O presente trabalho tem como escopo a análise da possibilidade ou não de o Estado brasileiro reduzir os vencimentos de determinados servidores públicos, cujo valor se apresenta em dissonância com a Constituição de 1988, embora adquiridos de forma legal perante ao antigo ordenamento constitucional pátrio.
Ressalta-se desde logo: a situação em apreço tem como discussão primordial, em síntese, a análise da possibilidade jurídica de se invocar o instituto do direito adquirido em face de uma nova ordem constitucional.
Preliminarmente, urge destacar que a vigente Constituição pátria [01] consagra o direito adquirido, ao lado do ato jurídico perfeito e da coisa julgada [02].
Por direito adquirido, que nos interessa no presente momento, devemos entender como sendo aquele já incorporado ao patrimônio e à personalidade de seu titular, de modo que nem a lei nem fato posterior possa alterar tal situação jurídica, pois há direito concreto, ou seja, direito subjetivo e não potencial ou abstrato [03].
No que tange ao ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias –, insta noticiar que este possui natureza de norma constitucional, sendo possível, portanto, que venha a excepcionar as regras elencadas no "corpo" da Constituição, até porque possui a mesma natureza jurídica destas.
Logo, não é possível uma interpretação isolada das normas do ADCT; lado outro, devemos interpretá-lo em cotejo com os demais dispositivos constitucionais, a fim de respeitarmos o Princípio da Unidade da Constituição, que estabelece uma interpretação integrada de todos os dispositivos constitucionais, sendo que as normas deverão ser vistas como preceitos integrados num sistema unitário de regras e princípios [04].
Outro princípio importante para a compreensão do problema "in tela" é o Princípio da Aplicabilidade Imediata das Normas Constitucionais: por este, as regras constitucionais têm incidência imediata, visto que a Constituição é o diploma inicial de determinado ordenamento jurídico.
Ainda, não podemos perder de vista que o artigo 17 do ADCT é norma constitucional originária. Proveniente do Poder Constituinte Originário, sua natureza jurídica se mostra determinante para a correta orientação do caso "sub examine".
Este Poder, que põe em vigor, cria ou mesmo constitui normas jurídicas de valor constitucional [05], possui algumas características imprescindíveis à sedimentação de nosso entendimento, a saber: é um Poder inicial, autônomo, ilimitado juridicamente e incondicionado.
O Poder Constituinte Originário é inicial, porque inaugura uma nova ordem jurídica, não existindo poder anterior ou acima dele; é autônomo, porque possui autonomia para escolher o conteúdo a ser tratado pela nova Constituição; é ilimitado juridicamente, por ser soberano e não sofrer qualquer limitação jurídica prévia, não precisando respeitar os limites postos pelo direito anterior; é incondicionado, porque não se submete a quaisquer regras ou procedimentos pré-estabelecidos.
A partir destas características, resta claro que o Poder Constituinte Originário tem o condão de romper com a antiga ordem constitucional, estabelecendo novos contornos jurídicos a determinadas situações, conforme sua conveniência e necessidade.
O constituinte é livre para dispor sobre a vida jurídica do Estado como lhe parecer mais acertado; pode, inclusive, combinar princípios políticos no texto que elabora. Se uma norma da Constituição proíbe determinada faculdade ou direito, que antes era reconhecido ao cidadão, a norma constitucional há de ter plena aplicação, não precisando respeitar situações anteriormente constituídas [06].
É de bom alvitre salientar que pode a própria Constituição nova resguardar algum direito adquirido, quando o constituinte originário entender que aquele direito, então adquirido frente à pretérita ordem constitucional, se coaduna com os ideais do novo arcabouço constitucional, ou seja, com a expressão da vontade deste Poder incondicionado. Esta situação ocorre com as denominadas "cláusulas de transição", em que o constituinte originário pode excepcionar a imediata aplicação de algumas normas constitucionais originárias. Na Constituição brasileira de 1988, algumas destas regras são encontradas no ADCT.
Diferentemente ocorre com o caso sob apreço. O artigo 17 do ADCT é claro em estabelecer que aquelas situações referentes à "remuneração em geral" dos servidores públicos devem se adequar aos novos ditames constitucionais, ressalvando, expressamente, a impossibilidade de se invocar direito adquirido. Ou seja: não há garantia e sim expressa vedação quanto à uma eventual alegação de direito adquirido por servidores em face da CF/88.
Como se não bastasse, tem sido consagrada na doutrina e jurisprudência a impossibilidade de invocação de direito adquirido em face de novo ordenamento constitucional, haja vista que o que é repudiado pelo novo sistema constitucional não há de receber status próprio de um direito, mesmo que na vigência da Constituição anterior o detivesse [07].
