6 DO DESCUMPRIMENTO DO ARTIGO 129 PELO EMPREGADOR
A questão do descumprimento do artigo 129 instituirá tratamento assemelhado àquele dispensado pelo Poder Judiciário à utilização irregular das chamadas cooperativas de trabalho.
Como bem se sabe, as cooperativas de trabalho foram inseridas no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei 5.764, de 16 de dezembro de 1971, estipulando em seu artigo 90: "Qualquer que seja o tipo de cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados."
A mesma inexistência de vínculo empregatício fora inserida no parágrafo único do artigo 442 da Consolidação das Leis do Trabalho pela Lei 8.949/94: "Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela."
A previsão legal da inexistência de vínculo empregatício entre os cooperados levou alguns empregadores a exigirem que seus empregados se organizassem em cooperativas fraudulentas com o único e evidente intuito de continuarem a executar as mesmas atividades que já vinham praticando sem os consectários da proteção que a legislação laboral sempre lhes deferiu.
Em todas as oportunidades em que o Poder Judiciário fora instado a se manifestar sobre a questão, reconheceu a nulidade das cooperativas formadas. Para tanto, embasou-se no artigo 9º da Consolidação das Leis do Trabalho, o qual dispõe:
"Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente consolidação".
Nos litígios analisados a constatação da fraude denota a inexistência do princípio da dupla qualidade, o qual, segundo Mauricio Godinho Delgado, transforma o filiado à cooperativa em um indivíduo que ostenta, concomitantemente, a condição de cooperado e cliente. De importância transcrever a definição proposta pelo autor (2007, p. 329-330):
O princípio da dupla qualidade informa que a pessoa filiada tem de ser, ao mesmo tempo, em sua cooperativa, cooperado e cliente, auferindo as vantagens dessa duplicidade de situações.
Isso significa que, para tal princípio, é necessário haver efetiva prestação de serviços pela Cooperativa diretamente ao associado – e não somente a terceiros. Essa prestação direta de serviços aos associados/cooperados é, aliás, conduta que resulta imperativamente da própria Lei de Cooperativas (art. 6º, I, Lei n. 5.764/70).
A fim de ilustrar o afirmado, atente-se para a ementa do acórdão de Agravo de Instrumento em Recurso de Revista proferido nos autos do Processo 1867-2001-030-03-00, no dia 14 de maio de 2008, pela Ministra do Tribunal Superior do Trabalho Relatora Rosa Maria Weber Candiota da Rosa:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. COOPERATIVA. FRAUDE. TOMADOR DE SERVIÇOS. VÍNCULO DE EMPREGO. Configurada a existência de fraude na intermediação de mão-de-obra por meio de cooperativa, com o intuito de ocultar vínculo de emprego existente e fraudar a legislação trabalhista, apresenta-se em harmonia com a jurisprudência desta Corte a decisão regional que consigna a formação de vínculo de emprego diretamente com o tomador dos serviços, a teor da Súmula 331, I, do TST. Incidência do art. 896, § 4º, da CLT e da Súmula 333/TST. Agravo de instrumento conhecido e não-provido.
A correlação estabelecida entre o tratamento dado, no passado, às cooperativas e aquele que se teme dar hoje às disposições do artigo 129 da Lei 11.196/05 é feita por Adonilson Franco e tem fundamento.
Deturpando as disposições do artigo 129 da Lei 11.196/05, o empregador, valendo-se da mesma metodologia adotada quando a implantação do regime das cooperativas, poderia obrigar todos os seus empregados a constituírem pessoa jurídica a fim de alcançar o mesmo desiderato intentado naquela data: o reconhecimento da inexistência de qualquer relação de emprego, nos termos firmados pelos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, afastando do empregador o pagamento de todos os direitos trabalhistas, encargos sociais e tributos inerentes à folha de pagamento.
Aliás, como ressalta Adonilson Franco, no caso do artigo 129, o empregador contaria com um elemento a mais para a perpetração da fraude intentada, qual seja, o parágrafo único do artigo 129, que tutelava a existência de eventuais direitos trabalhistas na hipótese da violação do caput do dispositivo, fora vetado pelo Chefe do Poder Executivo. Previa o texto não promulgado: "O disposto neste artigo não se aplica quando configurada relação de emprego entre o prestador de serviço e a pessoa jurídica contratante, em virtude de sentença judicial definitiva decorrente de reclamação trabalhista."
