no princípio da constitucionalidade, onde o respeito aos direitos fundamentais é o centro de gravidade da ordem jurídica2.
A concepção de Estado de Direito liberal centrado na lei, na legalidade, do regime de exceção pós 1964, sucumbe ao Estado de Direito constitucional. O novo ordenamento jurídico, inaugurado com a promulgação da Constituição Cidadã de 05 de outubro de 1988, impõe ao ente estatal, como limite de sua atuação, não só o princípio da legalidade, mas sobretudo a dignidade da pessoa humana. Glauco Barreira Magalhães Filho ressalta que "as bases do Estado Democrático de Direito são a soberania do povo, expressa na manifestação da vontade popular, e a dignidade humana, consagrada na enunciação dos direitos fundamentais."3
Fazendo uma comparação com as constituições anteriores, percebe-se a nítida intenção do legislador constituinte, ao elaborar a magna carta de 1988, a preocupação com a dignidade da pessoa humana, pois, ao contrário das antecessoras, aquela, logo no Título II, trata dos Direitos e Garantias Fundamentais. Estes são "dimensões da dignidade da pessoa humana, a qual é, por isso mesmo, o suporte de todos eles"4.
Assim, o Brasil adere à tendência adotada por diversos países após a segunda guerra mundial, donde se verifica uma o reconhecimento do ser humano como centro e fim do direito. É a dignidade da pessoa humana firmando-se como núcleo central do constitucionalismo brasileiro.
É a constituição o fundamento de validade para a produção e interpretação das normas infraconstitucionais. Segundo Hans Kelsen, "o fundamento de validade de uma ordem normativa é uma norma fundamental da qual se retira à validade de todas as normas pertencentes a essa ordem5". Sendo a dignidade da pessoa humana o núcleo central da Constituição e os direitos fundamentais a sua dimensão, toda produção legislativa, sua interpretação e aplicação têm como referencial o ser humano como centro e fim do direito, pois "o Estado existe para o homem e não o homem para o Estado"6.
Marcelo Novelino lembra que "a dignidade da pessoa humana, impõe-se como referencial para os demais valores proclamados pela Lei Maior, atuando como importante diretriz hermenêutica cujos efeitos se estendem por todo o ordenamento"7.
No entanto, em situações concretas, quando da interpretação e aplicação das normas constitucionais, aparentemente, podem surgir conflitos entre direitos fundamentais. Robert Alexy8 classifica as normas como gênero dos quais os princípios e regras são as espécies. As regras suscitam o problema da validade, ao passo que os princípios, além da validade, o da questão da importância ou valor.
As regras devem ser aplicadas na exata medida de sua prescrição. Na apreciação do caso concreto, havendo conflito entre regras, uma será, via de regra, excluída ou abandonada. É a lógica do "tudo ou nada", segundo Dworkin9.
Os princípios têm como conteúdo valores, devendo ser empregados com graduação na aplicação do caso concreto. Segundo Robert Alexy, os princípios são "mandamentos de otimização", isto é "normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes" 10.
Diante do aparente conflito de aplicação de princípios fundamentais a solucionar um caso concreto, o intérprete tem uma eficiente ferramenta jurídica para enfrenta o suposto impasse, o princípio da proporcionalidade. Este, na definição de Glauco Barreira Magalhães Filho, é o princípio dos princípios, pois somente através dele os outros encontram a sua condição de aplicabilidade e eficácia, na medida em que constitui a unidade e a coerência da constituição mediante a exigência de ponderação axiológica em cada caso concreto 11.
O princípio da proporcionalidade possui natureza mista tendo como conteúdo características de princípio e de regra. A primeira deve-se ao fato de ter um alto grau de generalidade, abstratividade e de fundamentalidade. A segunda advém da possibilidade, diante de um fato concreto, da obrigatoriedade de hierarquizar valorativamente um dos princípios fundamentais conflitantes, para solucionar a questão posta em juízo.
Um tema interessante, em matéria criminal, é o da utilização do princípio da proporcionalidade para solucionar o conflito entre os princípios fundamentais; um vedando a utilização de provas ilícitas para embasar uma condenação e o outro assegurando a ampla defesa do réu no processo penal. Ambos estão expressos no artigo 5º na Constituição Federal de 1988. O primeiro está previsto no inciso LVI: são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. O segundo no LV: aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Vejamos o seguinte exemplo: Uma determinada pessoa está sendo injustamente acusada de ter cometido um crime de estupro. Diante da dificuldade de produzir provas lícitas a seu favor, vê-se na iminência de ser condenado. Como última tentativa de se defender, sem a devida autorização judicial, intercepta uma conversa telefônica entre uma terceira pessoa e o verdadeiro autor do crime, tendo este, em um dos diálogos, confessado e se vangloriando da conduta praticada.
