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Evasão de divisas: breves considerações e distinção com o crime de lavagem de dinheiro

06/01/2009 às 00:00
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É considerado como prática do crime de evasão de divisas efetuar operação cambial sem a intermediação de um estabelecimento bancário, envolvendo valores acima de R$10.000,00, com o especial fim de enviar esses recursos para o exterior.

1. Breve histórico e recepção da Lei nº 7.492/86

No início da década de 1980, em razão da crescente preocupação da sociedade com as fraudes que ocorriam no Sistema Financeiro Nacional, foi apresentado ao Congresso Nacional, em 25/03/1983, o Projeto de Lei nº 273/1983, elaborado pelo então Procurador-Geral da República José Paulo Sepúlveda Pertence.

Com a evolução do referido projeto, foi promulgada em 16 de junho de 1986 a Lei nº 7.492/86, que em alusão ao conceito de crime elaborado por Sutherland [01], passou a ser chamada de Lei do Colarinho Branco.

O então novo diploma normativo teve como objetivo reprimir as condutas lesivas ao Sistema Financeiro Nacional, compreendido este como uma estrutura jurídico-econômica necessária ao pleno desenvolvimento do País; as instituições que o compõem; e o patrimônio das pessoas que nele investem os seus recursos financeiros. [02]

Destaca na lei o crime de evasão de divisas, previsto no seu artigo 22 e parágrafo único, que atenta diretamente contra a regular execução da política cambial do país e, indiretamente, contra a ordem econômica.


2. Condutas típicas do crime de evasão de divisas

O tipo penal da evasão de divisas tem a seguinte redação:

Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País.

Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.

Trata-se de norma penal em branco, uma vez que compete ao Poder Executivo Federal regular e planificar a política cambial, estabelecendo os limites, condições e a forma da saída de divisas do País [03]. Os órgãos que detém referida atribuição, nos termos da Lei nº 4.595/64, são o Conselho Monetário Nacional [04] e o Banco Central [05].

Com a vigência do artigo 65, da Lei nº 9.069/95 [06], é considerado como prática do crime de evasão de divisas efetuar operação cambial sem a intermediação de um estabelecimento bancário, envolvendo valores acima de R$10.000,00, com o especial fim de enviar esses recursos para o exterior,

Outra conduta típica corresponde à remessa de valores para o exterior, em quantia superior ao equivalente a R$10.000,00, realizada sem a necessária transferência bancária, ou desacompanhada da Declaração de Porte de Valores (DPV) quando a remessa é feita em espécie.

Também incorre nas penas do artigo 22 aquele que mantiver depósito no exterior, não declarado ao Banco Central, em valores superiores ao equivalente a US$ 100.000,00 (Circulares BACEN nº 3.225/2004, 3.278/2005 e 3.313/2006).

A declaração do depósito no exterior deve ser endereçada, atualmente, ao Banco Central e não à Receita Federal.

Mas nem sempre foi assim. O dever de declaração ao Banco Central já existia desde 1969, quando o Decreto-Lei nº 1.060/69 o instituiu. No entanto, carecia o dispositivo legal de regulamento administrativo que estabelecesse a forma, os limites e as condições da declaração.

Referido regulamento sobreveio apenas no ano de 2001, com a edição da Circular nº 3.071/2001 do Banco Central (autorizada pela Resolução nº 2.911/2001, do Conselho Monetário Nacional).

Até a edição da Circular mencionada, era razoável que a obrigação de declarar os valores depositados no exterior fosse feita à Receita Federal. Afinal, até aquela data, os depósitos de brasileiros no exterior só eram conhecidos pelas consultas às declarações de renda feitas pelos depositantes à Receita Federal.

Contudo, hoje em dia, a partir da regulamentação feita, o Banco Central passou a ser o destinatário exclusivo da declaração exigida pelo artigo 22, parágrafo único, in fine, o que está em consonância com a natureza do bem jurídico penalmente protegido, qual seja, a regular execução da política cambial, como adiante será devidamente analisado.

Do exame atual do tipo depreende-se que todas as condutas são dolosas, já que não há previsão de crime culposo. O crime de evasão de divisas é comum, em todas as suas modalidades, pois não se exige especial qualidade do sujeito ativo. O sujeito passivo é o Estado, que é o elaborador e o executor da política cambial, além de deter o monopólio do controle das operações, por meio do Banco Central.

A diferença entre as condutas são as seguintes: a modalidade da 1ª parte do parágrafo único não necessita de demonstração de prévia operação de câmbio, ao contrário do caput, que a exige. De outro lado, a manutenção de depósitos no exterior não declarados não pressupõe que tais valores tenham advindo do Brasil, podendo ocorrer de um brasileiro vir a receber tais valores, a qualquer título, no exterior.

Pode existir progressão criminosa, ou seja, a prática de todas as três hipóteses legais, sendo a última a de manutenção de depósito não declarado no exterior. O agente pode realizar todas as condutas típicas, mas só responderá por um crime, aquele que esgotar o iter criminis, o que terá que ser verificado no caso concreto.