Diante do intuito fraudulento hipotético anunciado e do veto descrito, a indagação que surge é a seguinte: diante da contratação de pessoas jurídicas nos termos do caput do artigo 129, com o único intuito de fraudar direitos trabalhistas, o empregado estaria sem qualquer proteção jurídica?
Evidentemente, a resposta deverá ser negativa. O mesmo mecanismo utilizado para a proteção do trabalhador quando da oportunidade das cooperativas fraudulentas deverá ser invocado quando se verificar a contratação fraudulenta de sociedades civis de trabalhadores que vierem a prestar serviços por intermédio de pessoas jurídicas.
Para tanto, uma vez verificados os requisitos do vínculo empregatício elencados nos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, o princípio da primazia da realidade imporá o reconhecimento da nulidade da contratação da pessoa jurídica para a prestação de serviços, nos termos do artigo 9º do mesmo Diploma legal, e, subseqüente, declaração da relação de emprego firmada.
Como faz questão de registrar Sergio Pinto Martins, no Direito do Trabalho, face ao princípio da primazia da realidade, os fatos ganham maior importância que as previsões documentadas. Segue-se excerto de sua obra explicitando o afirmado (2003, p. 79):
No Direito do Trabalho os fatos são muito mais importantes do que os documentos. Por exemplo, se um empregado é rotulado de autônomo pelo empregador, possuindo contrato escrito de representação comercial com o último, o que seve ser observado realmente são as condições fáticas que demonstrem a existência do contrato de trabalho. Muitas vezes, o empregado assina documentos sem saber o que está assinando. Em sua admissão, pode assinar todos os papéis possíveis, desde o contrato de trabalho até seu pedido de demissão, daí a possibilidade de serem feitas provas para contrariar os documentos apresentados, que irão evidenciar realmente os fatos ocorridos na relação entre as partes.
São privilegiados, portanto, os fatos, a realidade, sobre a forma ou a estrutura empregada.
Ademais, com o único intuito de facilitar a compreensão do tema colocado em debate, vale apena mencionar que os requisitos para a caracterização da relação de emprego são em número de seis, isto é, a) onerosidade decorrente da remuneração do empregado pelo empregador; b) o trabalho prestado pessoalmente pelo empregado; c) o empregado será sempre pessoa física; d) o trabalho será contínuo e e) subordinado, juridicamente, às ordens do empregador; bem como, f) relegará a este todos os riscos inerentes à atividade.
Dessa forma, uma vez presentes todos os requisitos necessários ao reconhecimento do vínculo empregatício e denotada a fraude embasada no caput do artigo 129 da Lei 11.196/05, diante do princípio da primazia da realidade, a implementação de todos os direitos trabalhistas, inclusive com a intervenção do Poder Judiciário se impõe, mesmo diante da revogação do parágrafo único do mencionado artigo. (FRANCO, 2006).
7 DO DESCUMPRIMENTO DO ARTIGO 129 PELO CONTRATADO
Se o ordenamento não admite que o empregador, por malícia, descumpra o previsto no artigo 129 da Lei 11.196, de 21 de novembro de 2005, com o intuito de prejudicar o empregado, na mesma medida, não aceita que a pessoa jurídica contratada para prestar serviços de natureza eventual venha, em ocasião futura, pleitear direitos da mesma ordem trabalhista que o contrato firmado acaba por lhe afastar.
Como visto no tópico precedente, para que haja vínculo de emprego, são necessários seis requisitos, dentre eles a contratação de pessoa física e a prestação pessoal do trabalho.
Quando alguém, valendo-se de seu direito de livre iniciativa, encartado no artigo 173, caput, da Constituição Federal, resolve constituir uma pessoa jurídica para prestar serviços de natureza intelectual, tais como os de natureza científica, artística ou cultural, acaba por renunciar à sua expectativa de ser contratado na condição de empregado, nos termos dos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho. Em outras palavras, a condição de empregado regulada pelos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho encontra-se em plano diametralmente oposto à possibilidade de contratação de pessoa jurídica prestadora de serviços intelectuais regulada pelo artigo 129 da Lei 11.196/05.
Quando o empresário contrata a pessoa jurídica prestadora dos serviços indicados, pratica o ato considerando a condição jurídica da mesma, isto é, ser uma pessoa jurídica que, por esta razão, não lhe trará qualquer ônus de natureza laboral.
