RESUMO: Este trabalho tem por finalidade demonstrar a dissensão jurídica entre as palavras proteção e defesa, consideradas no âmbito da Lei 8.078/90. Busca, assim, identificar o real sentido de cada vocábulo, quando empregado no espaço geográfico do CPDC, para apontar, além disso, a distinção entre as formas de defesa postas à disposição dos entes vulneráveis, enquanto circunscritos no turbulento e injusto mercado de consumo.
PALAVRAS-CHAVE: binômio proteção/defesa; proteção - lei; defesa formal; defesa informal
ABSTRACT: This work aims to demonstrate the legal difference between the words protection and defense, deemed under Law 8.078/90. Search thus to identify the real meaning of each word, when employed in the geographical area of CPDC, to point out, moreover, the distinction between the forms of defense available to vulnerable beings, as defined in the turbulent and unfair consumer market.
KEYWORDS: binominal protection/defense; protection – law; formal defense; informal defense
Sumário: 1.Introdução; 2. Distinção entre os termos proteção e defesa; 3. A vulnerabilidade como vetor de proteção e defesa dos direitos subjetivos de consumo; 4. Defesa formal (direta) e defesa informal (indireta) – tutela preventiva não formal; 5. Os termos jurídicos proteção/defesa no contexto do CPDC; 6. Conclusão.
1. Introdução
As palavras constituem notável conduto de interação entre os indivíduos. É através dos vocábulos, no mais das vezes, que as idéias fluem de pessoa para pessoa, propiciando, assim, a difusão do conhecimento através da reflexão e do debate. Além disso, em sendo o verbo a materialização física e/ou fonética do pensamento, normalmente é por seu intermédio que ocorre o redimensionamento do conhecimento humano. Necessário, pois, que o sentido da palavra se faça devidamente compreendido, para que nós, operadores do direito, v.g., possamos apreender com fidelidade o sentido da lei, da doutrina e também dos julgados.
É oportuno esclarecer, de início, que no curso deste artigo o leitor encontrará várias distinções entre os termos proteção e defesa. Não se trata de repetição descuidada. Na verdade essa multiplicidade de diferenciações que se faz é proposital, tendo por escopo dar ênfase ao cerne deste trabalho. Detenho-me, pois, na análise dos elementos teleológicos atinentes ao tema central, mas passo ao largo da apreciação filológica, pois é certo que nem sempre a semântica usual das palavras tem correspondência na linguagem científica.
É, pois, nessa vertente de pensamento e por meio deste artigo, que entendo oportuno tecer algumas reflexões acerca da acepção técnica dos termos proteção e defesa, no contexto da Lei 8.078/90, expressões estas, para muitos, de mesmo sentido e conteúdo jurídico.
2. Distinção entre os termos proteção e defesa
O Código - Lei 8.078/90 - é de proteção e defesa do consumidor – e não apenas de defesa, como é usual referir. A propósito, muitos doutrinadores, a exemplo de outros operadores do Direito, referem-se, em regra, à expressão "Código de Defesa do Consumidor", ou apenas às iniciais "CDC", esquecendo, quase sempre, o termo proteção, que, aliás, compõe e antecede à defesa, constituindo condição essencial para que os atos defensivos se operem.
Assim, não obstante tais vocábulos tenham aparentemente o mesmo sentido, na verdade determinam realidades distintas. Tanto é assim que as expressões estão ligadas pela conjunção aditiva "e" (proteção e defesa), o que significa adição de dois vocábulos díspares – de sentidos próprios, específicos mesmo - conforme se lê no texto do artigo 1º da referida lei. Então, admitamos, em primeiro instante, que proteção e defesa se complementem tendo por foco um único objetivo: dar efetividade ao Código e às demais normas (princípios e regras) que integram a ordem jurídica de proteção e defesa do consumidor.
Com efeito, entendo que na terminologia do Direito do Consumidor as palavras proteção e defesa ensejam situações, como de já referido, distintas, mas onde há nítida relação de interdependência entre uma e outra, fenômeno que ocorre em vista do liame de reciprocidade que as vincula. Portanto, ao que me parece evidente, as expressões não se excluem, ao contrário, se completam, na medida em que se verifica notável interação entre ambas.
A defesa ocorre quando se exterioriza através do exercício do direito adjetivo de consumo; isto é, a lei promove não apenas os direitos subjetivos dos consumidores, mas, de igual, aponta os mecanismos e ritos direcionados a dar efetividade a esses direitos. Assim, a defesa é a ação do consumidor, contra o fornecedor, valendo-se dos instrumentos processuais respectivos, na busca de dar efetividade ao direito subjetivo de consumo - violado ou sob ameaça - seja na esfera judicial, seja no âmbito administrativo.