Por fim, destaca que nem todos os ilícitos cambiais constituem crime, apenas aqueles que se enquadram na descrição do tipo penal.

Com isso, a entrada irregular de recursos no País, embora possa conter lesividade à regular política cambial e assim constituir ilícito cambial, como não tem previsão no tipo penal, não configura ilícito penal.


3. Bem jurídico protegido

Para exata compreensão do bem jurídico protegido pelo dispositivo legal é necessário compreender que a função principal do Direito Penal é a proteção exclusiva dos bens jurídicos, ou seja, dos valores elementares de consciência, do caráter ético social e, em caráter secundário, a proteção de bens jurídicos particulares. [07]

Com isso, o conceito de delito, em geral, vem se modificando a luz do Estado Democrático de Direito, para exigir a responsabilidade penal do agente quando este realizar uma infração a ordem jurídica, em fatos lesivos a valores constitucionais, cuja significação irá se refletir na medida da pena. [08]

A Constituição, como fonte suprema das normas, limita aquilo que pode ser considerado crime pelo Direito Penal. E na lição de Márcia Dometila Lima Carvalho: "na tipificação delitual o acento deve ser dirigido para a proteção do valor constitucional maior, ou seja, para a justiça social" [09], em oposição ao Direito Penal Clássico, que se centrava no combate aos crimes que violassem bens meramente individuais.

Segundo Luiz Luisi, "a criminalização há de fazer-se tendo por fonte principal os bens constitucionais, ou seja, aqueles que, passados pela filtragem valorativa do legislador constitucional, são postos como base da estrutura jurídica da comunidade". [10]

Na ponderação dos bens jurídicos que merecem a tutela penal, sobressaem aqueles relacionados à defesa da ordem econômica, da ordem social, da cultura e do meio ambiente, hierarquicamente superiores, pela Constituição, aos tradicionais crimes contra o a propriedade privada. [11]

Dentro desse contexto, identifica-se que o tipo penal em comento visa a proteger a regular execução da política cambial, que por seu turno traduz uma espécie das medidas estatais de planificação, dirigida à realização dos valores constitucionais da ordem econômica.

Portanto, considerada a relevância da ordem econômica para o desenvolvimento nacional e a sua suscetibilidade às crises econômicas internacionais que vez por outra costumam ocorrer, conclui-se que a tutela penal exercida é legítima e de acordo com a Constituição Federal.


4. Transformação do bem jurídico no tempo

Merece destaque, ainda, a transformação com que se operou o bem jurídico da evasão de divisas desde a edição da Lei nº 7.492/86. Na época da edição da lei, a sociedade se preocupava muito menos com a fuga de capitais em momentos de crises econômicas do que se preocupa hoje em dia, época da globalização da economia mundial.

Àquela época, o crime de evasão de divisas tinha também por finalidade, além da proteção da regular execução da política cambial, proteger a administração da justiça contra as práticas de lavagem de dinheiro, que só viriam a ser criminalizadas em 1998, com a edição da Lei nº 9.613, em 03 de março de 1998.

Ocorre que com a edição da lei de combate à lavagem de dinheiro e com a crescente importância da política cambial como meio de inserção na economia mundial, o tipo em análise passou a destinar-se à exclusiva proteção do controle de operações cambiais.

A tutela penal exercida pelo artigo 22, da Lei nº 7.492/86, hodiernamente, não visa punir aquele que remete dinheiro para o exterior com a intenção de ocultar a sua origem criminosa, pois disso já passou a cuidar com propriedade a Lei nº 9.613/98.

O que se visa evitar hoje em dia é a saída de valores para o exterior, a custa da desgraça da economia do País, para a obtenção de benefícios de diversas naturezas em outros países, como isenção fiscal, ou a realização de lucros do capital em percentuais acima do oferecido pelo sistema financeiro nacional em alguma outra economia emergente etc.

Também não se pode entender que o tipo em estudo tem por fim proteger a política fiscal, pois os crimes contra a ordem tributária já são expressamente previstos na Lei nº 8.137/90.

Assim, a conduta daquele que remete dinheiro de maneira ilegal para fora do País pode ensejar a responsabilização penal por crime de lavagem de dinheiro, ou por sonegação de tributo, ou por evasão de divisas, ou, ainda, por todos estes, dependendo para isso a análise do elemento subjetivo que direcionou a conduta do agente e o bem jurídico lesado.


5. Distinção da evasão de divisas e do crime de lavagem de capitais

Importante esclarecer, ao final deste trabalho, a distinção entre o crime de lavagem de capitais e o crime de evasão de divisas, a fim de evitar confusões na interpretação do tipo penal em estudo.

Com a edição da Lei nº 9.613, em 03 de março de 1998, passou a ser previsto o tipo penal de lavagem de dinheiro, deixado ao crime de evasão de divisas a função exclusiva de tutelar a regular execução da política cambial.