Uma vez contratado na condição de pessoa jurídica prestadora de serviços intelectuais, o advogado, o médico ou o jornalista que fizera a opção pela utilização desse regime não poderá ir à Justiça do Trabalho pleitear o pagamento de verbas laborais.
Embora a conclusão seja lógica, recentemente, o Poder Judiciário deparou-se com situação peculiar. A Décima Segunda Câmara da Sexta Turma do Tribunal Regional do Trabalho da Décima Quinta Região, viu-se às voltas com demanda na qual determinada jornalista, após prestar serviços intelectuais por um determinado período na condição de pessoa jurídica, decidiu acionar a empresa jornalística contratante, pedindo a condenação da última ao pagamento de todas as verbas laborais que lhe seriam, supostamente, devidas.
Embora em primeira instância o pedido tenha alcançado êxito, perante o Tribunal Regional, a relatora do acórdão que deu desfecho ao Processo número 00358-2006-026-15-00-7, Juíza Olga Aida Joaquim Gomieri, pautou-se por posicionamento contrário. Adotando argumentos assemelhados àqueles apresentados durante todo o decurso deste trabalho, indeferiu o reconhecimento do vínculo empregatício e, conseqüentemente, a condenação ao pagamento de todas as verbas de natureza trabalhista. Vale a pena colacionar a ementa do acórdão, o qual encontra-se anexado, em sua integra, ao final deste texto:
Revela-se por demais ingênuo cogitar que a reclamante, jornalista, pessoa que se presume instruída e bem informada (pois do contrário, sequer teria condições de exercer a profissão), chegou a prestar seus serviços sem a devida contraprestação, ainda que de forma camuflada. Tanto que os documentos juntados pela própria autora demonstram que a reclamada lhe fornecia, inclusive, cartão-alimentação e plano de saúde. Como o ordinário se presume e o extraordinário se comprova, constata-se que a reclamante, nos termos dos artigos 333, inciso I e 818 da CLT, não se desincumbiu do ônus de demonstrar a ausência do pagamento das verbas decorrentes do contrato de trabalho. Além disso, é preciso considerar que o acordo entre as partes, de mera prestação de serviços, contou com a anuência da reclamante, que não pode, portanto, ser beneficiada pela própria torpeza, sob pena de se promover o enriquecimento sem causa e o locupletamento ilícito, vedados pelo nosso ordenamento jurídico. Enfim, não é justo que somente a parte reclamada seja apenada pela situação perpetrada, pois é fato que a reclamante anuiu com a mencionada prática, chegando a constituir uma sociedade empresária. Ademais, é muito provável que a obreira tenha sido a maior beneficiada, tendo auferido ganhos mais altos do que se houvesse sido regularmente contratada sob a égide da CLT. E cabem aqui considerações outras: Poderá a Justiça do Trabalho interferir a tal ponto nas atividades empresariais sem que isso redunde em autêntico abuso de poder e verdadeiro desestímulo ao empreendedorismo, contribuindo para o fechamento de empresas e para o aumento do desemprego? Poderá o Juiz determinar, de ofício, que todas as contratações que uma empresa fizer, o sejam pelo regime celetista? Poderá ignorar institutos como o da liberdade das partes em contratar? Feitas essas indagações e por todo o exposto, devem ser excluídas da condenação as verbas deferidas pela r. sentença. Subsiste, porém, a determinação de expedição de ofícios e a condenação na obrigação de fazer consistente em depositar, em conta vinculada em nome da reclamante, na Caixa Econômica Federal, no prazo de dez dias contados do trânsito em julgado da presente sentença, os valores relativos ao FGTS. Por fim, deverá a reclamada proceder às anotações na CTPS da obreira. Decisão por unanimidade.CONTRATAÇÃO DE PROFISSIONAIS COMO PESSOA JURÍDICA. RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO ENTRE AS PARTES. IMPROCEDÊNCIA DE VERBAS DECORRENTES DO RECONHECIMENTO DO LIAME. JORNALISTA.