De outro lado, percebo que a proteção tem realce em decorrência da necessidade de se regular um fato social [01] (= promoção da defesa do consumidor) – o que em derradeira análise termina por atender a um mandamento de envergadura constitucional (CF., art. 5º, inc. XXXII). Aliás, a previsão fundamental contida no inciso XXXII constitui, em essência, princípio direcionado à proteção – e não apenas à defesa - dos consumidores, isto porque, embora a seu tempo aquele dispositivo constitucional exigisse complementação, e realmente terminou por ser complementado pela Lei 8.078/90, a sua inserção no texto da Carta Magna significa, tanto por tanto, a necessidade de se edificar toda uma ordem jurídica subconstitucional, para nela inculcar não apenas os direitos subjetivos de consumo, mas, de igual, as regras de caráter adjetivo, de sorte a propiciar a correspondente defesa do patrimônio jurídico dos entes vulneráveis no âmbito das relações jurídicas de consumo.
Assim, e conforme será demonstrado adiante, é possível afirmar que não existirá defesa, considerada sob o prisma da legalidade, sem o antecedente estabelecimento da proteção, no âmbito do ordenamento jurídico de consumo. Ou seja, é preciso que ocorra a prévia indicação, através da lei, do bem juridicamente tutelado, dos mecanismos defensivos respectivos e dos ritos correspondentes, eis que tais circunstâncias são pressupostos necessários para que a defesa do consumidor possa se operar.
Por outras palavras, a proteção emerge sob a forma de um conjunto de normas (princípios e regras) [02] determinadas a estabelecer os direitos subjetivos de consumo, bem assim os instrumentos para a defesa desses direitos: o processo administrativo e judicial com os ritos respectivos ( = direito adjetivo de consumo).
A defesa, de sua parte, cinge-se à movimentação dos meios de tutela, isto é, ao efetivo exercício do direito adjetivo de tutela, bem assim à realização de outros atos preventivos tendentes ao resguardo dos direitos subjetivos (ou interesses) [03] do ente vulnerável.
3. A vulnerabilidade como vetor de proteção e defesa dos direitos subjetivos de consumo
Com efeito, é imprescindível notar que a edificação da lei (proteção da prerrogativa jurídica de consumo e indicação dos mecanismos defensivos correspondentes) justifica-se diante da vulnerabilidade – eventualmente também na hipossuficiência [04] – característica comum a todos os consumidores diante dos fornecedores de produtos e serviços.
A vulnerabilidade, é de se por em relevo, justifica o próprio movimento consumerista, pois se não fosse por essa debilidade presumida do consumidor é certo que referido movimento não teria base de sustentação [05]. Por outras palavras, é possível argumentar que a fragilidade do consumidor, em confronto com a supremacia técnica e econômica do fornecedor, põe em risco os direitos de um sem-número de pessoas. Essa circunstância, por óbvio, reclama a intervenção direta e oportuna do Estado (Administração/Juiz), de forma a preservar o equilíbrio entre os agentes das relações de consumo, sempre tendo em conta que as normas do código são de ordem pública e interesse social.
Nesse desdobrar de argumentos é plausível reafirmar que a proteção decorre do estabelecimento da lei (regra em sentido estrito ou amplo), de sorte que o consumidor obtenha, através do diploma legal respectivo, a explicitação dos seus direitos, ao lado da instituição dos mecanismos de defesa para o resguardo de tais interesses. Essa afirmação encontra esteio na lição do Professor Miguel Reale que, amparado na fecunda doutrina de Rudolf Von Jhering afirma: "em toda relação jurídica existe uma forma protetora, uma casca de revestimento e um núcleo protegido. A capa, que reveste o núcleo, é representada pela norma jurídica, ou melhor, pela proteção à ação, o que quer dizer, por aqueles remédios jurídicos que o Estado confere a todos para a defesa do que lhes é próprio. O núcleo é representado por algo que interessa ao indivíduo. O direito subjetivo, segundo Jhering, é esse interesse enquanto protegido. Daí a definição sucinta dada por Jhering: ‘direito subjetivo é o interesse juridicamente protegido’" [06].
Em sendo o Código a matriz legal dos direitos do consumidor, coadjuvado pela legislação supletiva, nada mais lógico que os direitos nele explicitados sejam respeitados em vista da imposição que dimana da idéia de Estado Democrático de Direito.
A lei, portanto, como instrumento normativo, exige o seu fiel cumprimento porque esta é a vontade explícita do corpo social, manifestada, entre nós, por meio do processo legislativo, formulado através da representação parlamentar; ou, ainda, mediante a expedição, por parte da autoridade administrativa, de atos normativos ou ordinatórios.
