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Devemos impedir a formação de um estado policialesco na República Federativa do Brasil

25/12/2008 às 00:00
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O verbo auxiliar iniciador do título em epígrafe já pode dar a idéia da quantidade de tormento que temos nós cidadãos Brasileiros. Em uma organização estatal qualificada como democrática e de Direito, inexistem deveres atribuídos aos súditos para impedir a formação de um outro Estado, o Policialesco. É que constitui dever do Estado – não de nós cidadãos – daí a referência – de obstar o prosseguimento de um Estado Policial, investido e travestido de legítimos poderes Estatais. Esse fato – ausência estatal ou mesmo a atitude cúmplice – transfere para os administrados a incumbência de fazer cessar os devaneios de organizações que usam a truculência, a soberba e a violência a pretexto de promoverem o combate ao crime ou à criminalidade difundida.

Nos meios forenses (e o artigo não possui destinatários específicos), conhece-se bem a regra segundo a qual o uso da força é de exclusiva competência do Estado. Somente a ele é conferido o poder de usar a violência (quando necessária), para obstar a formação de conjuntos organizacionais tendentes a transferi-lhes os comandos da força. É nesse sentido que se proíbe o exercício arbitrário das próprias razões, configurando crime fazer o cidadão justiça pelas próprias mãos. (art. 345 CPB).

Pode parecer um paradoxo o fato de o Estado Brasileiro ser o detentor da força para impedir a formação de Estados Paralelos e ele mesmo – o Estado – querer praticar atos com o intuito usar da nefasta violência contra os súditos, como se pudesse ou como se estivesse legitimado. A contradição, todavia, é aparente. Há setores na República Federativa do Brasil que se arrogam superiores a outros e – o pior – ao próprio povo, de quem parte a titularidade de toda a manifestação do Estado, porquanto ostentam a farda, o manuseio de armas de fogo, o emprego das algemas, as técnicas de violação aos Direitos fundantes (a liberdade de ir e vir (prisão), a integridade física (coronhadas) ou a própria vida (coronhada seguida de disparo).

Referidos organismos esquecem-se ou estão mesmo com o propósito de atingir o Estado de Direito – e eu aposto na segunda alternativa, que as razões da existência do Estado de Direito apóiam-se em normas legais. O Estado de Direito encontra limites em suas próprias regras, ou seja, no próprio Direito. Como se sabe, nenhuma legislação brasileira confere o "poder" de usar a arma de fogo para dar coronhadas em torcedor de futebol; de usar a força para dar tapa no rosto de qualquer indivíduo, quer acusado, quer aqueles isentos dos atos do processo; de usar a força física, amparada pela farda, de brincar com o ser humano, puxando-o pelo cabelo em plena Capital Federal, mais detalhadamente na Esplanada dos Ministérios. Sendo assim, uma indagação se faz presente: QUEM LEGITIMOU ESSES ALGOZES A PRATICAR ESSAS TERRÍVEIS VIOLÊNCIAS CONTRA NÓS?

Comumente se ouve nas ruas que as leis quem faz são os próprios policiais. Com isso fácil é responder à pergunta acima. Eles mesmos se legitimam.

A violência estatal praticada por Policiais é evidente no atual contexto. Abre-se, a qualquer hora do dia, portas de residências, escritórios, moradas; Investiga-se, sem o mínimo respeito à dignidade humana; prende-se todos que estiverem sob as lunetas dos Inquéritos Policiais, sem o devido mandado; algema-se, mesmo sem a cautela necessária; Intercepta-se conversas alheias, sem qualquer relevância; assassina-se torcedores de futebol em pleno domingo à tarde; rodam-se pessoas pelos cabelos, nem se sabe o porquê. A enumeração, conquanto possa parecer cansativa, encerra um juízo de indignação. Convém lembrar que o rol é meramente enumerativo, vale dizer, há diversas outras condutas praticadas em nome de um Estado que se diz democrático e de Direto, garantidor de Direitos individuais e coletivos, tais como a vida, a liberdade, a igualdade, a reunião pacífica, e por aí vai.