A conduta típica prevista pela Lei nº 9.613/98 consiste na ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação, ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime: a) de tráfico ilícito de entorpecentes ou drogas afins; b) de terrorismo e de seu financiamento; c) de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; d) de extorsão mediante seqüestro; e) contra a administração pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; f) contra o sistema financeiro nacional; g) praticado por organização criminosa; e h) praticado por particular contra a administração pública estrangeira. [12]

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O tipo penal de lavagem de dinheiro difere do de evasão de divisas, em primeiro lugar, porque depende da prática de um crime antecedente.

Também divergem na objetividade jurídica. Enquanto no crime de evasão de divisas tutela-se a regular execução da política cambial, no crime de lavagem de dinheiro o bem jurídico penalmente protegido é a administração da justiça [13], registrada posição doutrinária no sentido de ser a ordem econômica o bem jurídico protegido. [14]

A pena privativa de liberdade cominada também é distinta. No crime de lavagem a pena é de três a dez anos de reclusão, portanto bem maior que a pena prevista no artigo 22, da Lei nº 7.492/86 (dois a seis anos de reclusão).

O maior problema se apresenta na hipótese de alguém praticar, simultaneamente, tanto o crime de evasão de divisas como o crime de lavagem de dinheiro.

Por exemplo, digamos que um sujeito obtém quantia significativa com a prática do crime de tráfico de entorpecentes (crime antecedente da lavagem de dinheiro) e depois envia esse dinheiro para o exterior, em desacordo com os limites e a forma permitidos pela legislação cambial, visando com isso ocultar esses valores das autoridades brasileiras. Nesse caso, como responsabilizar o agente? Há a incidência do chamado concurso aparente de normas à espécie?

Cremos que não é possível admitir a incidência das regras do concurso aparente de normas quando o agente visou lesar dois bens jurídicos distintos, como no exemplo acima, devendo ser aplicada a solução preconizada pelo artigo 70, do Código Penal, ou seja, responderá o agente pela prática dos dois crimes em concurso formal, aumentando-se a pena mais grave de um sexto até a metade.

No entanto, se o agente apenas tem o fim de remeter recursos para o exterior, sem a finalidade de ocultar sua origem, incidirá somente nas penas previstas no artigo 22, da Lei nº 7.492/86.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Notas

  1. Edwin E. Sutherland: White Collar Crime.
  2. Rodolfo Tigre Maia: Dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, p. 15.
  3. "Artigo 21 da Constituição Federal: Compete à União: (...);

    VIII - administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada; (...)."

  4. "Artigo 4º, da Lei nº 4.595/64: Compete ao Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes estabelecidas pelo Presidente da República: (...)

    V - Fixar as diretrizes e normas da política cambial, inclusive quanto a compra e venda de ouro e quaisquer operações em Direitos Especiais de Saque e em moeda estrangeira; (...).XXXI - Baixar normas que regulem as operações de câmbio, inclusive swaps, fixando limites, taxas, prazos e outras condições; (...)."

  5. "Artigo 9º, da Lei nº 4.595/64: Compete ao Banco Central da República do Brasil cumprir e fazer cumprir as disposições que lhe são atribuídas pela legislação em vigor e as normas expedidas pelo Conselho Monetário Nacional."
  6. "Artigo 65. O ingresso no País e a saída do País, de moeda nacional e estrangeira serão processados exclusivamente através de transferência bancária, cabendo ao estabelecimento bancário a perfeita identificação do cliente ou do beneficiário.

    §1º Excetua-se do disposto no caput deste artigo o porte, em espécie, dos valores: I - quando em moeda nacional, até R$ 10.000,00 (dez mil reais); II - quando em moeda estrangeira, o equivalente a R$ 10.000,00 (dez mil reais); III - quando comprovada a sua entrada no País ou sua saída do País, na forma prevista na regulamentação pertinente."

  7. Márcia Dometila Lima Carvalho, Fundamentação Constitucional do Direito Penal, p. 33.
  8. Luiz Luisi: Os Princípios Constitucionais Penais, p. 172.
  9. Márcia Dometila Lima Carvalho: op. cit., p. 47.
  10. Luiz Luisi, op. cit., p. 174.
  11. Márcia Dometila Lima Carvalho: op. cit, p. 48.
  12. Artigo 1º, caput e incisos, da Lei nº 9.613/98.
  13. Rodolfo Tigre Maia: Lavagem de Dinheiro, p. 54.
  14. Nesse sentido: Sérgio A. de Moraes Pitombo: Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente, p. 77.
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Sobre o autor
Milton Fornazari Junior

Delegado de Polícia Federal em São Paulo (SP), Especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e Mestre em Direito Penal pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FORNAZARI JUNIOR, Milton. Evasão de divisas: breves considerações e distinção com o crime de lavagem de dinheiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2015, 6 jan. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12160. Acesso em: 22 nov. 2024.

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