Imperioso colacionarmos, aqui, destacada decisão do STF:
"EMENTA: ESTADO DE SÃO PAULO. SERVIDORES PÚBLICOS. INCIDÊNCIA RECÍPROCA DE ADICIONAIS E SEXTA-PARTE. ART. 37, XIV, DA CF, C/C O ART. 17 DO ADCT/88. DIREITO JUDICIALMENTE RECONHECIDO ANTES DO ADVENTO DA NOVA CARTA. SUPRESSÃO DA VANTAGEM POR ATO DA ADMINISTRAÇÃO. ALEGADA OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA COISA JULGADA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. O constituinte, ao estabelecer a inviolabilidade do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, diante da lei (art. 5º, XXXVI), obviamente se excluiu dessa limitação, razão pela qual nada o impedia de recusar a garantia à situação jurídica em foco. Assim é que, além de vedar, no art. 37, XIV, a concessão de vantagens funcionais "em cascata", determinou a imediata supressão de excessos da espécie, sem consideração a "direito adquirido", expressão que há de ser entendida como compreendendo, não apenas o direito adquirido propriamente dito, mas também o decorrente do ato jurídico perfeito e da coisa julgada. Mandamento auto-exeqüível, para a Administração, dispensando, na hipótese de coisa julgada, o exercício de ação rescisória que, de resto, importaria esfumarem-se, ex tunc, os efeitos da sentença, de legitimidade inconteste até o advento da nova Carta. Inconstitucionalidade não configurada. Recurso não conhecido. (grifo nosso)"
RE 140.894 – SP, 10/05/1994.
Com fulcro neste julgado, aproveitamos para salientar a impossibilidade de se sustentar a inconstitucionalidade do artigo 17 do ADCT em face das denominadas "cláusulas pétreas" [08]. Estas cláusulas se afiguram no plano jurídico como limitações materiais ao Poder Constituinte Reformador e não ao Poder Constituinte Originário, ilimitado juridicamente.
O referido dispositivo, conforme alhures explicitado, é norma constitucional originária, não sendo passível, dessa forma, de sofrer controle de constitucionalidade, conforme orientação sedimentada no Pretório Excelso, recentemente confirmada. Senão vejamos:
"EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ADI. Inadmissibilidade. Art. 14, § 4º, da CF. Norma constitucional originária. Objeto nomológico insuscetível de controle de constitucionalidade. Princípio da unidade hierárquico-normativa e caráter rígido da Constituição brasileira. Doutrina. Precedentes. Carência da ação. Inépcia reconhecida. Indeferimento da petição inicial. Agravo improvido. Não se admite controle concentrado ou difuso de constitucionalidade de normas produzidas pelo poder constituinte originário".
ADI-AgR 4.097-DF, 08/10/2008.
Diferente solução poderia ocorrer se estivéssemos a debruçar nosso estudo sobre uma norma constitucional oriunda do Poder Constituinte Derivado Reformador. Mesmo neste caso, vale destacar, a doutrina não é uníssona quanto à possibilidade de invocação de direito adquirido em face de emenda constitucional. Não estamos diante desta situação, repise-se; contudo, vale a ressalva.
Face todo ao exposto, concluímos pela impossibilidade de invocação de direito adquirido em face de nova ordem constitucional. Um direito adquirido sob a égide da antiga norma constitucional somente poderia continuar a produzir efeitos, a partir da nova Constituição, se esta expressamente ressalvasse a garantia daquele direito.
Logo, eventuais vencimentos de servidores públicos acima do teto permitido pela nova ordem constitucional brasileira, mesmo que adquiridos de forma legal em face do antigo arcabouço constitucional, poderão e deverão ser reduzidos pelo Estado brasileiro, de modo a se adequarem à Constituição da República de 1988.
Bibliografia utilizada:
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado, 13ª ed., rev. aum. e atual. de acordo com a reforma do CPC e com o Projeto de Lei n. 276/2007. São Paulo: Saraiva, 2008.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 12ª ed., rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008.
MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008.
VADE MECUM. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Livia Céspedes. 3ª ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007.
www.stf.gov.br
Notas
- Art. 5º, inc. XXXVI, CF/88: "a lei não prejudicará o direto adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".
- Alguns doutrinadores aduzem que esta tríplice repartição tem função instrumental e acadêmica, defendendo que no conceito de direito adquirido englobar-se-ão o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
- Maria helena Diniz. Código Civil Anotado, p. 08-09.
- Pedro Lenza. Direito Constitucional Esquematizado, p. 72.
- Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Constitucional, p. 19.
- MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, p. 208.
- MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, p. 209.
- No caso, os servidores invocaram "os direitos e garantias fundamentais", aduzindo que estes abarcam os direitos adquiridos. Art. 60, §4º, IV, CF.