Na saudável teoria do Estado de Direito, confere-se o uso do poder, não o abuso. E, nas precisas palavras da Ministra Carmém Lúcia Antunes, no Estado de Direito o poder converte-se em dever. Não há, portanto, exercício de poder, mas cumprimento de Dever [01]. Ainda que houvesse o exercício do poder de polícia, essa prerrogativa estatal não chega às raias de conferir a descabida perseguição contra qualquer indivíduo. O Brasil não pode sofrer o influxo dessas anomalias.

Vigora no Estado Policial a pena de morte, de banimento, de trabalhos forçados, de caráter perpétuo, e de qualidades cruéis. Há a irrestrita inobservância dos ditames do devido processo legal, da ampla defesa, da legitimação das provas em juízo. Desrespeita-se, a todo custo, a integridade física e moral dos particulares. Apreende-se documentos que entenderem necessários e suficientes. Pratica-se o mal pelo bem, segundo entendem. Prevalece a máxima de que os fins justificam os meios. Vale tudo, ou melhor, quase tudo. Só não vale a invocação de Direitos perante o poder Estatal. Aí não, até porque inexistiria autoridade conhecedora de Direitos fundamentais. São os detentores das armas, dos cassetetes, dos aparatos tecnológicos, da prisão. Ignoram os Direitos. Conhecem a soberba, a arrogância, a futilidade.

Deflagram operações ao acaso. Usam-se nomes mirabolantes. Afastam-se das regras de suas atribuições. Detém mais poderes que a Magistratura. Aprisionam a juízo da autoridade que possuir maior hierarquia. E se ela (autoridade superior) não houver, então é o próprio agente - que carrega a qualificação de público -, que decide de plano. Para ele, de nada servem o Ministério Público, a Advocacia e a Magistratura. Está investido de todos os poderes, com a devida encarnação, isto é, na própria carne e farda.

E não há distinção de perseguidos. Até o mais alto ocupante da mais alta Corte de Justiça do País fora atingido. Torcedores de futebol, diante dos holofotes da mídia, são submetidos a constrangimento que se quer pode ser qualificado como ilegal. É mais que isso. É constrangimento desumano. Em regra, utilizam da força na clandestinidade, na escuridão, na obscuridade, no silêncio sepulcral. Deferem a passagem na blitz, caso haja o efetivo pagamento da exigência. Espancam a toda sorte, ao argumento de que o trabalho de abordagem é necessário para a paz dos concidadãos. Perseguem sem distinção, a não ser no interior do corporativismo, quando não há rigores, mas concessão de benesses.

Fácil seria se houvesse aqui ou acolá essas providências ilegítimas. Ocorre que estão difundidas, estagnadas, formadas e inseridas em todos os escalões do Estado de Direito. Forma-se, em síntese, uma doença generalizada – verdadeira epidemia. Tanto aqui em Brasília quanto em São Paulo, no Rio de Janeiro, Natal, Santa Catarina, em todos os pontos do Estado Brasileiro.

A atual quadra, no entanto, deve cessar.

Já se encontra, de há muito, superada a tese do afastamento do Estado em relação aos desvios perpetrados em sociedade. Para a formação do Estado, firma-se um Contrato Social. Tal pacto Social funciona assim: concedemos parte de nossa liberdade (devemos procurar a justiça para a resolução dos conflitos, por exemplo), em favor do todo (ESTADO), para a nossa proteção contra as interferências injustas, as violências praticadas pelos mais fortes. Essas proteções devem servir aos cidadãos, coisa que não se vê hoje em dia.

É preciso que as organizações sérias do Estado – Magistratura, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil, Defensoria Pública, corregedorias militares e civis, estas quando não pactuadas com os malefícios, ponham cobro à referida situação.