Ora, se a proteção que se faz ao consumidor é decorrência imediata da lei (nos sentidos estrito e amplo), indicando, de conseqüência, os direitos de consumo e os mecanismos para preservar esses direitos, é de se observar que apenas a existência de norma programática, inserida no corpo da Constituição (art. 5º, inciso XXXII), não bastaria para suprir a exigência, no plano subconstitucional, da lei complementar - ou mesmo ordinária, com feição de lei complementar [07] - determinada a concretizar a vontade do legislador constituinte (mens legis = defesa do ente vulnerável nas relações jurídicas de consumo).
Com efeito, é iniludível que a norma fundamental [08] decreta que os consumidores terão garantida a defesa dos seus direitos. Mas parece ilógico imaginar que se faça a defesa de um direito antes mesmo da sua existência. Por decorrência, e como dito em passo anterior, é premente que esses direitos estejam determinados para que possam ser tutelados por meio do Estado. Tanto isso é fato que o legislador originário, ao edificar a Carta Política de 1988, preocupou-se em fixar, explicitamente, a necessidade de se erigir toda uma ordem infraconstitucional, determinada a resguardar (proteger) os direitos dos consumidores (ADCT, art. 48), viabilizando, assim, a defesa dos entes vulneráveis (CF, art. 5º, inc. XXXII) – na verdade a defesa dos direitos subjetivos de consumo que, em essência, constitui o bem jurídico tutelado.
Sobressai evidente, então, que no Brasil a proteção e a defesa do consumidor somente foram alcançadas de maneira abrangente com o advento da Lei 8.078/90, que deu especificidade não apenas aos direitos subjetivos, mas que também inculcou regras estabelecendo os meios para defender tais direitos quando não respeitados voluntariamente.
Então, ao que se afirma, é importante observar que antes do Código de Proteção e Defesa do Consumidor existiam apenas regramentos esparsos, "tímidos", já que no plano concreto não davam efetividade à proteção e defesa dos entes vulneráveis; mesmo porque não existia, entre nós, até a Constituição de 1988, sequer o reconhecimento - a conceituação legal mesmo [09] - do consumidor como ente vulnerável e que, em vista dessa característica (vulnerabilidade) reclama a intervenção direta e oportuna do Estado para a promoção dos seus direitos (= proteção) e da sua defesa (CF., art. 5º, inc. XXXII e 170, inc. V, Lei 8.078/90 e Decreto 2181/97, dentre outros).
Assim, a Lei 8.078/90 teve o concurso de vários diplomas legais [10], todos perfeitamente integrados, reclamando coerência e interação normativa (art. 7º), tendo em vista os princípios instilados pela Constituição Federal e também aqueles dimanados do próprio Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
4. Defesa formal (direta) e defesa informal (indireta) – tutela preventiva não formal
Com base nas considerações feitas até o momento parece coerente argumentar que normalmente a defesa do consumidor se realiza através das tutelas administrativa e/ou judicial, fenômeno que ocorre quando se está diante da iminente ou efetiva violação do direito; ou seja, quando ocorrer, ou estiver prestes a ocorrer, a transgressão da norma de consumo.
Mas há também a defesa do consumidor exercida em caráter preventivo, sem que se utilize dos mecanismos de tutela indicados na lei. Isso acontece, por exemplo, quando os atos defensivos tenham por finalidade a explicitação dos direitos dos consumidores, dos mecanismos de defesa, do aporte estatal aos entes vulneráveis e, ainda, das políticas de proteção ao consumidor, tal como nos exemplos que se indica a seguir: educação para o consumo, realização de eventos públicos para o atendimento e orientação ao ente vulnerável, seminários, debates jurídicos, audiências públicas, confecção de cartilhas explicativas, difusão das obrigações dos fornecedores face aos consumidores, e tantas outras medidas que não se inscrevem dentre as tutelas previstas no CPDC, no Decreto 2181/97, ou em qualquer outra lei supletiva, mas que nem por isso deixam de constituir atos defensivos, exercidos por autoridade administrativa ou através de particulares que estejam engajados na defesa dos consumidores.
Diante de tais ponderações, cabe sustentar que a defesa se projeta sob duas modalidades: a defesa formal, ou direta, realizada através dos mecanismos jurídicos - judiciais ou administrativos - devidamente previstos em lei; e a defesa informal, ou indireta, que se manifesta por intermédio de atos de defesa que não estejam circunscritos ao âmbito das tutelas formais de consumo. Ao que exsurge induvidoso, as duas formas de defesa têm por escopo dar efetividade às regras de proteção. Ou, por outras palavras, buscam resguardar os direitos subjetivos de consumo, previstos no código e na legislação supletiva correlata.
Face ao que afirmado, entendo que a proteção existe independentemente do manuseio de instrumentos de defesa, e para tanto basta que o direito de consumo esteja posto em lei. Mas para que a defesa (formal) se opere é necessário por em curso os mecanismos de tutela, de sorte que os consumidores tenham os seus direitos resguardados.