CONTRATAÇÃO COMO PESSOA JURÍDICA. MODERNAS TENDÊNCIAS DO MERCADO DE TRABALHO. Oportuna a transcrição de abalizado artigo publicado n’O Estado de S. Paulo, em 29/11/2005, da autoria do renomado economista José Pastore, cujas asserções corroboram a tese ora defendida nestes autos: "Contratação como Pessoa Jurídica. Finalmente, o Congresso Nacional disciplinou a situação dos profissionais que prestam serviços em caráter personalíssimo. Essa disciplina veio com a aprovação pela Câmara dos Deputados do artigo 129 da Medida Provisória 255. Essa regulamentação era necessária. Muitos agentes fiscais viam tais empresas como manobras para pagarem menos impostos, quando comparadas com os empregados celetistas. Por isso, queriam tratar os prestadores de serviços como empregados. Com o propósito de equipará-los aos empregados celetistas, a abortada Medida Provisória 232 tentou elevar de forma expressiva a tributação desses profissionais. Ao aprovar a MP 255, agora convertida na Lei 11.196, a Câmara dos Deputados se alinhou às tendências modernas do mercado de trabalho. Como se sabe, os profissionais que hoje atuam por meio de empresas, na maioria dos casos foram empregados ontem. Com as mudanças nos modos de produzir e vender, os empregadores continuam interessados em seu talento, mas não na condição de empregados. Preferem contratá-los para atividades específicas ou por projetos que têm começo, meio e fim. Com isso, os profissionais em tela foram levados a criar empresas, como é o caso dos arquitetos, dos engenheiros, dos consultores, dos anestesistas, dos artistas e tantos outros. Dessa forma, eles deixaram de ser empregados, sem se transformar em empregadores. Muitos se assustaram com os dados do IBGE segundo os quais cerca de 66% das empresas brasileiras são desse tipo (IBGE, "Estatísticas do Cadastro Geral das Empresas do Brasil", 2003). Mas, não há razão para isso, pois essa é uma tendência mundial. Nos EUA, a proporção dessas empresas é de 77% e incide nas mesmas atividades onde estão as empresas do Brasil (ver quadro). (...) Os EUA têm cerca de 18,5 milhões de empresas sem empregados e 5,5 milhões de empresas com empregados. As primeiras crescem na base de 3% ao ano e refletem a revolução por que passa a produção e o trabalho. Estas empresas, sem empregados, operam em estreita relação com empresas que têm empregados, formando "redes de produção". No mundo moderno, quem compete não são as empresas e sim as redes, compostas de vários tipos de empresas e profissionais. É um outro mundo. Os que trabalham em tais empresas têm situação bem diferente do que a dos empregados. Por serem pessoas jurídicas, eles não usufruem os benefícios dos empregados como férias, aviso prévio, FGTS, indenização de dispensa, licenças, abono de férias, 13º salário, descanso semanal remunerado, hora extra, adicional de hora noturna, etc. Por outro lado, eles têm custos inexistentes para os empregados, como é o caso das despesas de aluguel, contador, secretária, office-boy, e, ademais, recolhem vários impostos e contribuições não incidentes nos contratos de celetistas (PIS, COFINS, CSLL, etc). Em muitos casos, os gastos operacionais e tributários ultrapassam as contribuições dos celetistas – e com menos benefícios. Por isso, em boa hora a inovação introduzida pela Câmara dos Deputados afastou um desentendimento infundado, pois, do contrário, muitos profissionais legalizados passariam para a informalidade que, aliás, já abriga mais de 10 milhões de "empreendedores" informais – o dobro dos formais. Foi uma boa medida. Vamos ver de que forma a Justiça entenderá essa lei." Decisão por unanimidade. (Grifo da autora)
Embora não se possa concordar com o termo torpeza utilizado pela relatora, a grande verdade é que a jornalista, agora tomada como exemplo, valeu-se de seu legítimo direito de livre iniciativa, constituindo uma pessoa jurídica para a prestação de seus serviços intelectuais. A conduta, certamente, trouxe-lhe vantagens; todavia, na mesma proporção, acabou por afastar-lhe dos direitos trabalhistas que, em data posterior, tencionou alcançar.
Nesse esteio, reitere-se a conclusão tomada no inicio: o artigo 129 da Lei 11.196 disciplina situação colocada em plano antagônico àquela deferida pelos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do trabalho. Assim sendo, uma vez disponibilizados no mercado serviços de natureza intelectual levados a cabo por meio de pessoas jurídicas, não poderá o prestador, ainda que firma individual, pleitear direitos de natureza trabalhista em face do contratante.