Se o Estado não obsta a formação de um Estado Policial – paralelo, por excelência, então nós cidadãos devemos nos lançar a tal fim. As somas dos órgãos e entidades estatais sérios, dessa feita, contribuem sobremodo. Ordem dos Advogados do Brasil, Magistratura, Ministério Público, e outras, servem mais até que o próprio rol de Direitos Fundamentais. Aliás, essa foi a afirmação no discurso de posse do atual Presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes: "Em verdade, no Estado constitucional, a independência judicial é mais relevante do que o próprio catálogo de direitos fundamentais." [02]

Os Poderes do Estado da República Federativa do Brasil devem convergir para a retirada desses corpos alheios à democracia e à sociedade seriamente organizada.

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Nas sempre precisas palavras do Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio: paga-se um preço por viver em um Estado Democrático de Direito. Porém, não são esses atos Policialescos que constituem o preço a que faz referência Sua Excelência. Se os fossem, estávamos submetidos a um preço por vivermos em um Estado Policialesco, não num Estado Democrático. A ilustração é dirigida à restrição de direitos, com a devida manifestação do órgão judiciário competente. É a prisão devidamente fundamentada; a intervenção na propriedade pautada na garantia da função social; a interferência no domínio econômico para resguardar o bom andamento da atividade econômica.

Em outras linhas, ressoam sábias as palavras recentemente pronunciadas pelo Ministro Marco Aurélio: "É hora de o Supremo emitir entendimento sobre a matéria, inibindo uma série de abusos notados na atual quadra, tornando clara, até mesmo, a concretude da lei reguladora do instituto do abuso de autoridade, considerado o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, para a qual os olhos em geral têm permanecido cerrados" (HC 91.952/SP). [03]

O noticiário não nos engana. Os policiais tendem a, vagarosamente, tomar o poder em nome de uma falsa pacificação. A respeito do tema, o provérbio de que a polícia prende, mas a justiça solta tem origem, precisamente, nos interiores das instituições policias, pretendendo-se, no clamor da sociedade, tornar legítima a atuação fora dos limites das Leis. A sociedade formada por vontade de policiais não sobrevive, é inconsistente.

Em excelente confirmação das regras do Estado de Direito, o Ministro Celso de Mello assim considerou: "O Inquérito Policial não pode transforma-se em instrumento de prepotência nem converter-se em meio de transgressão ao regime da Lei. (...) Os órgãos do Poder Público, quando investigam, processam ou julgam, não estão exonerados do dever de respeitas os estritos limites da Lei e da Constituição." (HC 88.015/DF)

O correto funcionamento das instituições pressupõe o respeito irrestrito aos direitos e deveres consagrados no Texto Maior e corroborados pelas Leis e tratados internacionais. A desarrazoada prática sem legitimação de condutas policialescas tende a difundir, acaso inertes os Poderes do Estado. Não há instituição superior às Leis e à Constituição. Ninguém está acima das Regras do Estado. Todos se submetem aos irradiantes efeitos das normas da República Federativa do Brasil, sem qualquer exceção.

O Povo atribuiu representatividade aos Poderes do Estado para oferecer a existência digna a todos os indivíduos, mesmo àqueles que são acusados ou culpados de determinados delitos, porquanto não deixam de ser titulares de Direito, de modo que a insuficiência de proteção ou a arrogância de setores específicos do Estado, que se quer social e justo, traduza em pífias as letras garantidoras de direitos, que somente servem para análise científica nos bancos dos Tribunais, sem qualquer atuação prática.


Notas

  1. Voto proferido no Julgamento da ADI 3510, em que se discutia a inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança. Julgamento realizado em 29/05/2008.
  2. Discurso de posse proferido na solenidade de posse do Ministro Gilmar Mendes, na presidência do Supremo Tribunal Federal, em 23/4/2008.
  3. HC 91.952/SP. Rel. Marco Aurélio. órgão julgador: Tribunal Pleno. Data do Julgamento 07/08/2008.
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Sobre o autor
Rafael Lemos do Rego

Granduando em Direito em Brasília. Estagiário de Direito na Procuradoria Geral da República, lotado na área criminal do gabinete da Drª. Helenita Amélia Caiado de Acioli.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REGO, Rafael Lemos. Devemos impedir a formação de um estado policialesco na República Federativa do Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 2003, 25 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12129. Acesso em: 23 dez. 2024.

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