No presente caso há uma contrariedade entre dois direitos fundamentais: o direito à liberdade e à ampla defesa do injustamente acusado versus o direito de a privacidade, violado pela escuta telefônica ilícita, do verdadeiro autor da conduta típica de estupro. É sabido que os princípios enunciam valores e direitos, mas não qualificam juridicamente condutas. A hierarquização dos princípios diante do fato concreto acima apresentado, através da ponderação axiológica a fim de estabelecer a qualificação jurídica das condutas descritas, só poderá ocorrer com intervenção do princípio da proporcionalidade.
Esse é também denominado princípio de proibição de excesso. Sua base esta fincada na relação de dois elementos; meio e fim 12, ambos relacionando-se na situação fática apresentada. Importante são as observações de Glauco Barreira Magalhães Filho, ao descrever o relacionamento dialético entre os meios e os fins: "Os meios são os modos possíveis de sopesar princípios e valores, objetivando-se encontrar uma solução para o caso concreto. Os fins são aqueles que são próprios a um Estado democrático de Direito. A relação entre meios e fins não será puramente pragmática, mas haverá uma dialeticidade entre meios e fins, porquanto a dignidade da pessoa humana que se encontra no fim estabelecerá um limite deontológico ao meio". 13
Antes de voltarmos ao exemplo anteriormente citado, vale lembrar que o princípio da proporcionalidade é composto por três subprincípios, segundo generalidade da doutrina alemã, "os quais, em conjunto dão-lhe a densidade indispensável para alcançar a funcionalidade pretendida pelos operadores do direito" 14. São eles: o princípio da adequação, o princípio da exigibilidade ou necessidade e o princípio da proporcionalidade propriamente dito.
O primeiro determina que o meio utilizado deva ser adequado para alcançar o fim. O segundo assevera que o meio escolhido deve ser aquele que imponha o menor sacrifício, seja suave para o direito fundamental não prevalente na solução do caso concreto. E o terceiro indica o meio mais adequado e necessário em razão de somar mais vantagens, tendo por base, de plano, o maior número de interesses em disputa.
Por fim, é importante ressaltar que o Supremo Tribunal Federal vem utilizando o princípio da proporcionalidade para solucionar contrariedades entre princípios fundamentais, a exemplo do caso citado, conforme se vê abaixo:
"Habeas corpus". Utilização de gravação de conversa telefônica feita por terceiro com a autorização de um dos interlocutores sem o conhecimento do outro quando há, para essa utilização, excludente da antijuridicidade. - Afastada a ilicitude de tal conduta - a de, por legítima defesa, fazer gravar e divulgar conversa telefônica ainda que não haja o conhecimento do terceiro que está praticando crime -, é ela, por via de conseqüência, lícita e, também conseqüentemente, essa gravação não pode ser tida como prova ilícita, para invocar-se o artigo 5º, LVI, da Constituição com fundamento em que houve violação da intimidade (art. 5º, X, da Carta Magna). "Habeas corpus" indeferido 15.
3. Conclusão
Concluímos que o princípio da proporcionalidade é um importante instrumento para a manutenção da unidade axiológica da Constituição, através da sua capacidade de sopesar princípios e valores, objetivando encontrar uma solução para fato descrito.
Assim, para solucionar o caso concreto apresentado, onde há uma evidente contrariedade entre princípios fundamentais, não existe dúvida que, ao analisarmos o relacionamento dialético entre os meios e os fins, conjugado com a funcionalidades dos três subprincípios da proporcionalidade, chegaremos a uma solução adequada, necessária e proporcional para solução da contrariedade entre os valores em jogo.
Referências Bibliográficas
BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3º ed. Brasília jurídica: Brasília, 2003.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 17. ed. Malheiros: São Paulo, 2005.
DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 15. ed. Malheiros: São Paulo, 1998.
GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Comentários às reformas do código de processo penal e da lei de trânsito. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2008.
Magalhães Filho, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição. ed. Mandamentos: Belo Horizonte, 2004.
NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 2. ed. Método: São Paulo, 2008.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 3. ed. Martins Fontes: São Paulo, 1991.
Notas
DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 15. Ed. Malheiros: São Paulo, 1998. p. 91
-
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 17. ed. Malheiros: São Paulo, 2005. p. 398.
Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo: Magalhães Filho, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição. ed. Mandamentos: Belo Horizonte, 2004. p. 104.
Magalhães Filho, Glauco Barreira. Ob. cit. p. 208.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 3. ed. Martins Fontes: São Paulo, 1991. p. 34.
NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 2. ed. Método: São Paulo, 2008. p. 207.
NOVELINO. Ob. cit.. p. 207
NOVELINO. Ob. cit.. p. 33.
NOVELINO. Ob. cit.. p. 65.
NOVELINO. Ob. cit.. p. 66.
Magalhães Filho, Glauco Barreira. Ob. cit. p. 208.
BONAVIDES, Paulo. Ob. cit. p. 393.
Magalhães Filho, Glauco Barreira. Ob. cit. p. 211.
BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3eEd. Brasília jurídica: Brasília, 2003. p. 77.
Hábeas Corpus nº 74.678-DF, relator Ministro Moreira Alves, publicada no Informativo do nº 75 do Supremo Tribunal Federal.