O verbo auxiliar iniciador do título em epígrafe já pode dar a idéia da quantidade de tormento que temos nós cidadãos Brasileiros. Em uma organização estatal qualificada como democrática e de Direito, inexistem deveres atribuídos aos súditos para impedir a formação de um outro Estado, o Policialesco. É que constitui dever do Estado – não de nós cidadãos – daí a referência – de obstar o prosseguimento de um Estado Policial, investido e travestido de legítimos poderes Estatais. Esse fato – ausência estatal ou mesmo a atitude cúmplice – transfere para os administrados a incumbência de fazer cessar os devaneios de organizações que usam a truculência, a soberba e a violência a pretexto de promoverem o combate ao crime ou à criminalidade difundida.
Nos meios forenses (e o artigo não possui destinatários específicos), conhece-se bem a regra segundo a qual o uso da força é de exclusiva competência do Estado. Somente a ele é conferido o poder de usar a violência (quando necessária), para obstar a formação de conjuntos organizacionais tendentes a transferi-lhes os comandos da força. É nesse sentido que se proíbe o exercício arbitrário das próprias razões, configurando crime fazer o cidadão justiça pelas próprias mãos. (art. 345 CPB).
Pode parecer um paradoxo o fato de o Estado Brasileiro ser o detentor da força para impedir a formação de Estados Paralelos e ele mesmo – o Estado – querer praticar atos com o intuito usar da nefasta violência contra os súditos, como se pudesse ou como se estivesse legitimado. A contradição, todavia, é aparente. Há setores na República Federativa do Brasil que se arrogam superiores a outros e – o pior – ao próprio povo, de quem parte a titularidade de toda a manifestação do Estado, porquanto ostentam a farda, o manuseio de armas de fogo, o emprego das algemas, as técnicas de violação aos Direitos fundantes (a liberdade de ir e vir (prisão), a integridade física (coronhadas) ou a própria vida (coronhada seguida de disparo).
Referidos organismos esquecem-se ou estão mesmo com o propósito de atingir o Estado de Direito – e eu aposto na segunda alternativa, que as razões da existência do Estado de Direito apóiam-se em normas legais. O Estado de Direito encontra limites em suas próprias regras, ou seja, no próprio Direito. Como se sabe, nenhuma legislação brasileira confere o "poder" de usar a arma de fogo para dar coronhadas em torcedor de futebol; de usar a força para dar tapa no rosto de qualquer indivíduo, quer acusado, quer aqueles isentos dos atos do processo; de usar a força física, amparada pela farda, de brincar com o ser humano, puxando-o pelo cabelo em plena Capital Federal, mais detalhadamente na Esplanada dos Ministérios. Sendo assim, uma indagação se faz presente: QUEM LEGITIMOU ESSES ALGOZES A PRATICAR ESSAS TERRÍVEIS VIOLÊNCIAS CONTRA NÓS?
Comumente se ouve nas ruas que as leis quem faz são os próprios policiais. Com isso fácil é responder à pergunta acima. Eles mesmos se legitimam.
A violência estatal praticada por Policiais é evidente no atual contexto. Abre-se, a qualquer hora do dia, portas de residências, escritórios, moradas; Investiga-se, sem o mínimo respeito à dignidade humana; prende-se todos que estiverem sob as lunetas dos Inquéritos Policiais, sem o devido mandado; algema-se, mesmo sem a cautela necessária; Intercepta-se conversas alheias, sem qualquer relevância; assassina-se torcedores de futebol em pleno domingo à tarde; rodam-se pessoas pelos cabelos, nem se sabe o porquê. A enumeração, conquanto possa parecer cansativa, encerra um juízo de indignação. Convém lembrar que o rol é meramente enumerativo, vale dizer, há diversas outras condutas praticadas em nome de um Estado que se diz democrático e de Direto, garantidor de Direitos individuais e coletivos, tais como a vida, a liberdade, a igualdade, a reunião pacífica, e por aí vai.