Não há razão, portanto, que leve a confundir os termos proteção e defesa, embora a segunda decorra da primeira. Atente: a lei, como instrumento determinante dos direitos e das tutelas, afigura-se como um "plus" em relação ao ato defensivo, isto porque, além de estabelecer os direitos subjetivos de consumo, vai mais além, para assim fixar as modalidades e os ritos de defesa respectivos (tanto na esfera administrativa quanto no âmbito judicial); portanto, ferramentas jurídicas postas não apenas à disposição dos consumidores, mas também das autoridades competentes (v.g., Lei 8.078/90 e Decreto 2181/97).
5. Os termos jurídicos proteção/defesa no contexto do CPDC
Ao longo da Lei 8.078/90 vamos encontrar tais palavras (proteção/defesa) incrustadas em vários dispositivos legais, mas cada qual com identidade própria, isto é, proteção como ato legislativo típico, como ato administrativo normativo [11] ou ordinatório [12], e defesa como ato de exercício de tutela.
O artigo 4º, que trata do estabelecimento da Política Nacional das Relações de Consumo, traz em seu desdobramento de incisos e letras a ocorrência de fase em que está prevista a proteção do consumidor. Posteriormente, ou seja, no artigo 5º, envereda por preceitos que se encerram no contexto da defesa dos entes vulneráveis. Portanto, fases distintas de um mesmo capítulo do código.
Desse modo, no primeiro momento tem-se que o artigo 4º, em toda a sua extensão, trabalha a proteção dos consumidores, estabelecendo, a partir do "caput" e do desdobramento de seus incisos, um conjunto de princípios para que tal circunstância ocorra (a proteção ao consumidor). Ao analisar referido dispositivo do CPDC, o Ministro Eros Roberto Grau [13] observa que "o art. 4º do Código do Consumidor é uma norma-objetivo, porque define os fins da política nacional das relações de consumo, quer dizer, ela define resultados a serem alcançados." Mas quais seriam esses resultados? Ao que parece evidente consistem na proteção e defesa ao ente vulnerável, sendo esta última (a defesa) conseqüência direta da primeira, pois seria incoerente cogitar da existência de mecanismo de defesa sem que exista um bem jurídico a ser defendido – reafirme-se.
De sua vez, o artigo 5º, edificado com base na "filosofia de defesa do consumidor", de fato reserva-se, direta e exclusivamente, à defesa dos entes vulneráveis, cabendo aqui colacionar a valiosa lição do Professor José Geraldo Brito Filomeno [14] que, em comentário ao artigo 5º, pontifica: "Pelo que já ficou assentado, a chamada "filosofia de defesa do consumidor" funda-se basicamente em uma diretriz que tem como alvo as ‘boas relações de consumo’, objetivo esse que é atingido mediante a utilização de certos instrumentos colocados à disposição do consumidor. Tais instrumentos, não exclusivos uns com relação aos demais, mas alternativos, muitas vezes, devem ser encarados como um verdadeiro leque de opções que o consumidor deve ter sempre à sua mão, e, à sua conveniência e oportunidade, escolher o que esteja mais de acordo com a sua necessidade e em decorrência de um impasse verificado em dada relação de consumo."
Exsurge evidente, então, a nítida distinção que há entre um e outro comando legal (arts. 4º e 5º). O art. 4º refere-se à proteção do consumidor, através do conjunto de princípios que ditam as diretrizes da política nacional das relações de consumo, ao passo que o art. 5º vincula-se, restritivamente, à realização da defesa dos consumidores, mediante o estabelecimento de instrumentos para a execução da referida política de consumo.
Postas tais considerações, observe-se ainda quanto ao artigo 5º, que ao abordar os meios de por em prática a política nacional das relações de consumo, o legislador valeu-se do termo "execução", que transmite a idéia de movimento, ação, ou seja, de defesa dos direitos de consumo, e tanto parece lógico assim inferir uma vez que os incisos I/V estão postos de maneira a indicar instrumentos através dos quais se processa a defesa dos interesses do consumidor. Perceba: todos os organismos citados no artigo 5º têm por finalidade resguardar os direitos subjetivos de consumo, jamais emitir atos normativos ou ordinatórios; portanto, limitam-se – e tão somente a isso – à execução da lei com a meta primordial de ceder defesa ao ente vulnerável.
É importante notar que o elenco de instituições posto no corpo do artigo 5º, voltado à execução da política nacional das relações de consumo, não se trata de rol exaustivo. Assim, outras instituições e órgãos da Administração Pública podem – na verdade devem – contribuir para a efetiva defesa dos consumidores (seja de modo formal, seja de maneira informal).