Na saudável teoria do Estado de Direito, confere-se o uso do poder, não o abuso. E, nas precisas palavras da Ministra Carmém Lúcia Antunes, no Estado de Direito o poder converte-se em dever. Não há, portanto, exercício de poder, mas cumprimento de Dever [01]. Ainda que houvesse o exercício do poder de polícia, essa prerrogativa estatal não chega às raias de conferir a descabida perseguição contra qualquer indivíduo. O Brasil não pode sofrer o influxo dessas anomalias.
Vigora no Estado Policial a pena de morte, de banimento, de trabalhos forçados, de caráter perpétuo, e de qualidades cruéis. Há a irrestrita inobservância dos ditames do devido processo legal, da ampla defesa, da legitimação das provas em juízo. Desrespeita-se, a todo custo, a integridade física e moral dos particulares. Apreende-se documentos que entenderem necessários e suficientes. Pratica-se o mal pelo bem, segundo entendem. Prevalece a máxima de que os fins justificam os meios. Vale tudo, ou melhor, quase tudo. Só não vale a invocação de Direitos perante o poder Estatal. Aí não, até porque inexistiria autoridade conhecedora de Direitos fundamentais. São os detentores das armas, dos cassetetes, dos aparatos tecnológicos, da prisão. Ignoram os Direitos. Conhecem a soberba, a arrogância, a futilidade.
Deflagram operações ao acaso. Usam-se nomes mirabolantes. Afastam-se das regras de suas atribuições. Detém mais poderes que a Magistratura. Aprisionam a juízo da autoridade que possuir maior hierarquia. E se ela (autoridade superior) não houver, então é o próprio agente - que carrega a qualificação de público -, que decide de plano. Para ele, de nada servem o Ministério Público, a Advocacia e a Magistratura. Está investido de todos os poderes, com a devida encarnação, isto é, na própria carne e farda.
E não há distinção de perseguidos. Até o mais alto ocupante da mais alta Corte de Justiça do País fora atingido. Torcedores de futebol, diante dos holofotes da mídia, são submetidos a constrangimento que se quer pode ser qualificado como ilegal. É mais que isso. É constrangimento desumano. Em regra, utilizam da força na clandestinidade, na escuridão, na obscuridade, no silêncio sepulcral. Deferem a passagem na blitz, caso haja o efetivo pagamento da exigência. Espancam a toda sorte, ao argumento de que o trabalho de abordagem é necessário para a paz dos concidadãos. Perseguem sem distinção, a não ser no interior do corporativismo, quando não há rigores, mas concessão de benesses.
Fácil seria se houvesse aqui ou acolá essas providências ilegítimas. Ocorre que estão difundidas, estagnadas, formadas e inseridas em todos os escalões do Estado de Direito. Forma-se, em síntese, uma doença generalizada – verdadeira epidemia. Tanto aqui em Brasília quanto em São Paulo, no Rio de Janeiro, Natal, Santa Catarina, em todos os pontos do Estado Brasileiro.
A atual quadra, no entanto, deve cessar.
Já se encontra, de há muito, superada a tese do afastamento do Estado em relação aos desvios perpetrados em sociedade. Para a formação do Estado, firma-se um Contrato Social. Tal pacto Social funciona assim: concedemos parte de nossa liberdade (devemos procurar a justiça para a resolução dos conflitos, por exemplo), em favor do todo (ESTADO), para a nossa proteção contra as interferências injustas, as violências praticadas pelos mais fortes. Essas proteções devem servir aos cidadãos, coisa que não se vê hoje em dia.
É preciso que as organizações sérias do Estado – Magistratura, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil, Defensoria Pública, corregedorias militares e civis, estas quando não pactuadas com os malefícios, ponham cobro à referida situação.
Se o Estado não obsta a formação de um Estado Policial – paralelo, por excelência, então nós cidadãos devemos nos lançar a tal fim. As somas dos órgãos e entidades estatais sérios, dessa feita, contribuem sobremodo. Ordem dos Advogados do Brasil, Magistratura, Ministério Público, e outras, servem mais até que o próprio rol de Direitos Fundamentais. Aliás, essa foi a afirmação no discurso de posse do atual Presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes: "Em verdade, no Estado constitucional, a independência judicial é mais relevante do que o próprio catálogo de direitos fundamentais." [02]
Os Poderes do Estado da República Federativa do Brasil devem convergir para a retirada desses corpos alheios à democracia e à sociedade seriamente organizada.
Nas sempre precisas palavras do Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio: paga-se um preço por viver em um Estado Democrático de Direito. Porém, não são esses atos Policialescos que constituem o preço a que faz referência Sua Excelência. Se os fossem, estávamos submetidos a um preço por vivermos em um Estado Policialesco, não num Estado Democrático. A ilustração é dirigida à restrição de direitos, com a devida manifestação do órgão judiciário competente. É a prisão devidamente fundamentada; a intervenção na propriedade pautada na garantia da função social; a interferência no domínio econômico para resguardar o bom andamento da atividade econômica.
Em outras linhas, ressoam sábias as palavras recentemente pronunciadas pelo Ministro Marco Aurélio: "É hora de o Supremo emitir entendimento sobre a matéria, inibindo uma série de abusos notados na atual quadra, tornando clara, até mesmo, a concretude da lei reguladora do instituto do abuso de autoridade, considerado o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, para a qual os olhos em geral têm permanecido cerrados" (HC 91.952/SP). [03]
O noticiário não nos engana. Os policiais tendem a, vagarosamente, tomar o poder em nome de uma falsa pacificação. A respeito do tema, o provérbio de que a polícia prende, mas a justiça solta tem origem, precisamente, nos interiores das instituições policias, pretendendo-se, no clamor da sociedade, tornar legítima a atuação fora dos limites das Leis. A sociedade formada por vontade de policiais não sobrevive, é inconsistente.
Em excelente confirmação das regras do Estado de Direito, o Ministro Celso de Mello assim considerou: "O Inquérito Policial não pode transforma-se em instrumento de prepotência nem converter-se em meio de transgressão ao regime da Lei. (...) Os órgãos do Poder Público, quando investigam, processam ou julgam, não estão exonerados do dever de respeitas os estritos limites da Lei e da Constituição." (HC 88.015/DF)
O correto funcionamento das instituições pressupõe o respeito irrestrito aos direitos e deveres consagrados no Texto Maior e corroborados pelas Leis e tratados internacionais. A desarrazoada prática sem legitimação de condutas policialescas tende a difundir, acaso inertes os Poderes do Estado. Não há instituição superior às Leis e à Constituição. Ninguém está acima das Regras do Estado. Todos se submetem aos irradiantes efeitos das normas da República Federativa do Brasil, sem qualquer exceção.
O Povo atribuiu representatividade aos Poderes do Estado para oferecer a existência digna a todos os indivíduos, mesmo àqueles que são acusados ou culpados de determinados delitos, porquanto não deixam de ser titulares de Direito, de modo que a insuficiência de proteção ou a arrogância de setores específicos do Estado, que se quer social e justo, traduza em pífias as letras garantidoras de direitos, que somente servem para análise científica nos bancos dos Tribunais, sem qualquer atuação prática.
Notas
- Voto proferido no Julgamento da ADI 3510, em que se discutia a inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança. Julgamento realizado em 29/05/2008.
- Discurso de posse proferido na solenidade de posse do Ministro Gilmar Mendes, na presidência do Supremo Tribunal Federal, em 23/4/2008.
- HC 91.952/SP. Rel. Marco Aurélio. órgão julgador: Tribunal Pleno. Data do Julgamento 07/08/2008.